quinta-feira, 31 de julho de 2008
O maior comboio do mundo
Um dos meus filhos adora comboios. Nas buscas que faço para ele, descobri o maior comboio do mundo. Pode ser visto a passar aqui e aqui. Já aqui pode ser vista uma reportagem feita por um senhor muito famoso, sobre esse mesmo comboio, a que o meu filho chama «o comboio da Mauritânia». Entretanto, quando encontrei este comboio vi também um camião enorme, aqui.
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A vergonha está quase a chegar
Faltam poucos dias para o início dos jogos olímpicos da vergonha, os de 2008, que vão dar um grande contributo para caucionar a barbárie da ditadura de Pequim. Por falar em vergonha, vergonha deviam ter os responsáveis do Comité Olímpico Português, por mandarem para estes jogos os nossos atletas. E os do Comité Olímpico Internacional ainda mais vergonha deviam ter, porque a sua cumplicidade com a barbárie é bem maior. De qualquer forma, o Comité Olímpico tem uma longa tradição de suporte a ditaduras (veja-se o caso da edição de 1980, em Moscovo, onde Portugal não marcou presença), nalguns casos ditaduras piores até do que a chinesa (basta lembrar a edição de 1936, em Berlim, com o Comité Olímpico de braço dado com a Alemanha nazi).
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Ainda o Benfica no meio da investigação
(…)
– Achas possível esquecer? O passado não se deve esquecer, mas aprender com ele…
– Ó companheiro… o nosso Benfica também tem passado e hoje é o que é.
– Lá está! Não aprenderam com ele…
– Esqueceram-se e foi depressa…
(…)
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– Achas possível esquecer? O passado não se deve esquecer, mas aprender com ele…
– Ó companheiro… o nosso Benfica também tem passado e hoje é o que é.
– Lá está! Não aprenderam com ele…
– Esqueceram-se e foi depressa…
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quarta-feira, 30 de julho de 2008
Em busca do texto mais bonito
Não sei por quê, aparecem frequentemente pessoas neste blog por causa de uma busca feita na Internet: procuram «o texto mais bonito» e são quase sempre do Brasil. Poder-se-ia por isso pensar que esse tal «texto mais bonito» seria um texto meu, mas não. O autor pode ser descoberto seguindo por aqui.
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Coisas famosíssimas que não li
O blog da revista «Ler», com um link para uma peça do «Telegraph» (onde não falta publicidade com José Mourinho) intitulada «Great Unread Books: Which classic are you ashamed to admit you have never read?». No meu caso, nem é questão de ter vergonha... Há coisas famosíssimas que não li; porque não pude, porque não consegui, porque não estava para aí virado. Deixo aqui algumas…
– «Em Busca do Tempo Perdido», de Marcel Proust
– os livros de Mia Couto
– a biografia de Gabriel García Márquez
– os livros de Faulkner
– «O Ano da Morte de Ricardo Reis», de José Saramago
– «Viagens na Minha Terra», de Almeida Garrett
– os livros de Agustina
– «Portugal, Hoje – O Medo de Existir», de José Gil
– os livros de Paul Auster
– «Harry Potter», de J. K. Rowlling
– os livros de Thomas Mann
– «Em Busca do Tempo Perdido», de Marcel Proust
– os livros de Mia Couto
– a biografia de Gabriel García Márquez
– os livros de Faulkner
– «O Ano da Morte de Ricardo Reis», de José Saramago
– «Viagens na Minha Terra», de Almeida Garrett
– os livros de Agustina
– «Portugal, Hoje – O Medo de Existir», de José Gil
– os livros de Paul Auster
– «Harry Potter», de J. K. Rowlling
– os livros de Thomas Mann
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terça-feira, 29 de julho de 2008
O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
Eu via as chamas e via o ribeiro a subir ao encontro delas, via o que imaginava, chegava até a sentir algum alívio por tudo estar a ponto de se resolver, com o milagre da água a subir o monte. Mais um erro daqueles em que a minha mente tantas vezes me fazia cair, o de pensar que tudo se resolvia sempre, nem que fosse à custa de coisas mirabolantes. Eu ali, a imaginar um milagre tão grande quando pouco tempo antes a realidade não tinha conseguido fazer o milagre de os bombeiros decidirem ficar…
Eu via as chamas e via o ribeiro a subir ao encontro delas, via o que imaginava, chegava até a sentir algum alívio por tudo estar a ponto de se resolver, com o milagre da água a subir o monte. Mais um erro daqueles em que a minha mente tantas vezes me fazia cair, o de pensar que tudo se resolvia sempre, nem que fosse à custa de coisas mirabolantes. Eu ali, a imaginar um milagre tão grande quando pouco tempo antes a realidade não tinha conseguido fazer o milagre de os bombeiros decidirem ficar…
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Histórias para ler em vinte segundos ou um pouco mais - 3
História com um tractor
«É capaz de ter sido a pressa, minha boa amiga», isto dizia um caçador que tinha estado a observar o trabalho uma semana antes, ou coisa parecida. Sim, podia muito bem ser, a pressa no lavrar, com o tractor todo lançado e pronto a abalar para outras terras. O tractor ia que nem um tiro, dos de caçadeira, já se vê, para não entrar em comparações deslocadas do ambiente que por ali se respirava (sempre os cheiros a perdiz e a lebre no ar, quando a coisa não chegava a javali ou até, se algum criador descurasse a vigilância, a bezerro acabadinho de desmamar). Sim, o tractor ia que nem um tiro, a lavrar, de um lado para o outro, sempre a mesma coisa, para um lado, para outro, e o tractorista na volta nem tinha percebido o bocado de terra que tinha ficado por revolver. «Coisas que acontecem», comentou um tirador de cortiça a um repórter de um jornal local («um pasquim», haveria de dizer mais tarde em casa, à mulher); isto numa entrevista em que o tema era a política agrícola comum adaptada às especificidades locais e tendo em conta as adaptações mandadas fazer à socapa pelo ministro da agricultura nacional, que o tirador considerava um homem sério («um rafeiroso», haveria de segredar dias depois a uma amiga de longa perna, perdão, de longa data). O tractor, dizia-se, andava agora mais a Norte, zona onde não admitiam ao tractorista esquecimentos daqueles de deixar o trabalho em meio-fazer. Outras terras, outros controlos do lavrar, «mais rigorosos», conforme se podia ler no site da Internet de uma associação agrícola dessa região; site que tinha um fórum de discussão para maiores de quarenta anos onde a principal preocupação tinha a ver precisamente com o controlo dos tractores que lavravam a terra. Havia muitos outros fóruns no site da associação, mas menos concorridos.
«É capaz de ter sido a pressa, minha boa amiga», isto dizia um caçador que tinha estado a observar o trabalho uma semana antes, ou coisa parecida. Sim, podia muito bem ser, a pressa no lavrar, com o tractor todo lançado e pronto a abalar para outras terras. O tractor ia que nem um tiro, dos de caçadeira, já se vê, para não entrar em comparações deslocadas do ambiente que por ali se respirava (sempre os cheiros a perdiz e a lebre no ar, quando a coisa não chegava a javali ou até, se algum criador descurasse a vigilância, a bezerro acabadinho de desmamar). Sim, o tractor ia que nem um tiro, a lavrar, de um lado para o outro, sempre a mesma coisa, para um lado, para outro, e o tractorista na volta nem tinha percebido o bocado de terra que tinha ficado por revolver. «Coisas que acontecem», comentou um tirador de cortiça a um repórter de um jornal local («um pasquim», haveria de dizer mais tarde em casa, à mulher); isto numa entrevista em que o tema era a política agrícola comum adaptada às especificidades locais e tendo em conta as adaptações mandadas fazer à socapa pelo ministro da agricultura nacional, que o tirador considerava um homem sério («um rafeiroso», haveria de segredar dias depois a uma amiga de longa perna, perdão, de longa data). O tractor, dizia-se, andava agora mais a Norte, zona onde não admitiam ao tractorista esquecimentos daqueles de deixar o trabalho em meio-fazer. Outras terras, outros controlos do lavrar, «mais rigorosos», conforme se podia ler no site da Internet de uma associação agrícola dessa região; site que tinha um fórum de discussão para maiores de quarenta anos onde a principal preocupação tinha a ver precisamente com o controlo dos tractores que lavravam a terra. Havia muitos outros fóruns no site da associação, mas menos concorridos.
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segunda-feira, 28 de julho de 2008
O Benfica no meio da investigação
(…)
– De modernidade ou de interesses… isto é tudo uma merda!
– Por falar nisso… já viste a forma como joga o nosso Benfica… não estão a jogar nada.
– Nada é pouco… parecem é não saber jogar futebol. Tens visto o Gaivota?
(…)
– De modernidade ou de interesses… isto é tudo uma merda!
– Por falar nisso… já viste a forma como joga o nosso Benfica… não estão a jogar nada.
– Nada é pouco… parecem é não saber jogar futebol. Tens visto o Gaivota?
(…)
Mais vale parecer...
O parecer que a Federação Portuguesa de Futebol encomendou a Freitas do Amaral pode ser lido aqui. Nada do que lá encontrei me surpreende; dá-me até a ideia de que para aquela confusão não era preciso nenhum parecer, pois o caso é muito claro e só não vê o que realmente aconteceu – e os objectivos de diversos intervenientes – quem não quiser ver. Curioso é que depois deste parecer já ouvi falar de outros que estarão a ser encomendados para que seja apresentado um resultado diferente. É o costume nesta coisa dos pareceres portugueses, onde a ideia que fica sempre é a de que por cá vale mais parecer do que ser, ao contrário do que se apregoa num ditado popular. Inclusive, já aconteceu um «parecerista» português muito prestigiado dar para o mesmo caso dois pareceres (imagino que pagos principescamente) que iam em sentido contrário, um para cada uma das partes em confronto. Com tudo isto, lembrei-me de um artigo que publiquei em princípios deste ano, do meu amigo Carlos Antunes, precisamente sobre os pareceres, ou antes, sobre aquilo a que ele chama «o mercado dos pareceres e dos estudos», que associa a corrupção. Deixo-o abaixo.
O mercado dos pareceres e dos estudos e a corrupção
No Orçamento de Estado para 2008, se a regra ao nível da despesa com o pessoal é de alguma contenção, já o montante previsto para a prestação de serviços de consultadoria provenientes do exterior dispara, revelando uma subida surpreendente.
Efectivamente, para o ano de 2008, no subsector Estado e nos serviços e fundos autónomos o governo decidiu reservar 190,3 milhões de euros para a rubrica «estudos, pareceres, projectos e consultadoria» ou «outros trabalhos especializados», valor que representa um acréscimo face ao orçamentado em 2007 de 63,5%, aumento que se eleva para 76,1% se nos ativermos apenas aos serviços sem autonomia financeira.
A este propósito, será conveniente relembrar a recente notícia de que o governo remeteu nada menos do que cinco (!) pareceres subscritos por professores de Direito Económico/ Fiscal ao Tribunal Constitucional, que tinha sido chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da Lei de Finanças Locais, aprovada pelo Parlamento e que o presidente da República; submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional antes da sua promulgação, vindo posteriormente a saber-se que cada um desses pareceres custou 30.000,00 euros ao erário público (isto é, aos cidadãos contribuintes), sendo que numa das últimas edições da revista «Visão» esta realçava quão profícua é a actividade dos pareceres jurídicos, cuja remuneração unitária se situa entre 10.000 e os 75.000 euros, ao ponto de um ilustre fiscalista (Saldanha Sanches) ser acusado de que o seu chumbo nas provas para professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa se devia ao interesse de alguns membros do júri de, por essa via, tentarem impedir o seu acesso ao «mercado dos pareceres».
Afinal, o que são e para que servem os pareceres e os estudos?
A localização do novo aeroporto serve de exemplo perfeito para ilustrar a irrelevância dos mesmos – discute-se a necessidade de uma nova infra-estrutura aeroportuária há mais de 30 anos, mas é nas vésperas da «decisão política» que os estudos de universitários e técnicos, antes calados vá-se lá saber por quê, encontraram novo fôlego e dinheiro para, num par de meses, descobrirem e aparecerem a defender milagrosas soluções que em mais de três décadas nunca ninguém descortinou. O que nos ensinaram estes novos estudos sobre a localização do novo aeroporto? Estamos mais bem informados? Claramente que não. Em vez de darem respostas, enchem-nos de dúvidas, tentando em primeiro lugar destruir os outros estudos, impossibilitando que a decisão final seja tomada de forma minimamente racional e consensual.
A importância de tais estudos e pareceres resulta, assim, apenas de terem conseguido gerar um «mercado original, não de criação de valor, mas de mera troca de dinheiros públicos» que influencia decisivamente as relações entre governantes e dos autores de tais estudos, funcionando num primeiro momento como defesa das tomadas de decisão dos políticos no exercício de funções governamentais e, por outro, na respectiva derresponsabilização quando as opções se revelem erradas.
Ou seja, a decisão governamental que se tem por eminentemente «política» e não é, por isso mesmo, «neutra» (por alguma razão a legitimidade dos governantes assenta no voto em eleições) passa a subordinar-se a meros critérios de pretensas tecnicidade, imparcialidade e independência.
Sabe-se como tudo isto funciona – o governante, porque tem total liberdade de escolha (não é certamente por acaso que o novo bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto, veio defender «a realização de concursos públicos para a contratação pelo Estado de serviços de advocacia» como forma de pôr cobro a «situações de promiscuidade entre o poder político e alguns escritórios de advogados» – entrevista ao «Público» de 09.12.07), começa por comprar a imparcialidade, a independência e a tecnicidade de um ou mais «juristas, economistas ou engenheiros ilustres» (sim, tudo isto, tecnicidade, imparcialidade e independência também estão à venda, como se pode comprovar pelo estudo da Confederação da Indústria Portuguesa, CIP, sobre a localização do novo aeroporto, que defende que toda a população de Cascais, de Sintra, de Lisboa e da margem direita do Tejo atravesse o rio para chegar ao aeroporto, ter tido como um dos financiadores a empresa que detém o monopólio das pontes sobre esse rio). Esses «juristas, economistas ou engenheiros ilustres», a troco dos elevados montantes auferidos, predispõem-se a receber os recados daqueles e a estudar e a apresentar a solução formatada à decisão já pré-determinada (paradigmático do que acabo de afirmar é o caso do estudo de sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, SNS, encomendado pelo actual titular da pasta da Saúde que, entre outras medidas, propôs o fim da ADSE, e cujo presidente da comissão de peritos autora do referido estudo, quando questionado sobre o fim da ADSE trazer para o SNS 1,3 milhões de portugueses, o que deixaria debilitado o sector privado dependente de convenções, e sobre se o SNS teria capacidade para dar resposta ao acréscimo destes utentes, teve a suprema lata de responder «nós não estudamos até ao fim todas as consequências das medidas, nomeadamente das implicações financeiras, que sugerimos»).
Por fim, o último elo da cadeia deste mercado funciona quando os governantes deixam o exercício das respectivas funções, ao encontrarem de imediato emprego nas sociedades de advogados, gabinetes de engenharia e empresas a quem anteriormente adjudicaram tais estudos e pareceres.
Os governantes começam por ser eleitos pelo voto dos cidadãos em eleições suportadas financeiramente por estes, posteriormente os mesmos cidadãos enquanto contribuintes pagam os estudos e pareceres que sustentam a decisão política dos ditos governantes, para finalmente estes, através do «abuso de poder», do «compadrio» e do «tráfico de influências» transferirem, por via desse mercado, dinheiros públicos para a órbita dos privados, sem qualquer poder de escrutínio por parte dos cidadãos-contribuintes.
Se isto não é «corrupção no sentido de subtracção de dinheiros do Estado em favor de privados», então já não sei o que é corrupção.
A questão é que em Portugal não existe um Estado independente do bloco central da governação (PS e PSD) e muito menos dos negócios que o apoiam e sustentam: da banca, da energia e da construção civil às grandes empresas de consultoria e gestão, de engenharia e projectos, e às sociedades de advogados.
O mercado dos pareceres e dos estudos e a corrupção
No Orçamento de Estado para 2008, se a regra ao nível da despesa com o pessoal é de alguma contenção, já o montante previsto para a prestação de serviços de consultadoria provenientes do exterior dispara, revelando uma subida surpreendente.
Efectivamente, para o ano de 2008, no subsector Estado e nos serviços e fundos autónomos o governo decidiu reservar 190,3 milhões de euros para a rubrica «estudos, pareceres, projectos e consultadoria» ou «outros trabalhos especializados», valor que representa um acréscimo face ao orçamentado em 2007 de 63,5%, aumento que se eleva para 76,1% se nos ativermos apenas aos serviços sem autonomia financeira.
A este propósito, será conveniente relembrar a recente notícia de que o governo remeteu nada menos do que cinco (!) pareceres subscritos por professores de Direito Económico/ Fiscal ao Tribunal Constitucional, que tinha sido chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da Lei de Finanças Locais, aprovada pelo Parlamento e que o presidente da República; submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional antes da sua promulgação, vindo posteriormente a saber-se que cada um desses pareceres custou 30.000,00 euros ao erário público (isto é, aos cidadãos contribuintes), sendo que numa das últimas edições da revista «Visão» esta realçava quão profícua é a actividade dos pareceres jurídicos, cuja remuneração unitária se situa entre 10.000 e os 75.000 euros, ao ponto de um ilustre fiscalista (Saldanha Sanches) ser acusado de que o seu chumbo nas provas para professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa se devia ao interesse de alguns membros do júri de, por essa via, tentarem impedir o seu acesso ao «mercado dos pareceres».
Afinal, o que são e para que servem os pareceres e os estudos?
A localização do novo aeroporto serve de exemplo perfeito para ilustrar a irrelevância dos mesmos – discute-se a necessidade de uma nova infra-estrutura aeroportuária há mais de 30 anos, mas é nas vésperas da «decisão política» que os estudos de universitários e técnicos, antes calados vá-se lá saber por quê, encontraram novo fôlego e dinheiro para, num par de meses, descobrirem e aparecerem a defender milagrosas soluções que em mais de três décadas nunca ninguém descortinou. O que nos ensinaram estes novos estudos sobre a localização do novo aeroporto? Estamos mais bem informados? Claramente que não. Em vez de darem respostas, enchem-nos de dúvidas, tentando em primeiro lugar destruir os outros estudos, impossibilitando que a decisão final seja tomada de forma minimamente racional e consensual.
A importância de tais estudos e pareceres resulta, assim, apenas de terem conseguido gerar um «mercado original, não de criação de valor, mas de mera troca de dinheiros públicos» que influencia decisivamente as relações entre governantes e dos autores de tais estudos, funcionando num primeiro momento como defesa das tomadas de decisão dos políticos no exercício de funções governamentais e, por outro, na respectiva derresponsabilização quando as opções se revelem erradas.
Ou seja, a decisão governamental que se tem por eminentemente «política» e não é, por isso mesmo, «neutra» (por alguma razão a legitimidade dos governantes assenta no voto em eleições) passa a subordinar-se a meros critérios de pretensas tecnicidade, imparcialidade e independência.
Sabe-se como tudo isto funciona – o governante, porque tem total liberdade de escolha (não é certamente por acaso que o novo bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto, veio defender «a realização de concursos públicos para a contratação pelo Estado de serviços de advocacia» como forma de pôr cobro a «situações de promiscuidade entre o poder político e alguns escritórios de advogados» – entrevista ao «Público» de 09.12.07), começa por comprar a imparcialidade, a independência e a tecnicidade de um ou mais «juristas, economistas ou engenheiros ilustres» (sim, tudo isto, tecnicidade, imparcialidade e independência também estão à venda, como se pode comprovar pelo estudo da Confederação da Indústria Portuguesa, CIP, sobre a localização do novo aeroporto, que defende que toda a população de Cascais, de Sintra, de Lisboa e da margem direita do Tejo atravesse o rio para chegar ao aeroporto, ter tido como um dos financiadores a empresa que detém o monopólio das pontes sobre esse rio). Esses «juristas, economistas ou engenheiros ilustres», a troco dos elevados montantes auferidos, predispõem-se a receber os recados daqueles e a estudar e a apresentar a solução formatada à decisão já pré-determinada (paradigmático do que acabo de afirmar é o caso do estudo de sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, SNS, encomendado pelo actual titular da pasta da Saúde que, entre outras medidas, propôs o fim da ADSE, e cujo presidente da comissão de peritos autora do referido estudo, quando questionado sobre o fim da ADSE trazer para o SNS 1,3 milhões de portugueses, o que deixaria debilitado o sector privado dependente de convenções, e sobre se o SNS teria capacidade para dar resposta ao acréscimo destes utentes, teve a suprema lata de responder «nós não estudamos até ao fim todas as consequências das medidas, nomeadamente das implicações financeiras, que sugerimos»).
Por fim, o último elo da cadeia deste mercado funciona quando os governantes deixam o exercício das respectivas funções, ao encontrarem de imediato emprego nas sociedades de advogados, gabinetes de engenharia e empresas a quem anteriormente adjudicaram tais estudos e pareceres.
Os governantes começam por ser eleitos pelo voto dos cidadãos em eleições suportadas financeiramente por estes, posteriormente os mesmos cidadãos enquanto contribuintes pagam os estudos e pareceres que sustentam a decisão política dos ditos governantes, para finalmente estes, através do «abuso de poder», do «compadrio» e do «tráfico de influências» transferirem, por via desse mercado, dinheiros públicos para a órbita dos privados, sem qualquer poder de escrutínio por parte dos cidadãos-contribuintes.
Se isto não é «corrupção no sentido de subtracção de dinheiros do Estado em favor de privados», então já não sei o que é corrupção.
A questão é que em Portugal não existe um Estado independente do bloco central da governação (PS e PSD) e muito menos dos negócios que o apoiam e sustentam: da banca, da energia e da construção civil às grandes empresas de consultoria e gestão, de engenharia e projectos, e às sociedades de advogados.
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Ontem à tarde
A entrada de um formigueiro, aqui mesmo na rua, junto à zona do escorrega e dos baloiços. A foto é de ontem à tarde. Não dá para ver as formigas porque ficaram pequenas demais para isso na foto, mas pelo material que têm para armazenar percebe-se a azáfama, apesar de ser domingo. Aquela coisa de os centros comerciais estarem abertos aos domingos deve ter sido inspirada nas formigas.
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Trabalhar ao domingo
domingo, 27 de julho de 2008
O Sporting no bom caminho
Confirmou-se esta noite no jogo com o Benfica, para o Torneio do Guadiana – Sporting 2 (Yannick, Derlei), Benfica 0. O Sporting parece estar no bom caminho para ter esta época uma equipa muito competitiva. Com várias trocas em relação ao jogo de ontem (Blackburn Rovers), de novo a equipa mostrou que é capaz de cativar os adeptos (basta ver a entrega de Derlei, de Tonel, de Yannick, de Romagnoli, entre outros). Até Paulo Bento terá estado muito bem, com o sinal que deu ao deixar João Moutinho de fora depois das declarações idiotas que este fez para que o deixassem sair (Moutinho parecia ter um pouco mais de sensatez do que o pai em termos de declarações públicas, mas na volta terá sido mesmo o antigo ponta-de-lança de pouco mais de um metro e meio a ensiná-lo a dizer o que não deve).
Por esta firmeza até se desculpa a Paulo Bento a incompreensível decisão de fazer alinhar Caneira esta noite (como médio defensivo, que é o equivalente a meter Liedson à baliza ou Soares Franco a fazer dupla atacante com Purovic na esperança de os dois combinarem bem com a bola por serem mais ou menos da mesma altura). Ainda em relação a Caneira, ele poderá ser esta época um factor de intranquilidade na equipa, pelo estatuto que tem, pois haverá sempre a tentação de metê-lo a jogar – a lateral, a central ou até no meio campo, como aconteceu hoje –; e isso é preocupante quando se trata de um jogador que não tem valor para integrar o plantel de um clube como o Sporting.
Uma nota para o Benfica: parecia-me que as coisas estavam muito más, mas se calhar estão ainda piores do que isso.
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Por esta firmeza até se desculpa a Paulo Bento a incompreensível decisão de fazer alinhar Caneira esta noite (como médio defensivo, que é o equivalente a meter Liedson à baliza ou Soares Franco a fazer dupla atacante com Purovic na esperança de os dois combinarem bem com a bola por serem mais ou menos da mesma altura). Ainda em relação a Caneira, ele poderá ser esta época um factor de intranquilidade na equipa, pelo estatuto que tem, pois haverá sempre a tentação de metê-lo a jogar – a lateral, a central ou até no meio campo, como aconteceu hoje –; e isso é preocupante quando se trata de um jogador que não tem valor para integrar o plantel de um clube como o Sporting.
Uma nota para o Benfica: parecia-me que as coisas estavam muito más, mas se calhar estão ainda piores do que isso.
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Torneio do Guadiana 2008
A frase da noite
«Kahdafi não põe uma bomba há dez anos.»
Daniel Oliveira, esta noite, no programa «O Eixo do Mal», da SIC Notícias
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Muamar al-Kadhafi
sábado, 26 de julho de 2008
As coisas a melhorarem
Depois da vergonha do jogo contra a sofrível equipa do Sunderland, uma apresentação bem aceitável do Sporting no seu primeiro jogo no Torneio do Guadiana – Sporting 2 (Pedro Silva, Tonel), Blackburn Rovers 1. Para já a equipa parece mais certinha, mas ainda sem grande fulgor, o que também não seria de esperar. Com o Porto aparentemente mais fraco e o Benfica a viver os equívocos do costume, aguarda-se a época com alguma expectativa. Uma nota bem curiosa: nos penalties que este torneio tem sempre no final de cada jogo, Polga marcou um como se fosse um jogador com algum talento.
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Torneio do Guadiana 2008
sexta-feira, 25 de julho de 2008
Os limites da decência
Comprei o livro de Gonçalo Amaral sobre o caso Madeleine McCann. Ia a passar numa Fnac de Lisboa e vi uma pilha de exemplares, umas dezenas deles, e isso despertou-me a atenção. A pilha, curiosamente, estava a poucos metros de uma zona onde Valter Hugo Mãe ia fazendo uma apresentação do seu novo romance.
Já comecei a ler o livro do antigo polícia, e com algum interesse, provavelmente por o caso ter acontecido na minha terra. Não sei bem o que pensar sobre as opiniões com que me vou confrontando a cada página, ainda por cima à mistura com o que oiço na rádio e na televisão, e com o que leio nos jornais e na Internet; uma enxurrada de informação desencadeada pelo aparecimento do livro. Uma coisa, no entanto, já deu para perceber da leitura das primeiras páginas: a língua portuguesa sai dali muito maltratada. Pode-se até fechar os olhos às limitações de Gonçalo Amaral, mas não se compreende como é que a editora não teve o cuidado de mandar alguém fazer uma revisão de jeito ao texto, já nem digo com preocupações literárias, mas pelo menos para que ficasse dentro dos limites da decência.
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quinta-feira, 24 de julho de 2008
O site oficial do monstro
Ver aqui, o site oficial do monstro. Pode ser contactado por e-mail (healingwounds@dragandabic.com), mas tenho dúvidas de que responda.
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quarta-feira, 23 de julho de 2008
A desigualdade-geral da República
Escrevo isto depois de ver na SIC uma longa entrevista com o procurador-geral da República, Fernando Pinto Monteiro. De várias coisas que retive do que fui ouvindo, deixo aqui duas… Primeira, a questão de a justiça ser igual para todos, ou seja, os criminosos, independentemente de serem ricos ou pobres, influentes ou não, mais ou menos conhecidos, devem ter um tratamento igual; sabe-se que as coisas não funcionam exactamente assim por cá, mas saúda-se as boas intenções do procurador. Segunda coisa, o telemóvel. Não a questão das escutas, mas uma confissão que me pareceu absolutamente despropositada (deu-me a ideia de que feita sem perceber o quanto significavam as suas palavras entremeadas com um sorriso disfarçado de quem acha que foi mais esperto do que os outros). Na parte em que foi entrevistado na aldeia natal (Porto de Ovelha), Pinto Monteiro disse que era por causa dele que lá havia rede de telemóvel. Uma gentileza que a TMN teve para com ele, conforme explicou (a entrevistadora, Conceição Lino, achou graça). Deve-lhe dar muito jeito, ao procurador, pois vai a Porto de Ovelha todos aos anos, cinco ou seis dias no Verão e ainda na altura do Natal, havendo também anos em que vai na Páscoa. Imagine-se se a Procuradoria-Geral da nossa República ficasse em Porto de Ovelha, imagine-se aquilo que não haveriam de instalar na aldeia… Eu também gostava que a TMN – o meu operador – tivesse a mesma atenção comigo, e nem é na zona para onde vou uns quantos dias por ano. Não, é mesmo onde moro, o ano todo. Se pudessem trazer até aqui a rede, apesar de eu não ser procurador-geral de nada, eu agradecia. Já que para os crimes somos todos iguais (custa-me a acreditar, mas enfim…), para a rede de telemóvel não faria sentido que também o fôssemos?
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As duas caras de um monstro
Hoje na capa do «Público», Radovan Karadzic (fotos de há treze anos e da actualidade). As duas caras de um monstro, ou mais do que de um monstro, de um filho da puta da pior espécie. O «Público» conta a sua história assim…
O psiquiatra e poeta egocêntrico
O psiquiatra e poeta egocêntrico
que se tornou criminoso de guerra por vaidade
23.07.2008, Clara Barata
Ninguém dirá de Karadzic que era modesto. Falam dele como alguém sedento de admiração e poder, que teve numa altura de escolhas cruciais.
Era impossível não pensar num galo quando se via Radovan Karadzic desfilar, entre os governantes e diplomatas dos países mais poderosos. O cabelo grisalho, abundante e comprido de mais, era coroado por uma crista desalinhada que desafiava perigosamente a gravidade. Agora, após 12 anos em fuga da justiça internacional, que o acusa de crimes de guerra e genocídio, está irreconhecível: as melenas grisalhas, que durante a guerra eram penteadas num hotel de Belgrado, deram lugar a um cabelo branco e encrespado, comprido, que usa atado no cimo da cabeça, num estranho chinó que pessoas que contactavam com Dragan David Babic, médico praticante de medicinas alternativas - a entidade que assumia há anos em Belgrado - disseram à Reuters que servia para receber energias.O psiquiatra especializado em tratar paranóias e depressões, poeta de imaginação mórbida que por vezes escrevia para crianças, transformado em senhor da guerra e arquitecto da política de limpeza étnica na Bósnia, reinventou-se como um terapeuta new age. Hoje com 63 anos, completados a 19 de Junho, escrevia artigos e dava palestras comparando técnicas de meditação populares com a meditação ortodoxa, praticada pelos monges dos mosteiros cristãos ortodoxos, conta a Reuters. Interessava-se pela cura através do uso da energia vital - um conceito semelhante ao Qi chinês, e à ideia dos centros de energia no corpo (chakras) desenvolvida na Índia, relata a agência noticiosa."Era bem-educado, calmo e com sentido de humor. Apresentava-se como um psiquiatra que fazia terapias energéticas", contou à Reuters Goran Kojic, director da revista Zdrav Zivot (Vida Sã), com a qual Dragan Babic colaborava.
O maestro infernal
Não era este o caminho que se imaginava que Karadzic iria percorrer, durante os seus anos de clandestinidade. Afinal, este é o homem que a acusação do Tribunal Criminal Internacional para a ex-Jugoslávia, descreve como o maestro de "cenas infernais, escritas nas páginas mais negras da história". A ele se atribui a estratégia da limpeza étnica - que ele descrevia como uma coisa positiva. Uma vez deu uma repreensão a um jornalista do New York Times pela forma como usava o termo nas suas reportagens: "Não, não", dizia Karadzic, citado ontem por John Burns, recordando a cena que viveu no fim da Primavera de 2002. A limpeza étnica, explicava o líder sérvio bósnio, com um charuto cubano numa mão e um copo de conhaque francês na outra - não era o primeiro, nem o segundo dessa noite -, era uma oportunidade que estava a ser dada aos muçulmanos bósnios, pela qual deviam estar gratos. Não estavam a ser expulsos das suas casas nem mortos barbaramente, estavam antes a ter a oportunidade de "regressarem" aos locais onde poderiam verdadeiramente sentir-se em casa - a cidades e aldeias onde poderiam viver com outros muçulmanos, longe dos sérvios, cristãos ortodoxos. De 1992 a 1995, a guerra na Bósnia fez cerca de 200.000 mortos, de todos os lados do conflito, dois milhões de pessoas - que não eram de origem sérvia - foram expulsos de suas casas, a violação tornou-se uma táctica de terror e humilhação. E, nas últimas semanas da guerra, em Julho de 2005, ocorreu o massacre de Srebrenica, no qual foram mortos cerca de 8000 homens e rapazes muçulmanos. O general Radko Mladic (ainda em fuga da justiça, ver caixa) comandou as tropas bósnias sérvias responsáveis pelas mortes e a ordem terá vindo de cima, do próprio Karadzic.
Poeta, psiquiatra e estranho
Foi longo o caminho percorrido por Karadzic, que nasceu no Montenegro (o seu pai era um rebelde chetnik sérvio que combateu os nazis na II Guerra Mundial e foi preso depois, por se opor ao poder do general Tito) mas se mudou para a Bósnia em 1960. É uma espécie de self-made man, versão Balcãs. "É uma combinação da personagem tradicional de hadjuk (assaltante) e guslar, um poeta que recita poesia épica, acompanhando-se a si próprio com um instrumento de cordas", escreve num artigo ontem divulgado a jornalista croata Slavenka Drakulic, que cobriu as guerras da ex-Jugoslávia.Estudou Medicina e Psiquiatria em Sarajevo. "Criou reputação entre os colegas na universidade, onde ensinava, e entre os pacientes, de ser estranho e ter lapsos profissionais que o tornaram, entre a intelligentsia, numa figura caricata", escrevia John Burns no New York Times. Ele, no entanto, sentia-se parte da intelectualidade local, e gostava de fazer discursos exibindo a sua cultura. Afinal, era poeta - mas em Sarajevo a sua criação literária também não era popular. O temas negros e obscurantistas da sua poesia, muita dela enraizada em lendas sérvias, gerava estranheza. E continuou a escrever, durante os seus tempos de clandestinidade: publicou vários livros de poesia e um romance.
A vaidade e o poder
A sua carreira política tomou rumo em 1990, ao fundar o Partido Democrático Sérvio - que partilhava os ideais da Grande Sérvia, que tinha como principal campeão Slobodan Milosevic, em Belgrado, o então Presidente da Jugoslávia. Mas como é que um psiquiatra e poeta, ainda que excêntrico, seguiu caminhos tão negros, interrogava-se muita gente, então e ainda agora.A resposta é dada por Slavenka Drakulic no seu artigo: os criminosos de guerra "vêm de todos os estratos sociais. São académicos, escritores e mecânicos, bem como empregados de mesa, bancários ou agricultores". Karadzic, diz, "tornou-se um criminoso de guerra por pura vaidade. Os seus feitos não lhe chegavam, ele queria poder". "A vaidade não é um crime por si, a não ser que nos empurre para uma posição em que podemos, e de facto, ordenamos, a exterminação de 8000 muçulmanos, por exemplo", diz. "Os seres humanos têm a capacidade para fazer o bem e o mal. Mas temos a possibilidade de escolher. Radovan Karadzic escolheu ter poder e ter poder em tempos de guerra pode ter um preço muito alto - que ele vai agora pagar."
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terça-feira, 22 de julho de 2008
Histórias para ler em vinte segundos ou um pouco mais - 2
Mil desenhos na pedra
Muitos anos depois, quando chegaram perto, já não a reconheceram. Mas sabiam que sim, que era ela. Porque eles próprios, juntos, unidos no mesmo esforço, eles próprios a tinham colocado ali. O pai e os dois filhos. Tinham-na carregado de bem longe, como tinham carregado todas as outras pedras do muro. Essas estavam quase na mesma, a julgar por aquilo de que os três se lembravam. Mas aquela não, aquela era agora outra pedra, com a mesma forma, mas outra pedra. Um velho que entretanto se tinha aproximado, um velho muito mas mesmo muito velho, pôs-se a falar do que tinha acontecido, sem antes atirar um cumprimento, umas palavras de saudação, um gesto simples que fosse. Já o pai e os filhos não; deram-lhe os bons dias os três ao mesmo tempo, enquanto ele falava sem parar. Era sobre os desenhos na pedra a lenga-lenga do velho, que de vez em quando abria os braços. Eles percebiam as palavras, mas apenas isso, porque a respeito das frases nenhuma lhes parecia ter um significado. Uma frase apenas com substantivos, depois outra limitada a preposições, a seguir mais uma feita só com pronomes demonstrativos, até uma com formas verbais no mesmo tempo verbal e sem mudar nunca de verbo. Era assim que o velho falava, entre um e outro abrir dos braços, entre um e outro olhar de contemplação da pedra. Até que se afastou, depois de dizer a única frase que o pai e os dois filhos compreenderam. «E assim é que ela ganhou os seus mil desenhos!», foi o que declarou, sem conseguir evitar uma gargalhada breve que os três associaram a um profundo sentimento de orgulho.
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Muitos anos depois, quando chegaram perto, já não a reconheceram. Mas sabiam que sim, que era ela. Porque eles próprios, juntos, unidos no mesmo esforço, eles próprios a tinham colocado ali. O pai e os dois filhos. Tinham-na carregado de bem longe, como tinham carregado todas as outras pedras do muro. Essas estavam quase na mesma, a julgar por aquilo de que os três se lembravam. Mas aquela não, aquela era agora outra pedra, com a mesma forma, mas outra pedra. Um velho que entretanto se tinha aproximado, um velho muito mas mesmo muito velho, pôs-se a falar do que tinha acontecido, sem antes atirar um cumprimento, umas palavras de saudação, um gesto simples que fosse. Já o pai e os filhos não; deram-lhe os bons dias os três ao mesmo tempo, enquanto ele falava sem parar. Era sobre os desenhos na pedra a lenga-lenga do velho, que de vez em quando abria os braços. Eles percebiam as palavras, mas apenas isso, porque a respeito das frases nenhuma lhes parecia ter um significado. Uma frase apenas com substantivos, depois outra limitada a preposições, a seguir mais uma feita só com pronomes demonstrativos, até uma com formas verbais no mesmo tempo verbal e sem mudar nunca de verbo. Era assim que o velho falava, entre um e outro abrir dos braços, entre um e outro olhar de contemplação da pedra. Até que se afastou, depois de dizer a única frase que o pai e os dois filhos compreenderam. «E assim é que ela ganhou os seus mil desenhos!», foi o que declarou, sem conseguir evitar uma gargalhada breve que os três associaram a um profundo sentimento de orgulho.
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Também há políticos notáveis
Ler aqui, Pedro Correia sobre Adolfo Suárez, um político absolutamente notável.
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segunda-feira, 21 de julho de 2008
Histórias para ler em vinte segundos ou um pouco mais - 1
O pequeno explorador
Deu logo com ele, apesar de bem integrado na paisagem. Um extraterrestre. Sem se mexer, a olhar para o alto como se procurasse o seu planeta. Ou então a rezar a algum deus daqueles dos céus. Parecia-lhe inofensivo, tão inofensivo como a superfície vertical a que se agarrava o melhor que podia. Mas mesmo assim, nunca fiando, pensou o pequeno explorador. O melhor era pôr-se a milhas, não fosse afinal o extraterrestre ser dos perigosos. Por isso correu o mais que podia, sem se atrever a olhar para trás para não perder tempo. Quando se achou a salvo, no cimo de um monte bem para lá da zona dos fenómenos, é que reparou que se tinha esquecido do jipe. A fuga poderia ter sido menos cansativa, mas assim sempre podia requisitar uma viatura nova no serviço.
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Deu logo com ele, apesar de bem integrado na paisagem. Um extraterrestre. Sem se mexer, a olhar para o alto como se procurasse o seu planeta. Ou então a rezar a algum deus daqueles dos céus. Parecia-lhe inofensivo, tão inofensivo como a superfície vertical a que se agarrava o melhor que podia. Mas mesmo assim, nunca fiando, pensou o pequeno explorador. O melhor era pôr-se a milhas, não fosse afinal o extraterrestre ser dos perigosos. Por isso correu o mais que podia, sem se atrever a olhar para trás para não perder tempo. Quando se achou a salvo, no cimo de um monte bem para lá da zona dos fenómenos, é que reparou que se tinha esquecido do jipe. A fuga poderia ter sido menos cansativa, mas assim sempre podia requisitar uma viatura nova no serviço.
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Mau, muito mau começo
Não gostei nada, mas mesmo nada, do Sporting 1 (Ronny) – Sunderland 3, o segundo jogo do Sporting esta época, agora para um troféu chamado «Albufeira Capital do Turismo». Claro que é apenas o começo de mais uma época, a preparação ainda é pouca, faltam jogadores e por aí adiante nas desculpas, mas contra equipas inglesas como esta (recheadas com os habituais jogadores sem um mínimo de jeito para o futebol) a obrigação do Sporting é ganhar nem que seja durante as férias.
A época passada foi preparada de uma forma deplorável, provavelmente como nenhuma outra nos últimos anos; quanto a esta época, pela amostra contra uma equipa realmente de segunda, que faz alarde em cada jogada de uma mediocridade gritante, que acabou com dez e sem treinador, vamos a ver o que aí vem. O ar anafado de Rochemback (bem estampado no rosto e sobretudo na papada) e a figura assustadora de Caneira na segunda parte, assim como o simbolismo da braçadeira de capitão num dos braços do disparatado Anderson Polga, não deixa antever nada de bom. Mas é cedo para desesperar; o melhor mesmo é esperar para ver no que dá.
Uma nota final… Na edição do ano passado (derrota do Sporting por penalties com o Guimarães), lembro-me de ter percebido em poucos minutos que o ponta-de-lança descoberto pelo sinistro Carlos Freitas (Purovic) iria ser um problema durante a época. Bastou o despropositado gigante andar um pouco em campo para ver, e depois a marcação de um dos penalties, a forma como rematou para um falhanço infantil. Percebi que ia haver problema, mas mesmo assim lembro-me de que esperava apenas falta de jeito e não a mais completa indigência futebolística; Purovic é seguramente o pior jogador que desde que vejo futebol alguma vez passou pelo ataque do Sporting. Agora não foi a Albufeira, mas parece que por pouco, porque a verdade é que apesar de Paulo Bento não o ter levado ele continua no plantel e eu duvido que haja algum responsável de um clube minimamente apresentável completamente louco a ponto de enfiar o mesmo barrete que o Sporting enfiou há um ano. Mas nunca se sabe, acaba por haver sempre gente para tudo...
A época passada foi preparada de uma forma deplorável, provavelmente como nenhuma outra nos últimos anos; quanto a esta época, pela amostra contra uma equipa realmente de segunda, que faz alarde em cada jogada de uma mediocridade gritante, que acabou com dez e sem treinador, vamos a ver o que aí vem. O ar anafado de Rochemback (bem estampado no rosto e sobretudo na papada) e a figura assustadora de Caneira na segunda parte, assim como o simbolismo da braçadeira de capitão num dos braços do disparatado Anderson Polga, não deixa antever nada de bom. Mas é cedo para desesperar; o melhor mesmo é esperar para ver no que dá.
Uma nota final… Na edição do ano passado (derrota do Sporting por penalties com o Guimarães), lembro-me de ter percebido em poucos minutos que o ponta-de-lança descoberto pelo sinistro Carlos Freitas (Purovic) iria ser um problema durante a época. Bastou o despropositado gigante andar um pouco em campo para ver, e depois a marcação de um dos penalties, a forma como rematou para um falhanço infantil. Percebi que ia haver problema, mas mesmo assim lembro-me de que esperava apenas falta de jeito e não a mais completa indigência futebolística; Purovic é seguramente o pior jogador que desde que vejo futebol alguma vez passou pelo ataque do Sporting. Agora não foi a Albufeira, mas parece que por pouco, porque a verdade é que apesar de Paulo Bento não o ter levado ele continua no plantel e eu duvido que haja algum responsável de um clube minimamente apresentável completamente louco a ponto de enfiar o mesmo barrete que o Sporting enfiou há um ano. Mas nunca se sabe, acaba por haver sempre gente para tudo...
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domingo, 20 de julho de 2008
Ignorância norte-americana
Os tipos do «The New York Times» recomendam uma viagem a Lisboa. De certeza que não conhecem este blog.
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sábado, 19 de julho de 2008
O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
Quase a superfície de outro planeta, isso deixaria o fogo atrás de si quando chegasse à estrada nacional, ao alcatrão, depois de esperado durante horas e horas, como se fosse um convidado importante.
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sexta-feira, 18 de julho de 2008
O fecho
Dia de fecho de mais uma edição da revista. Ontem. Saí de casa por volta das dez da manhã. A coisa prolongou-se pela noite fora (ou dentro, nem sei). Cheguei há pouco, em cima das oito da manhã, depois de ver o sol nascer por alturas de Pegões e de ter tomado o pequeno-almoço numa das bombas de Montemor, onde dei com um camionista e um automobilista com ar de pouca prática na estrada quase a andarem à pancada. Aqui pelo monte o Lito ainda dormia, mesmo com os cães todos a ladrarem.
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quinta-feira, 17 de julho de 2008
O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
Estavam à minha frente, alguns deles a fazerem um meio sorriso e a cruzarem os braços de diversas maneiras para ensaiarem uns ares de pose, como se pensassem que aquilo que eu tinha apanhado do chão não era um calhau mas uma máquina fotográfica.
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Estavam à minha frente, alguns deles a fazerem um meio sorriso e a cruzarem os braços de diversas maneiras para ensaiarem uns ares de pose, como se pensassem que aquilo que eu tinha apanhado do chão não era um calhau mas uma máquina fotográfica.
quarta-feira, 16 de julho de 2008
Um fax e pronto
Se fosse o Sócrates, mandava um fax e ficava doutor em menos de nada, sem chatices destas.
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O seleccionador «non grato»
Foi apresentado hoje o novo seleccionador nacional. Em vez de Carlos Queiroz, por umas declarações de Gilberto Madaíl eu cheguei a colocar a hipótese de o escolhido vir a ser José Antonio Camacho; ainda bem que não foi, embora depois de Scolari qualquer coisa servisse (isto faz-me lembrar um título de primeira página de um jornal desportivo há muitos, muitos anos, a seguir à saída do Benfica de uma ave raríssima chamada Pal Csernai – «Depois do húngaro, qualquer coisa serve»). Em relação a Carlos Queiroz, estou com o meu amigo Luís Bento, quando escreve que «devemos dar o benefício da dúvida» à escolha. Quero de qualquer forma lembrar uma coisa: agora temos um seleccionador nacional que por via de um decreto presidencial completamente idiota é considerado «persona non grata» no meu clube.
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Animal doméstico
O pequeno ouriço-cacheiro, agora já um animal doméstico. Provavelmente vai ganhar o nome de Dino.
(foto desta noite)
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Dois textos bem interessantes
De Jorge Reis-Sá (JRS), sobre o mundo português da edição; este e este. Aliás, nos últimos tempos o blog que JRS mantém tornou-se num dos mais desafiadores espaços de reflexão que conheço sobre estes temas.
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terça-feira, 15 de julho de 2008
O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
O deputado das barbas não parecia nada convencido, tanto que agarrou o secretário por um braço para lhe travar o passo.
– Exijo uma explicação imediata, ou melhor, exige a comissão!
E nisto virou-se para os colegas. Dos nove nem um que pestanejou, antes aguçaram todos os olhares, como se quisessem fulminar o secretário do presidente da câmara.
– Meus senhores, compreendam que se trata de um equívoco, algo que me acontece muitas vezes e que para vós, se por cá ganhassem a vida, não seria de estranhar.
O deputado das barbas largou o secretário repentinamente.
– Explique-se lá então, homem! O que é que queria dizer quando usou o termo «putas» ao mesmo tempo que olhava a comissão de frente?!
O deputado das barbas não parecia nada convencido, tanto que agarrou o secretário por um braço para lhe travar o passo.
– Exijo uma explicação imediata, ou melhor, exige a comissão!
E nisto virou-se para os colegas. Dos nove nem um que pestanejou, antes aguçaram todos os olhares, como se quisessem fulminar o secretário do presidente da câmara.
– Meus senhores, compreendam que se trata de um equívoco, algo que me acontece muitas vezes e que para vós, se por cá ganhassem a vida, não seria de estranhar.
O deputado das barbas largou o secretário repentinamente.
– Explique-se lá então, homem! O que é que queria dizer quando usou o termo «putas» ao mesmo tempo que olhava a comissão de frente?!
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segunda-feira, 14 de julho de 2008
Ainda há jantares grátis
O pequeno ouriço-cacheiro, ontem à noite, por aqui, a comer um pouco da ração dos gatos.
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Ouriços-cacheiros
Uma frase
«Quando em tempos veio anunciar que a crise tinha acabado, Manuel Pinho se tivesse juízo naquela cabeça teria ficado calado.»
Clara Ferreira Alves, na noite de sábado para domingo, na SIC Notícias («O Eixo do Mal»)
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Programa «O Eixo do Mal»
domingo, 13 de julho de 2008
E ainda há quem diga, ou escreva, que não há coincidências…
Um comentário de Tomás Vasques a propósito do post anterior fez-me lembrar do que se passou comigo aquando da publicação em Portugal do romance de Monica Ali «Alentejo Blue», que ele refere. Nunca falei muito disto… Eu tinha um livro para publicar nessa altura e que era para se chamar não «Alentejo Blue», mas «Alentejo Blues». Só que entretanto apareceu o da Monica Ali e pronto, tive de arranjar outro título à última hora. Mais... Até uma das fotos que estavam a ser consideradas para capa apareceu na capa da edição portuguesa do «Alentejo Blue». De forma que eu acabei por escolher para título «O que Entra nos Livros», e a foto de capa ficou a de uma conhecida rua de Évora (Alcárcova de Baixo). A foto foi comprada pela editora a um banco de imagens. Poucos dias depois de o meu romance ter saído, o homem que na foto caminha debaixo do arco foi identificado, através de um comentário deixado aqui no blog. Soube também mais tarde que esse homem costumava ler os meus livros.
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O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
Tudo na minha mente, a amparar cada movimento que eu fazia. Podia fechar os olhos, podia até tentar fazer-me de cego que mesmo assim não conseguia deixar de ver.
Tudo na minha mente, a amparar cada movimento que eu fazia. Podia fechar os olhos, podia até tentar fazer-me de cego que mesmo assim não conseguia deixar de ver.
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sábado, 12 de julho de 2008
A cara do pequeno ouriço
O pequeno ouriço-cacheiro que há umas noites fotografei em cima da mesa de trabalho e que depois, uma tarde, voltou e esteve a brincar com o meu filho no relvado... Há pouco – uns dez minutos –, por acaso, vi através de uma das janelas que estava a comer a comida dos gatos. Fui buscar a máquina fotográfica e a lanterna e esperei que acabasse. Quando se meteu a caminho do montado, saí de casa e fui até perto dele. Não se enrolou; limitou-se a parar, como acreditasse que não corria perigo. Por isso consegui apanhar-lhe a cara nas fotografias que tirei, ou o focinho… Não, a cara, prefiro dizer a cara. Fiquei com a ideia de que ele vai voltar mais vezes.
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Noite de 12.07.08,
Ouriços-cacheiros
O primeiro jogo
Primeiro jogo do Sporting esta época, ainda meio a brincar: Sporting 3 (Rochemback, Pereirinha e Celsinho), Atlético do Cacém 0.
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sexta-feira, 11 de julho de 2008
O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
E ele poderia muito bem atacar-me assim que eu abrisse a porta. Talvez estivesse em cima de uma mesa grande, aquela onde antes ficavam os sacos com a farinha, uma mesa que estava encostada à parede mesmo em frente da entrada. Apesar de velho, ele haveria de conseguir atirar-se num voo à maluca para me abalroar assim que eu transpusesse a soleira. Eu pensava nisto, mas não agia condicionado por esse pensamento. Era quase como se fosse um divertimento, um fascínio pelo risco, uma espécie de comportamento sádico contra mim próprio… Eu a pensar nos perigos que me poderiam esperar do lado de dentro da azenha e mesmo assim a entrar; eu a rodar a chave na fechadura, que rangia, muito, como se não quisesse ceder, como se lançasse um derradeiro aviso sobre o terrível Rasputine dos voos. Um aviso para mim, mas inevitavelmente também para ele, que dessa forma saberia que eu estava a entrar e que era tempo de começar a flectir as pernas para dar um bom impulso ao voo na minha direcção. O que esconderia na azenha aquele velho de longas barbas para tão empenhadamente querer defendê-la?
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E ele poderia muito bem atacar-me assim que eu abrisse a porta. Talvez estivesse em cima de uma mesa grande, aquela onde antes ficavam os sacos com a farinha, uma mesa que estava encostada à parede mesmo em frente da entrada. Apesar de velho, ele haveria de conseguir atirar-se num voo à maluca para me abalroar assim que eu transpusesse a soleira. Eu pensava nisto, mas não agia condicionado por esse pensamento. Era quase como se fosse um divertimento, um fascínio pelo risco, uma espécie de comportamento sádico contra mim próprio… Eu a pensar nos perigos que me poderiam esperar do lado de dentro da azenha e mesmo assim a entrar; eu a rodar a chave na fechadura, que rangia, muito, como se não quisesse ceder, como se lançasse um derradeiro aviso sobre o terrível Rasputine dos voos. Um aviso para mim, mas inevitavelmente também para ele, que dessa forma saberia que eu estava a entrar e que era tempo de começar a flectir as pernas para dar um bom impulso ao voo na minha direcção. O que esconderia na azenha aquele velho de longas barbas para tão empenhadamente querer defendê-la?
Talvez a PJ...
O presidente da Galp, Manuel Ferreira de Oliveira, disse numa entrevista ao «Expresso» qualquer coisa como «não gosto que nos chamem ladrões». Dias depois, foram divulgadas estas duas facturas (de antes e depois da descida do IVA), e imagine-se de que empresa são... O ministro da Economia chamou a ASAE, mas não sei se o melhor não teria sido chamar a PJ.
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quinta-feira, 10 de julho de 2008
A frase da noite
«José Miguel Júdice compara-me aos seus heróis da juventude, Hitler, Mussolini, José Antonio Primo de Rivera…»
António Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados,
numa entrevista a Judite de Sousa, na RTP
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Livros quase de cabeceira
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A literatura invadida pelas formigas
«Uma vez, melhor, um dia, pedi-lhe uma história para uma revista. Um conto. Pedi-lhe ao fim da tarde. Telefonei-lhe e pedi. O Luís nem disse que sim nem que não, disse apenas qualquer coisa como não valer a pena preocupar-me. No outro dia de manhã eu tinha a história na minha caixa de correio electrónico, enviada algures durante a madrugada. Uma história de formigas, cuja narradora – uma formiga, obviamente – dizia muitas vezes ‘a malta anda por todo o lado’, quase tantas vezes como um conhecido treinador de futebol diz ‘na realidade’ ou um desconhecido colega de um trabalho que tive no século passado dizia (se calhar ainda diz) ‘por conseguinte’.» Este é um excerto do prefácio que escrevi para um livro de contos do Luís Graça. Já o conto que pedi ao Luís é o que coloco abaixo; chama-se «Formiga Zé».
Formiga Zé
A malta anda por todo o lado. Essa é que é essa. Somos uma organização. Tem de ser. Sem organização não se faz nada. Já vivo há uns tempos em Vila Nova dos Carreirinhos e posso assegurar que as vias de comunicação estão bastante desenvolvidas.
Quando eu era miúdo, ainda nem conseguia carregar um grão de açúcar, andar à volta de uma bolacha já era uma verdadeira aventura. Agora não. A malta anda por todo o lado. Somos uma organização.
Este ano resolvemos ocupar a casa dos Fonseca, que fica no centro de Vila Nova dos Carreirinhos. Uma operação de média dimensão, apenas três brigadas de trezentas operárias cada. A brigada mais conceituada é a do Matias, que passou dois meses em África, num embondeiro. O Matias tirou um mestrado em marabuntas.
A brigada do Matias é essencialmente constituída por tropas de choque, que fazem escolta às carregadoras, que são basicamente formigas de leste, com formação superior e muito diligentes. A brigada do Matias foi destacada para a cozinha, com missões frequentes ao açucareiro, ao caixote do lixo e ao armário das loiças.
A malta anda por todo o lado e o Matias é um trabalhador qualificado. Claro que isso não invalida um número de baixas considerável, mas com as formigas é mesmo assim. Não temos a capacidade de fuga de uma melga ou a possibilidade de dissimulação de uma pulga.
Não, a malta anda por todo o lado mas tem as suas limitações. Nós, as formigas, temos um grande problema: a nossa costela germânica permite-nos ser altamente organizadas mas limita-nos sobremaneira a capacidade de improviso.
O sacana do filho do Fonseca deu-nos cabo de um mês de trabalho só por brincadeira. Nós tínhamos o quartel-general montado no interior da parede da cozinha. Um pequeno orifício permitia-nos transitar organizadamente de dentro para fora e de fora para dentro. Sempre em fila indiana, ao longo de uma linha imaginariamente traçada, com dois sentidos.
Pois, a malta anda por todo o lado, mas o filho do Fonseca resolveu obstruir o buraco da parede com um stick de cola UHU. Resultado: o quartel-general ficou completamente obstruído e levámos mais de um mês a abrir um buraco ao lado. Mal o filho do Fonseca descobriu, pôs-se a inventar. Partiu uma série de palitos e tapou o buraco à malta.
Pois. A malta anda por todo o lado, mas há lados por onde não devia andar. Nós, as formigas, somos pequeninas e perante fontes de calor muito elevadas não conseguimos resistir. Lastimo dizer que a patrulha da brigada do Menezes não resistiu. Entre as refeições, o fogão não é um local potencialmente perigoso. Nas férias dos Fonseca, as formiguitas mais novas até costumam ir para o fogão andar de skate. Mas há tempo para tudo. A hora das refeições não pode ser usada pelas formigas para atravessar o fogão.
Já saiu uma resma de circulares sobre o assunto, mas ainda assim as baixas continuam. É altamente frustrante para toda a comunidade. Também estamos fartos de avisar para não se circular em freelance. É perfeitamente suicida tentar angariar migalhas de pão ou de queque em manobras lunáticas. Qualquer um pode agarrar-se a um saco de guardanapo. É fácil subir para um tabuleiro e ficar agarrado a um saco de guardanapo. Damos de barato que se transita até via aérea da cozinha para a sala.
O problema é este: a malta anda por todo o lado, mas não pode permitir que os Fonseca nos identifiquem. Chegados a este ponto, estamos perfeitamente vulneráveis. Ora, qualquer formiga apanhada em campo aberto tem o destino marcado. A mesa da sala de jantar é um local de alto risco e de escasso abrigo. Até agora, o único sobrevivente de uma incursão à sala de jantar foi o Esteves Orelhas-Surdas.
E foi por um acaso do destino. Valeu-lhe subir para a manga da camisa do Fonseca, num instinto abençoado. O Fonseca foi para o duche e deitou a camisa para o alguidar da roupa suja, onde fomos dar com o Esteves Orelhas-Surdas, muito amarfanhado, debaixo de um par de cuecas e de meia dúzia de peúgas.
Apesar de todos os cuidados, há sempre necessidade de missões de elevada perigosidade. Por exemplo, uma vez por mês temos de ir buscar comida ao caixote do lixo, missão cumprida de noite, enquanto os Fonseca estão a dormir. O percurso é longo e sinuoso. Não adianta estar com paninhos quentes.
Se conseguirmos efectuar toda a operação durante a noite, muito bem. É coisa para umas cinco horas, porque a malta anda por todo o lado. O pior é se o filho dos Fonseca regressa às cinco da madrugada de uma saltada a uma discoteca da 24 de Julho. O idiota do puto, de brinquinho na orelha, gel no cabelo e olhar de bezerro, dá-lhe para vir carregado de shots e põe-se a matar formigas por diversão.
Nessas ocasiões, não há nada a fazer. É cada um por si. Mas pouca gente consegue sobreviver. É preciso manter o sangue-frio e tentar subir para as roupas do filho do Fonseca, permanecendo nelas o tempo que for necessário. É imperioso evitar a circulação por áreas mais sensíveis, como por exemplo o pescoço, as bochechas ou as costas da mão. A malta anda por todo o lado, mas tem de saber que há lados por onde não deve andar. Nomeadamente, os lados em que os humanos são mais sensíveis aos nossos passos. Numa fracção de segundo se perde uma vida.
Eu estou há cinco meses em Vila Nova dos Carreirinhos e há três semanas em casa dos Fonseca. Sou um veterano de quinta comissão. Estas tour of duty são registadas em acta no «Livro de Missões, Omissões e Demais Circulações».
Já ganhei duas «Purple Heart» por bravura para além do exigível. Salvei o Chiquinho Antena-Mole de ser lambido pelo cão dos Fonseca, que já o tinha farejado. O Chiquinho Antena-Mole ainda podia andar, mas estava todo molhado pelo nariz do cão. Eu andava por ali e mandei uma patrulha efectuar uma manobra de diversão em cima do osso do cão. Enquanto o cão agarrava no osso, pus o Chiquinho Antena-Mole a salvo. Sei que não devia ter arriscado uma patrulha numa operação tão delicada, mas andei com o Chiquinho Antena-Mole na Escola de Sargentos e não o podia deixar ser lambido por um Pékinois castanho que passa a vida a arfar e a ganir.
A malta anda por todo o lado, mas o que perturba sobremaneira a nossa vida é o desaparecimento súbito de uma brigada. Basta um dos Fonseca mudar uma coisa de lugar de modo imprevisto. Sabem como é. Por exemplo: a malta está a empanturrar-se na casca de uma banana, esquecida há duas horas em cima da máquina de lavar. Vem a mãe Fonseca e manda a casca para o caixote do lixo. Se ficarem três ou quatro formigas em cima da máquina de lavar, está tudo estragado. Perdem por completo o sentido de orientação. Sem o chefe de brigada, qualquer formiga fica completamente à toa.
A malta anda por todo o lado e sabe os perigos que nos espreitam, mas também não há necessidade nenhuma de morrer de forma gratuita. O sofrimento é geralmente reduzido, valha-nos isso. Os humanos costumam esmagar-nos entre o polegar e o indicador e depois fazem uma pequena bolinha.
Os mais perversos vão buscar os binóculos para tentar perceber as razões da nossa maneira de agir, mas eu acho que tudo não passa de desvarios sexuais e desvios. Os humanos estão firmemente convencidos de que nós somos todas pretas, o que é uma asneira enorme, como é sabido. Qualquer ser inteligente tem consciência de que o nosso corpo é alaranjado e a aparência negra não passa disso mesmo: uma aparência.
Ultimamente, o Grão-Mestre Florindo tem vindo a trabalhar num projecto ultra-secreto. Está a estudar a viabilidade de pilhar a pasta de dentes aos humanos. Até aqui temos vindo a concentrar-nos em alimentos simples, como migalhas, minúsculos restos de comida, coisas assim. Mas a partir de agora criou-se a possibilidade de nos alimentarmos de pingos de pasta de dentes. Mandámos já vários agentes ao lavatório da casa de banho, mas os resultados têm sido desanimadores.
O Pereira Kamikaze chegou ao lavatório, identificou um pingo, aproximou-se, recolheu uma amostra e regressou ao quartel-general. Poderia pensar-se que tudo correu bem, mas não é verdade. O Pereira Kamikaze morreu um dia depois, com uma overdose de Colgate, antes mesmo de ter podido escrever o relatório.
Quanto ao Carlitos Spidado, não conseguiu usar o discernimento para regressar à base e saiu de casa dos Fonseca sem se aperceber do facto, depois de ter cumprido o percurso para o lavatório sem problemas. Pensa-se que esteja a viver na casa dos Lopes, mas é mera conjectura. Talvez lá mais para o Verão se consiga esboçar uma certeza.
O Jimbrinhas Xoné foi liquidado sem hipóteses de se defender, enquanto tentava passar da torneira para o lavatório, pendurando-se na corrente da tampinha do ralo. Desequilibrou-se e foi pelo cano.
De modo que o projecto ultra-secreto do Grão-Mestre Florindo não tem corrido grandes riscos de divulgação. Todos os que trabalharam nele deram a alma ao Criador.
Agora quando penso que há cães presos às casotas por uma corrente, sinto-me orgulhoso e sei que a malta anda por todo o lado.
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Formiga Zé
Um conto de Luís Graça
A malta anda por todo o lado. Essa é que é essa. Somos uma organização. Tem de ser. Sem organização não se faz nada. Já vivo há uns tempos em Vila Nova dos Carreirinhos e posso assegurar que as vias de comunicação estão bastante desenvolvidas.
Quando eu era miúdo, ainda nem conseguia carregar um grão de açúcar, andar à volta de uma bolacha já era uma verdadeira aventura. Agora não. A malta anda por todo o lado. Somos uma organização.
Este ano resolvemos ocupar a casa dos Fonseca, que fica no centro de Vila Nova dos Carreirinhos. Uma operação de média dimensão, apenas três brigadas de trezentas operárias cada. A brigada mais conceituada é a do Matias, que passou dois meses em África, num embondeiro. O Matias tirou um mestrado em marabuntas.
A brigada do Matias é essencialmente constituída por tropas de choque, que fazem escolta às carregadoras, que são basicamente formigas de leste, com formação superior e muito diligentes. A brigada do Matias foi destacada para a cozinha, com missões frequentes ao açucareiro, ao caixote do lixo e ao armário das loiças.
A malta anda por todo o lado e o Matias é um trabalhador qualificado. Claro que isso não invalida um número de baixas considerável, mas com as formigas é mesmo assim. Não temos a capacidade de fuga de uma melga ou a possibilidade de dissimulação de uma pulga.
Não, a malta anda por todo o lado mas tem as suas limitações. Nós, as formigas, temos um grande problema: a nossa costela germânica permite-nos ser altamente organizadas mas limita-nos sobremaneira a capacidade de improviso.
O sacana do filho do Fonseca deu-nos cabo de um mês de trabalho só por brincadeira. Nós tínhamos o quartel-general montado no interior da parede da cozinha. Um pequeno orifício permitia-nos transitar organizadamente de dentro para fora e de fora para dentro. Sempre em fila indiana, ao longo de uma linha imaginariamente traçada, com dois sentidos.
Pois, a malta anda por todo o lado, mas o filho do Fonseca resolveu obstruir o buraco da parede com um stick de cola UHU. Resultado: o quartel-general ficou completamente obstruído e levámos mais de um mês a abrir um buraco ao lado. Mal o filho do Fonseca descobriu, pôs-se a inventar. Partiu uma série de palitos e tapou o buraco à malta.
***
Bem, não vou negar que isso nos causou sérios engulhos, mas a malta anda por todo o lado. Demos a volta à situação, literalmente. Embora tenha havido alguns danos colaterais. Uma patrulha da brigada do Menezes perdeu-se e foi parar ao fogão. Até aqui, nada de especial. O pior é que estava na hora do almoço e a mulher do Fonseca foi pôr as panelas ao lume.Pois. A malta anda por todo o lado, mas há lados por onde não devia andar. Nós, as formigas, somos pequeninas e perante fontes de calor muito elevadas não conseguimos resistir. Lastimo dizer que a patrulha da brigada do Menezes não resistiu. Entre as refeições, o fogão não é um local potencialmente perigoso. Nas férias dos Fonseca, as formiguitas mais novas até costumam ir para o fogão andar de skate. Mas há tempo para tudo. A hora das refeições não pode ser usada pelas formigas para atravessar o fogão.
Já saiu uma resma de circulares sobre o assunto, mas ainda assim as baixas continuam. É altamente frustrante para toda a comunidade. Também estamos fartos de avisar para não se circular em freelance. É perfeitamente suicida tentar angariar migalhas de pão ou de queque em manobras lunáticas. Qualquer um pode agarrar-se a um saco de guardanapo. É fácil subir para um tabuleiro e ficar agarrado a um saco de guardanapo. Damos de barato que se transita até via aérea da cozinha para a sala.
O problema é este: a malta anda por todo o lado, mas não pode permitir que os Fonseca nos identifiquem. Chegados a este ponto, estamos perfeitamente vulneráveis. Ora, qualquer formiga apanhada em campo aberto tem o destino marcado. A mesa da sala de jantar é um local de alto risco e de escasso abrigo. Até agora, o único sobrevivente de uma incursão à sala de jantar foi o Esteves Orelhas-Surdas.
E foi por um acaso do destino. Valeu-lhe subir para a manga da camisa do Fonseca, num instinto abençoado. O Fonseca foi para o duche e deitou a camisa para o alguidar da roupa suja, onde fomos dar com o Esteves Orelhas-Surdas, muito amarfanhado, debaixo de um par de cuecas e de meia dúzia de peúgas.
Apesar de todos os cuidados, há sempre necessidade de missões de elevada perigosidade. Por exemplo, uma vez por mês temos de ir buscar comida ao caixote do lixo, missão cumprida de noite, enquanto os Fonseca estão a dormir. O percurso é longo e sinuoso. Não adianta estar com paninhos quentes.
***
É preciso atravessar toda a parede da cozinha, passar por cima do lava-loiças, fazer agulha para o cabide das colheres de pau e descer para o caixote através do pano da loiça. Depois, é preciso seleccionar os géneros e trazer a comida para o quartel-general.Se conseguirmos efectuar toda a operação durante a noite, muito bem. É coisa para umas cinco horas, porque a malta anda por todo o lado. O pior é se o filho dos Fonseca regressa às cinco da madrugada de uma saltada a uma discoteca da 24 de Julho. O idiota do puto, de brinquinho na orelha, gel no cabelo e olhar de bezerro, dá-lhe para vir carregado de shots e põe-se a matar formigas por diversão.
Nessas ocasiões, não há nada a fazer. É cada um por si. Mas pouca gente consegue sobreviver. É preciso manter o sangue-frio e tentar subir para as roupas do filho do Fonseca, permanecendo nelas o tempo que for necessário. É imperioso evitar a circulação por áreas mais sensíveis, como por exemplo o pescoço, as bochechas ou as costas da mão. A malta anda por todo o lado, mas tem de saber que há lados por onde não deve andar. Nomeadamente, os lados em que os humanos são mais sensíveis aos nossos passos. Numa fracção de segundo se perde uma vida.
Eu estou há cinco meses em Vila Nova dos Carreirinhos e há três semanas em casa dos Fonseca. Sou um veterano de quinta comissão. Estas tour of duty são registadas em acta no «Livro de Missões, Omissões e Demais Circulações».
Já ganhei duas «Purple Heart» por bravura para além do exigível. Salvei o Chiquinho Antena-Mole de ser lambido pelo cão dos Fonseca, que já o tinha farejado. O Chiquinho Antena-Mole ainda podia andar, mas estava todo molhado pelo nariz do cão. Eu andava por ali e mandei uma patrulha efectuar uma manobra de diversão em cima do osso do cão. Enquanto o cão agarrava no osso, pus o Chiquinho Antena-Mole a salvo. Sei que não devia ter arriscado uma patrulha numa operação tão delicada, mas andei com o Chiquinho Antena-Mole na Escola de Sargentos e não o podia deixar ser lambido por um Pékinois castanho que passa a vida a arfar e a ganir.
A malta anda por todo o lado, mas o que perturba sobremaneira a nossa vida é o desaparecimento súbito de uma brigada. Basta um dos Fonseca mudar uma coisa de lugar de modo imprevisto. Sabem como é. Por exemplo: a malta está a empanturrar-se na casca de uma banana, esquecida há duas horas em cima da máquina de lavar. Vem a mãe Fonseca e manda a casca para o caixote do lixo. Se ficarem três ou quatro formigas em cima da máquina de lavar, está tudo estragado. Perdem por completo o sentido de orientação. Sem o chefe de brigada, qualquer formiga fica completamente à toa.
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Já fiz milhentos requerimentos ao ministro do Equipamento Social, mas as novas antenas com GPS alcalino ainda estão empanadas na alfândega. Assim é muito mais difícil, não só trabalhar em condições como sobreviver.A malta anda por todo o lado e sabe os perigos que nos espreitam, mas também não há necessidade nenhuma de morrer de forma gratuita. O sofrimento é geralmente reduzido, valha-nos isso. Os humanos costumam esmagar-nos entre o polegar e o indicador e depois fazem uma pequena bolinha.
Os mais perversos vão buscar os binóculos para tentar perceber as razões da nossa maneira de agir, mas eu acho que tudo não passa de desvarios sexuais e desvios. Os humanos estão firmemente convencidos de que nós somos todas pretas, o que é uma asneira enorme, como é sabido. Qualquer ser inteligente tem consciência de que o nosso corpo é alaranjado e a aparência negra não passa disso mesmo: uma aparência.
Ultimamente, o Grão-Mestre Florindo tem vindo a trabalhar num projecto ultra-secreto. Está a estudar a viabilidade de pilhar a pasta de dentes aos humanos. Até aqui temos vindo a concentrar-nos em alimentos simples, como migalhas, minúsculos restos de comida, coisas assim. Mas a partir de agora criou-se a possibilidade de nos alimentarmos de pingos de pasta de dentes. Mandámos já vários agentes ao lavatório da casa de banho, mas os resultados têm sido desanimadores.
O Pereira Kamikaze chegou ao lavatório, identificou um pingo, aproximou-se, recolheu uma amostra e regressou ao quartel-general. Poderia pensar-se que tudo correu bem, mas não é verdade. O Pereira Kamikaze morreu um dia depois, com uma overdose de Colgate, antes mesmo de ter podido escrever o relatório.
Quanto ao Carlitos Spidado, não conseguiu usar o discernimento para regressar à base e saiu de casa dos Fonseca sem se aperceber do facto, depois de ter cumprido o percurso para o lavatório sem problemas. Pensa-se que esteja a viver na casa dos Lopes, mas é mera conjectura. Talvez lá mais para o Verão se consiga esboçar uma certeza.
O Jimbrinhas Xoné foi liquidado sem hipóteses de se defender, enquanto tentava passar da torneira para o lavatório, pendurando-se na corrente da tampinha do ralo. Desequilibrou-se e foi pelo cano.
De modo que o projecto ultra-secreto do Grão-Mestre Florindo não tem corrido grandes riscos de divulgação. Todos os que trabalharam nele deram a alma ao Criador.
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Quanto a mim, por vezes fico a pensar em qual será o significado da nossa existência, sempre em fila para algum lado, sempre à cata de uma migalhita como se fosse a coisa mais importante do mundo. Às vezes ponho-me a pensar: e se a malta andasse sozinha, em vez destas manias de andar sempre em carreirinho, umas atrás das outras?Agora quando penso que há cães presos às casotas por uma corrente, sinto-me orgulhoso e sei que a malta anda por todo o lado.
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quarta-feira, 9 de julho de 2008
A falta de vergonha da SEDES
A SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social) divulgou por estes dias uma «tomada de posição» sobre aquilo que designa como «O Estado da Nação», em que acusa o governo de eleitoralismo, nomeadamente referindo que este «dá agora sinais de preocupação com o calendário eleitoral em detrimento da administração do país». Não me vou alongar em considerações sobre tal opinião. Aquilo que me choca é o facto de esta associação, parecendo desligar-se de um passado de quase quatro décadas em que construiu um enorme prestígio, ter agora a presidir ao seu Conselho Coordenador nem mais nem menos do que Luís Campos e Cunha, que numa fugaz e bem triste passagem pelo actual governo se tornou numa das figuras que mais enlameou a política portuguesa no pós-25 de Abril.
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O que vou escrevendo
Um pouco do que vou escrevendo…
Aproximei-me devagar da porta da azenha. Não sabia bem o que fazer, tinha apenas decidido não perguntar se estava alguém lá dentro, nem em voz alta, nem como se perguntasse apenas a mim próprio, com a voz sumida.
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Em defesa da honra de um gato amarelo
Este post serve apenas para mostrar ao Luís Graça e ao António Souto que o Lito não passa a vida a dormir. Até costuma acompanhar os quatro cães em longos passeios.
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terça-feira, 8 de julho de 2008
Uma surpresa
Ontem à tarde este pequeno ouriço-cacheiro voltou aqui ao monte. Não o vi porque estava em Lisboa, mas depois contaram-me. O meu filho deu com ele na relva e os dois estiveram por um bocado na brincadeira; já se vê que mais o meu filho, ainda bem pequenino, porque o ouriço ficou o tempo todo feito uma bola. Até que o meu filho se cansou e foi brincar com outras coisas, e então o pequeno ouriço voltou para o montado. Podia ser outro, igualmente pequeno, mas pela descrição que ouvi tenho quase a certeza de que era o mesmo de sexta à noite.
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Ainda a Margarida na capa
Ainda a polémica sobre a capa da revista «Ler» com Margarida Rebelo Pinto. Esta é a melhor reflexão que li sobre o assunto, da autoria de Osvaldo Manuel Silvestre.
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O lago
segunda-feira, 7 de julho de 2008
Uma entrevista inventada
Tinha de ser o Luís Graça. Fez uma entrevista comigo em que eu nem tive de mexer uma palha. Ou seja, ele fez as perguntas e de caminho deu logo as respostas. Disse-me que é para uma revista chamada «Guttenborgas», não sei se literária se de carácter generalista ou se outra coisa qualquer. Eu que só bebo água e um ou outro sumo, nesta entrevista farto-me de beber vinho e creio que whisky, ou martinis. E mais, não tendo muito jeito para falar, acabo aqui por ter um discurso fluente; e por vender muitos livros e dar muitos autógrafos; e por ter filhos com nomes estranhíssimos, embora, digamos assim, literários. Bom, mas adiante com a entrevista…
António Manuel Venda
«Comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago»
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A caminhar fortemente para os 40 anos, o escritor António Manuel Venda passa os dias entre Montemor e Lisboa, mas os maiores incêndios que provocou ocorreram em Monchique, em épicas batalhas florais com o presidente da edilidade, Carlos Tuta. Mais veemente como vereador do que como escritor, o pão para a mesa é ganho numa revista, de que é director. Modesto, António Manuel Venda não é de grandes polémicas. E só não estranhámos o seu tom provocador nesta entrevista para a revista Guttenborgas porque tanto o entrevistador como o entrevistado estavam completamente bêbedos. Assim aconteceu. Porque os 39 graus de Montemor e uma viagem atribulada entre Lisboa e o Alentejo nos predispuseram para o álcool e as confidências. Ter as páginas do «DN Jovem» no sangue é algo que constrói laços. Desses e doutros laços vos falamos nesta entrevista.
António Manuel Venda
«Comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago»
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A caminhar fortemente para os 40 anos, o escritor António Manuel Venda passa os dias entre Montemor e Lisboa, mas os maiores incêndios que provocou ocorreram em Monchique, em épicas batalhas florais com o presidente da edilidade, Carlos Tuta. Mais veemente como vereador do que como escritor, o pão para a mesa é ganho numa revista, de que é director. Modesto, António Manuel Venda não é de grandes polémicas. E só não estranhámos o seu tom provocador nesta entrevista para a revista Guttenborgas porque tanto o entrevistador como o entrevistado estavam completamente bêbedos. Assim aconteceu. Porque os 39 graus de Montemor e uma viagem atribulada entre Lisboa e o Alentejo nos predispuseram para o álcool e as confidências. Ter as páginas do «DN Jovem» no sangue é algo que constrói laços. Desses e doutros laços vos falamos nesta entrevista.
Texto: Luís Graça
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. «The more I give, the more you want.» (Barry White)
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Esta é uma verdade inconveniente. Quando mais damos à escrita, mais ela exige. António Manuel Venda já deu bastante.
Revista Guttenborgas (RG) – Já deste bastante à escrita. Achas que a escrita te deu o suficiente?
[o escritor olhou para o infinito, fez uma festa no Monge, um dos seus três cães de raça Labrador, tomou um gole bem aviado de «Monte das Servas 2003», tinto]
António Manuel Venda (AMV) – Pá, isso é uma pergunta tramada para começar a entrevista... O que é que te posso dizer? Para já, não escrevo por vaidade, para ser o Nobel mais conhecido de Montemor... Escrevo porque tem de ser, porque me faz falta... A escrita já me deu bastante, mas ainda não me deu o suficiente. Por isso é que todos os escritores continuam a escrever. Acho que se perguntassem a todos os escritores, na hora da morte, se eles gostariam de ter mais um mês de vida para escrever, todos responderiam que sim.
RV – Tens alguma mágoa com os livros que escreveste até agora?
AMV – Tenho. Sinceramente. E não é por apenas vender uns 30 mil por edição. Vender é uma coisa secundária, que vem por acréscimo. Vendo mais ou menos o mesmo que um livro do Mário de Carvalho, o que não é mau, tendo em conta o valor literário dele. O que me magoa é não conseguir chegar aos leitores de forma mais corrente. Gosto de estar a dar autógrafos na Feira do Livro, a de Lisboa. Dou uns 100 ou 150 autógrafos naquelas duas horas em que lá estou. Mas a maior parte das vezes eu percebo que os leitores não compreenderam as minhas mensagens.
RV – És um escritor de mensagens?
[o Monge apareceu com algo na boca e preparava-se para provocar o Lito, um gato amarelo, de feitio alentejano, vocacionado para dormir e comer; o escritor conseguiu afugentar o cão para longe; o Lito abriu um olho e tornou a deitar a cabeça em cima do último exemplar da revista «Os Meus Livros»]
AMV – O que é isso de ser um escritor de mensagens? Dito assim parece uma coisa um bocado intelectual, no mau sentido do termo. Eu quero... Sei lá o que quero... Sei, por acaso até sei... Quero que percebam o sentido das coisas que escrevo. Mas isso é o que toda a gente quer, desde a Margarida Rebelo Pinto ao Saramago e ao Lobo Antunes, passando pelo Geofrey Stokes...
[elevámos uma sobrancelha; podia ser falha nossa, mas nunca tínhamos ouvido falar de Geofrey Stokes]
RG – Geofrey Stokes?...
AMV – Sim, Geofrey Stokes. Não conheces? Pois é. Se eu falar do Barnaby Nickleby toda a gente já leu «Nas Asas de Um Engano». Ou a poesia da Mafalda Chambel. Mas ninguém sabe que o Stokes escreveu uma verdadeira obra-prima com «A Besta Escondida». Disse-me o Luís Oliveira, da Antígona, que foi a melhor coisa que editou nos últimos cinco anos.
[parámos a entrevista para o jantar; tomámos alguns martinis dos novos e depois fomos levar os cães a passear; António Manuel Venda não esqueceu a máquina fotográfica e durante a hora e meia que durou o passeio deixei-me invadir por uma orgia de beleza e harmonia; foi o meu momento Júlio Roberto; no regresso, jantámos maravilhosamente e eu caí pela primeira vez; efeito da meia-garrafa de «Esporão»; e depois fomos até uns sofás-baloiço e eu carreguei outra vez no botão do gravador Sony, o que diz «rec»]
RG – O Beaudelaire disse que devíamos andar sempre bêbedos. Achas que um escritor devia ser obrigado a estar bêbedo quando escreve, para ser mais autêntico?
AMV – Olha, acho que sim. Mas bêbedo a sério, como nós estamos agora. Não é bêbedo a brincar. É bêbedo à Hemingway, à Jack London... Porque há para aí escritores que se estiverem bêbedos a brincar continuam sem escrever nada de jeito...
RG – Costumas ler muito?
AMV – Só não leio mais porque não tenho tempo. Até na auto-estrada eu leio, entre Lisboa e Montemor...
RG – Isso não é perigoso? Ler e conduzir ao mesmo tempo...
AMV – Só é perigoso se o livro for mau. Especula-se demasiado com o que é perigoso na estrada. Devia era haver uma ASAE da literatura. Por exemplo, apanhava-se uma miúda de 14 anos acampada na Expo à espera do concerto dos Tokyo Hotel e via-se logo o que a miúda estava a ler... O que é isso que estás a ler? Margarida Rebelo Pinto? Bem, como vais ao concerto dos Tokyo Hotel podes continuar a ler. Se fosses para um concerto dos Corrs ficavas já sem o livro...
RG – Já que referes Margarida Rebelo Pinto… Se pudesses escolher um português para o Nobel, em quem recairia a tua escolha? Lobo Antunes ou Saramago?
AMV – Nem um nem outro. Para mim era de caras o padre António Vieira. Ou o Joaquim Paço d’Arcos. Ou o Geofrey Stokes, se ele fizesse como o Pepe e se naturalizasse português, e se largasse Dublin. Tirando o clima, Montemor é muito parecido com Dublin.
RG – Não reconheces méritos literários a Lobo Antunes e a Saramago?
[o escritor olhou para mim, suspirou, fez uns gestos no ar, tentou apanhar uma melga que tinha pousado em cima da orelha direita do Lito, ganhou fôlego e respondeu]
AMV – Pá, comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago.
RG – Explica-te lá.
AMV – Não dá para explicar. É uma coisa que se sente. É outra gramática emocional. Não quero dizer que sou melhor ou pior. Mas sinto que o Lobo Antunes comparado comigo não passa de um Saramago. Ou que o Miguel Sousa Tavares comparado com o José Rodrigues dos Santos não passa de uma Margarida Rebelo Pinto... Já não sei bem o que digo... Olha lá, não devíamos ter comido as empadinhas na estação de serviço... Que horas são isto? Eh, pá, três da madrugada e ainda estão uns 30 graus... Ainda bem que amanhã é sábado e não tenho de ir para Lisboa...
RG – Amanhã é domingo...
AMV – Pois. Não interessa… O que eu queria dizer é que não tenho de me fazer à estrada...
[ouviu-se um «clic» do gravador; estava na hora de acabar a entrevista]
RG – Tens projectos para o futuro, em termos literários?
AMV – Estava a ver que não fazias essa pergunta. É muito original...
RG – É o que há. Dói-me a cabeça. Amanhã devo estar com uma ressaca bonita…
AMV – Nunca discuto a beleza de uma ressaca…
RG – Diz lá o que andas a escrever.
AMV – Há muita coisa em carteira, por assim dizer. Primeiro, um livro de contos para a «Esfera dos Crivos».
RG – Já tens título?
AMV – Em princípio vai ser «De Montemor e dos Algarves», mas ainda não é certo. Pode ser que fique «Monchique, Mon Genre», mas o Zé Barnabé diz que há gente que não percebe o trocadilho com «bon chic, bon genre». Nestas coisas, convém ouvir o editor...
RG – Estás muito adiantado?
AMV – Mais um ou dois contos e depois começo a rever. Mas tenho entremeado com um novo romance.
RG – Chama-se?...
AMV – «O Meco Longe de Ti». Passa-se nos anos sessenta, entre a Costa da Caparica e a Praia do Meco. É um romance de costumes. Terá uma costela do «Sinais de Fogo», do Sena. O processo de escrita é mais o do Cardoso Pires, mas quem ler as primeiras páginas vai notar algumas influências do Vergílio Ferreira no «Manhã Submersa» ou do Carlos de Oliveira de «Uma Abelha na Chuva». Enfim, eu não tenho bem a noção do que estou a escrever, durante o processo. De resto, quem notou estas influências foi o meu filho mais novo.
RG – O Flauberto agora está com quantos?
AMV – Está com doze, mas quem costuma ler os meus livros em primeiro lugar é o Mopassânico, que tem dez.
RG – E ele já leu isso tudo, aos dez anos?
AMV – Já. Para desenjoar da banda desenhada japonesa e da Playstation.
RG – Deixas os teus miúdos horas e horas à frente da Playstation?
AMV – Ó pá, em primeiro lugar isto é Montemor. Em segundo lugar, num mundo de margaridas, que mal tem a Playstation?
RG – Falaste outra vez de Margarida Rebelo Pinto por algum motivo particular?
AMV – Não, tu é que estás a falar. Olha, já bebia qualquer coisa. Vamos para a sala de snooker?
RG – Eh, pá, eu vejo as bolas todas duas vezes…
AMV – Quem é que vai jogar? Tenho lá um scotch de doze anos que é um mimo... Traz aí o gato... Espera, deixa-me meter-lhe a trela, que já dá para arrastares...
RG – Isso não magoa o gajo?
AMV – Não. Ele é lixado quando dorme. Ferra o galho e é do caraças.
RG – Não podias simplesmente pegar-lhe ao colo?
AMV – Quer dizer, para o ano há toiros de morte em Montemor e tu estás preocupado com isto de levar o gato de rojo enquanto dorme...
[duas horas depois adormeci; quando a amizade existe entre dois seres humanos, falar de literatura é um simples exercício de lógica; na segunda-feira seguinte cheguei à redacção da revista e o editor perguntou-me: «Então essa entrevista com o Venda? Correu bem?»; disse-lhe que sim, puxei de um cigarro, fui para o pé da nova estagiária meter conversa e passadas umas horas atirei-me à desgravação]
Esta é uma verdade inconveniente. Quando mais damos à escrita, mais ela exige. António Manuel Venda já deu bastante.
Revista Guttenborgas (RG) – Já deste bastante à escrita. Achas que a escrita te deu o suficiente?
[o escritor olhou para o infinito, fez uma festa no Monge, um dos seus três cães de raça Labrador, tomou um gole bem aviado de «Monte das Servas 2003», tinto]
António Manuel Venda (AMV) – Pá, isso é uma pergunta tramada para começar a entrevista... O que é que te posso dizer? Para já, não escrevo por vaidade, para ser o Nobel mais conhecido de Montemor... Escrevo porque tem de ser, porque me faz falta... A escrita já me deu bastante, mas ainda não me deu o suficiente. Por isso é que todos os escritores continuam a escrever. Acho que se perguntassem a todos os escritores, na hora da morte, se eles gostariam de ter mais um mês de vida para escrever, todos responderiam que sim.
RV – Tens alguma mágoa com os livros que escreveste até agora?
AMV – Tenho. Sinceramente. E não é por apenas vender uns 30 mil por edição. Vender é uma coisa secundária, que vem por acréscimo. Vendo mais ou menos o mesmo que um livro do Mário de Carvalho, o que não é mau, tendo em conta o valor literário dele. O que me magoa é não conseguir chegar aos leitores de forma mais corrente. Gosto de estar a dar autógrafos na Feira do Livro, a de Lisboa. Dou uns 100 ou 150 autógrafos naquelas duas horas em que lá estou. Mas a maior parte das vezes eu percebo que os leitores não compreenderam as minhas mensagens.
RV – És um escritor de mensagens?
[o Monge apareceu com algo na boca e preparava-se para provocar o Lito, um gato amarelo, de feitio alentejano, vocacionado para dormir e comer; o escritor conseguiu afugentar o cão para longe; o Lito abriu um olho e tornou a deitar a cabeça em cima do último exemplar da revista «Os Meus Livros»]
AMV – O que é isso de ser um escritor de mensagens? Dito assim parece uma coisa um bocado intelectual, no mau sentido do termo. Eu quero... Sei lá o que quero... Sei, por acaso até sei... Quero que percebam o sentido das coisas que escrevo. Mas isso é o que toda a gente quer, desde a Margarida Rebelo Pinto ao Saramago e ao Lobo Antunes, passando pelo Geofrey Stokes...
[elevámos uma sobrancelha; podia ser falha nossa, mas nunca tínhamos ouvido falar de Geofrey Stokes]
RG – Geofrey Stokes?...
AMV – Sim, Geofrey Stokes. Não conheces? Pois é. Se eu falar do Barnaby Nickleby toda a gente já leu «Nas Asas de Um Engano». Ou a poesia da Mafalda Chambel. Mas ninguém sabe que o Stokes escreveu uma verdadeira obra-prima com «A Besta Escondida». Disse-me o Luís Oliveira, da Antígona, que foi a melhor coisa que editou nos últimos cinco anos.
[parámos a entrevista para o jantar; tomámos alguns martinis dos novos e depois fomos levar os cães a passear; António Manuel Venda não esqueceu a máquina fotográfica e durante a hora e meia que durou o passeio deixei-me invadir por uma orgia de beleza e harmonia; foi o meu momento Júlio Roberto; no regresso, jantámos maravilhosamente e eu caí pela primeira vez; efeito da meia-garrafa de «Esporão»; e depois fomos até uns sofás-baloiço e eu carreguei outra vez no botão do gravador Sony, o que diz «rec»]
RG – O Beaudelaire disse que devíamos andar sempre bêbedos. Achas que um escritor devia ser obrigado a estar bêbedo quando escreve, para ser mais autêntico?
AMV – Olha, acho que sim. Mas bêbedo a sério, como nós estamos agora. Não é bêbedo a brincar. É bêbedo à Hemingway, à Jack London... Porque há para aí escritores que se estiverem bêbedos a brincar continuam sem escrever nada de jeito...
RG – Costumas ler muito?
AMV – Só não leio mais porque não tenho tempo. Até na auto-estrada eu leio, entre Lisboa e Montemor...
RG – Isso não é perigoso? Ler e conduzir ao mesmo tempo...
AMV – Só é perigoso se o livro for mau. Especula-se demasiado com o que é perigoso na estrada. Devia era haver uma ASAE da literatura. Por exemplo, apanhava-se uma miúda de 14 anos acampada na Expo à espera do concerto dos Tokyo Hotel e via-se logo o que a miúda estava a ler... O que é isso que estás a ler? Margarida Rebelo Pinto? Bem, como vais ao concerto dos Tokyo Hotel podes continuar a ler. Se fosses para um concerto dos Corrs ficavas já sem o livro...
RG – Já que referes Margarida Rebelo Pinto… Se pudesses escolher um português para o Nobel, em quem recairia a tua escolha? Lobo Antunes ou Saramago?
AMV – Nem um nem outro. Para mim era de caras o padre António Vieira. Ou o Joaquim Paço d’Arcos. Ou o Geofrey Stokes, se ele fizesse como o Pepe e se naturalizasse português, e se largasse Dublin. Tirando o clima, Montemor é muito parecido com Dublin.
RG – Não reconheces méritos literários a Lobo Antunes e a Saramago?
[o escritor olhou para mim, suspirou, fez uns gestos no ar, tentou apanhar uma melga que tinha pousado em cima da orelha direita do Lito, ganhou fôlego e respondeu]
AMV – Pá, comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago.
RG – Explica-te lá.
AMV – Não dá para explicar. É uma coisa que se sente. É outra gramática emocional. Não quero dizer que sou melhor ou pior. Mas sinto que o Lobo Antunes comparado comigo não passa de um Saramago. Ou que o Miguel Sousa Tavares comparado com o José Rodrigues dos Santos não passa de uma Margarida Rebelo Pinto... Já não sei bem o que digo... Olha lá, não devíamos ter comido as empadinhas na estação de serviço... Que horas são isto? Eh, pá, três da madrugada e ainda estão uns 30 graus... Ainda bem que amanhã é sábado e não tenho de ir para Lisboa...
RG – Amanhã é domingo...
AMV – Pois. Não interessa… O que eu queria dizer é que não tenho de me fazer à estrada...
[ouviu-se um «clic» do gravador; estava na hora de acabar a entrevista]
RG – Tens projectos para o futuro, em termos literários?
AMV – Estava a ver que não fazias essa pergunta. É muito original...
RG – É o que há. Dói-me a cabeça. Amanhã devo estar com uma ressaca bonita…
AMV – Nunca discuto a beleza de uma ressaca…
RG – Diz lá o que andas a escrever.
AMV – Há muita coisa em carteira, por assim dizer. Primeiro, um livro de contos para a «Esfera dos Crivos».
RG – Já tens título?
AMV – Em princípio vai ser «De Montemor e dos Algarves», mas ainda não é certo. Pode ser que fique «Monchique, Mon Genre», mas o Zé Barnabé diz que há gente que não percebe o trocadilho com «bon chic, bon genre». Nestas coisas, convém ouvir o editor...
RG – Estás muito adiantado?
AMV – Mais um ou dois contos e depois começo a rever. Mas tenho entremeado com um novo romance.
RG – Chama-se?...
AMV – «O Meco Longe de Ti». Passa-se nos anos sessenta, entre a Costa da Caparica e a Praia do Meco. É um romance de costumes. Terá uma costela do «Sinais de Fogo», do Sena. O processo de escrita é mais o do Cardoso Pires, mas quem ler as primeiras páginas vai notar algumas influências do Vergílio Ferreira no «Manhã Submersa» ou do Carlos de Oliveira de «Uma Abelha na Chuva». Enfim, eu não tenho bem a noção do que estou a escrever, durante o processo. De resto, quem notou estas influências foi o meu filho mais novo.
RG – O Flauberto agora está com quantos?
AMV – Está com doze, mas quem costuma ler os meus livros em primeiro lugar é o Mopassânico, que tem dez.
RG – E ele já leu isso tudo, aos dez anos?
AMV – Já. Para desenjoar da banda desenhada japonesa e da Playstation.
RG – Deixas os teus miúdos horas e horas à frente da Playstation?
AMV – Ó pá, em primeiro lugar isto é Montemor. Em segundo lugar, num mundo de margaridas, que mal tem a Playstation?
RG – Falaste outra vez de Margarida Rebelo Pinto por algum motivo particular?
AMV – Não, tu é que estás a falar. Olha, já bebia qualquer coisa. Vamos para a sala de snooker?
RG – Eh, pá, eu vejo as bolas todas duas vezes…
AMV – Quem é que vai jogar? Tenho lá um scotch de doze anos que é um mimo... Traz aí o gato... Espera, deixa-me meter-lhe a trela, que já dá para arrastares...
RG – Isso não magoa o gajo?
AMV – Não. Ele é lixado quando dorme. Ferra o galho e é do caraças.
RG – Não podias simplesmente pegar-lhe ao colo?
AMV – Quer dizer, para o ano há toiros de morte em Montemor e tu estás preocupado com isto de levar o gato de rojo enquanto dorme...
[duas horas depois adormeci; quando a amizade existe entre dois seres humanos, falar de literatura é um simples exercício de lógica; na segunda-feira seguinte cheguei à redacção da revista e o editor perguntou-me: «Então essa entrevista com o Venda? Correu bem?»; disse-lhe que sim, puxei de um cigarro, fui para o pé da nova estagiária meter conversa e passadas umas horas atirei-me à desgravação]
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