Hoje na capa do «Público», Radovan Karadzic (fotos de há treze anos e da actualidade). As duas caras de um monstro, ou mais do que de um monstro, de um filho da puta da pior espécie. O «Público» conta a sua história assim…
O psiquiatra e poeta egocêntrico
O psiquiatra e poeta egocêntrico
que se tornou criminoso de guerra por vaidade
23.07.2008, Clara Barata
Ninguém dirá de Karadzic que era modesto. Falam dele como alguém sedento de admiração e poder, que teve numa altura de escolhas cruciais.
Era impossível não pensar num galo quando se via Radovan Karadzic desfilar, entre os governantes e diplomatas dos países mais poderosos. O cabelo grisalho, abundante e comprido de mais, era coroado por uma crista desalinhada que desafiava perigosamente a gravidade. Agora, após 12 anos em fuga da justiça internacional, que o acusa de crimes de guerra e genocídio, está irreconhecível: as melenas grisalhas, que durante a guerra eram penteadas num hotel de Belgrado, deram lugar a um cabelo branco e encrespado, comprido, que usa atado no cimo da cabeça, num estranho chinó que pessoas que contactavam com Dragan David Babic, médico praticante de medicinas alternativas - a entidade que assumia há anos em Belgrado - disseram à Reuters que servia para receber energias.O psiquiatra especializado em tratar paranóias e depressões, poeta de imaginação mórbida que por vezes escrevia para crianças, transformado em senhor da guerra e arquitecto da política de limpeza étnica na Bósnia, reinventou-se como um terapeuta new age. Hoje com 63 anos, completados a 19 de Junho, escrevia artigos e dava palestras comparando técnicas de meditação populares com a meditação ortodoxa, praticada pelos monges dos mosteiros cristãos ortodoxos, conta a Reuters. Interessava-se pela cura através do uso da energia vital - um conceito semelhante ao Qi chinês, e à ideia dos centros de energia no corpo (chakras) desenvolvida na Índia, relata a agência noticiosa."Era bem-educado, calmo e com sentido de humor. Apresentava-se como um psiquiatra que fazia terapias energéticas", contou à Reuters Goran Kojic, director da revista Zdrav Zivot (Vida Sã), com a qual Dragan Babic colaborava.
O maestro infernal
Não era este o caminho que se imaginava que Karadzic iria percorrer, durante os seus anos de clandestinidade. Afinal, este é o homem que a acusação do Tribunal Criminal Internacional para a ex-Jugoslávia, descreve como o maestro de "cenas infernais, escritas nas páginas mais negras da história". A ele se atribui a estratégia da limpeza étnica - que ele descrevia como uma coisa positiva. Uma vez deu uma repreensão a um jornalista do New York Times pela forma como usava o termo nas suas reportagens: "Não, não", dizia Karadzic, citado ontem por John Burns, recordando a cena que viveu no fim da Primavera de 2002. A limpeza étnica, explicava o líder sérvio bósnio, com um charuto cubano numa mão e um copo de conhaque francês na outra - não era o primeiro, nem o segundo dessa noite -, era uma oportunidade que estava a ser dada aos muçulmanos bósnios, pela qual deviam estar gratos. Não estavam a ser expulsos das suas casas nem mortos barbaramente, estavam antes a ter a oportunidade de "regressarem" aos locais onde poderiam verdadeiramente sentir-se em casa - a cidades e aldeias onde poderiam viver com outros muçulmanos, longe dos sérvios, cristãos ortodoxos. De 1992 a 1995, a guerra na Bósnia fez cerca de 200.000 mortos, de todos os lados do conflito, dois milhões de pessoas - que não eram de origem sérvia - foram expulsos de suas casas, a violação tornou-se uma táctica de terror e humilhação. E, nas últimas semanas da guerra, em Julho de 2005, ocorreu o massacre de Srebrenica, no qual foram mortos cerca de 8000 homens e rapazes muçulmanos. O general Radko Mladic (ainda em fuga da justiça, ver caixa) comandou as tropas bósnias sérvias responsáveis pelas mortes e a ordem terá vindo de cima, do próprio Karadzic.
Poeta, psiquiatra e estranho
Foi longo o caminho percorrido por Karadzic, que nasceu no Montenegro (o seu pai era um rebelde chetnik sérvio que combateu os nazis na II Guerra Mundial e foi preso depois, por se opor ao poder do general Tito) mas se mudou para a Bósnia em 1960. É uma espécie de self-made man, versão Balcãs. "É uma combinação da personagem tradicional de hadjuk (assaltante) e guslar, um poeta que recita poesia épica, acompanhando-se a si próprio com um instrumento de cordas", escreve num artigo ontem divulgado a jornalista croata Slavenka Drakulic, que cobriu as guerras da ex-Jugoslávia.Estudou Medicina e Psiquiatria em Sarajevo. "Criou reputação entre os colegas na universidade, onde ensinava, e entre os pacientes, de ser estranho e ter lapsos profissionais que o tornaram, entre a intelligentsia, numa figura caricata", escrevia John Burns no New York Times. Ele, no entanto, sentia-se parte da intelectualidade local, e gostava de fazer discursos exibindo a sua cultura. Afinal, era poeta - mas em Sarajevo a sua criação literária também não era popular. O temas negros e obscurantistas da sua poesia, muita dela enraizada em lendas sérvias, gerava estranheza. E continuou a escrever, durante os seus tempos de clandestinidade: publicou vários livros de poesia e um romance.
A vaidade e o poder
A sua carreira política tomou rumo em 1990, ao fundar o Partido Democrático Sérvio - que partilhava os ideais da Grande Sérvia, que tinha como principal campeão Slobodan Milosevic, em Belgrado, o então Presidente da Jugoslávia. Mas como é que um psiquiatra e poeta, ainda que excêntrico, seguiu caminhos tão negros, interrogava-se muita gente, então e ainda agora.A resposta é dada por Slavenka Drakulic no seu artigo: os criminosos de guerra "vêm de todos os estratos sociais. São académicos, escritores e mecânicos, bem como empregados de mesa, bancários ou agricultores". Karadzic, diz, "tornou-se um criminoso de guerra por pura vaidade. Os seus feitos não lhe chegavam, ele queria poder". "A vaidade não é um crime por si, a não ser que nos empurre para uma posição em que podemos, e de facto, ordenamos, a exterminação de 8000 muçulmanos, por exemplo", diz. "Os seres humanos têm a capacidade para fazer o bem e o mal. Mas temos a possibilidade de escolher. Radovan Karadzic escolheu ter poder e ter poder em tempos de guerra pode ter um preço muito alto - que ele vai agora pagar."
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