sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
A surpresa
A julgar pelo que tenho lido e ouvido hoje, terá sido a grande surpresa do debate entre Cavaco Silva e Manuel Alegre. A postura mais atacante do presidente, quando se esperava que fosse Alegre a tê-la. A mim não me surpreendeu, não porque estivesse à espera dela mas sim porque o assunto nada me interessava. Que atacasse Alegre, que atacasse Cavaco, que atacassem os dois, que pelo contrário aparecessem tipo o Inter de Mourinho em Barcelona… Fosse lá o que fosse.
Mas houve uma coisa que verdadeiramente acabou por me surpreender: os comentários de Cavaco à actuação da actual administração do Banco Português de Negócios (BPN). Alegre, não sei por quê, nem se interessou muito pelo assunto. Quem conduzia o debate a mesma coisa. Mas deviam ter-se interessado, assim como a Polícia Judiciária devia rapidamente também interessar-se e tentar perceber na investigação que presumo está a fazer o que é que Cavaco poderá estar a tentar branquear para ser tão crítico de quem gere o banco agora. Ainda por cima quando está longe de ter a mesma postura em relação aos seus antigos «ajudantes» (termo seu) que toda a gente sabe o que é que arranjaram naquele estranho universo empresarial. E «ajudantes» que ao contrário do que ele, Cavaco, diz não são apenas de há vinte ou vinte e cinco anos – basta ver o caso do «ajudante» que até às últimas se manteve no Conselho de Estado.
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Mas houve uma coisa que verdadeiramente acabou por me surpreender: os comentários de Cavaco à actuação da actual administração do Banco Português de Negócios (BPN). Alegre, não sei por quê, nem se interessou muito pelo assunto. Quem conduzia o debate a mesma coisa. Mas deviam ter-se interessado, assim como a Polícia Judiciária devia rapidamente também interessar-se e tentar perceber na investigação que presumo está a fazer o que é que Cavaco poderá estar a tentar branquear para ser tão crítico de quem gere o banco agora. Ainda por cima quando está longe de ter a mesma postura em relação aos seus antigos «ajudantes» (termo seu) que toda a gente sabe o que é que arranjaram naquele estranho universo empresarial. E «ajudantes» que ao contrário do que ele, Cavaco, diz não são apenas de há vinte ou vinte e cinco anos – basta ver o caso do «ajudante» que até às últimas se manteve no Conselho de Estado.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
António Souto – Crónica (31)
… as chancas gastas e as botas encardidas a secar ao borralho para umas horas mais tarde acolherem os pés ligeiros e as poucas prendas que o menino Jesus acabaria por deixar na sua azáfama de estafeta noctívolo. Camisolinhas de aconchego, dois ou três pares de meias, uns lencinhos às riscas, tudo da loja próxima ou da feira dos vinte e seis. Quase não há lembrança de brinquedos, talvez uma camioneta de chapa muito colorida ou um pífaro de pistões a fingir.
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Um natal que já não é
Este é o último mês do ano. E porque mantemos inalterada a regularidade, esta é a última folha do calendário. De Janeiro a Dezembro, um saltinho de anão, que o tempo não dá tréguas e o que agora é… já foi!
Seria caso para, uma vez mais cumprindo a rotina, fazer balanços, mas não nos apetece, até porque de pouco ou nada servem quando os objectivos são precários ou inexistentes. E depois, sendo os natais o que sempre são, o melhor é pôr de lado os aborrecimentos da computação e cuidar de guardar uns trocos para um bolo-rei, para um qualquer, do mais tradicionalzinho ao gurmê, ao tropical, ao salgado, ao de chocolate ou ao escangalhado, mas um bolo-rei que se traga para a mesa, se possível redondo, para tragar com a natividade dentro.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, quando era mesmo natal, com uma aldeia a sério, e no ventre dela muitas casas escuras e desalinhadas e todas com fumo nas chaminés entupidas de fuligem.
Aquilo é que era lindo, as rachas a arder ao declinar da tarde, com a casca a estoirar quando os toros ainda verdes, e a lenha ali toda à mão para a noite inteira, e o calor que o brasido dava à casa e aos corpos.
A gente ali à espera contando os serões de Dezembro, e quando chegava a véspera do grande dia era uma festa de gestos e de desejos, um remoinho de comeres distintos, mesmo quando iguais, mas provados com o vagar que faltara antes e que faltaria depois, que a lida não se compadecia com delongas e o gado tinha que se alimentar. (E como doía ir para o campo à frente das vacas pelos caminhos de água ou cortar a erva diária nas manhãs de geada, as mãos e os dedos entorpecidos…) E como o jantar se alinhava então com as iguarias de memória… eles eram os bilharacos e as filhoses e as rabanadas e a aletria e às vezes o arroz-doce e também os biscoitos sortidos da Triunfo trazidos por um primo da cidade e as broinhas de mel e os bombons trazidos por parentes da capital!
A gente toda sentada à mesa, naquele dia mais comprida que o habitual, a luz do tecto tremeluzente (com um candeeiro de petróleo de prevenção), um desforrar de estômagos e de conversas vagas. Uma noitada que nos esquecia sempre a missa do galo, que era sempre muito cedo para quem se amesendava sempre tarde, e as castanhas (assadas sob a caruma afogueada) e o bolo-rei faziam pesar demasiado os físicos já cansados e a pedir deita.
Aquilo é que era lindo, as chancas gastas e as botas encardidas a secar ao borralho para umas horas mais tarde acolherem os pés ligeiros e as poucas prendas que o menino Jesus acabaria por deixar na sua azáfama de estafeta noctívolo. Camisolinhas de aconchego, dois ou três pares de meias, uns lencinhos às riscas, tudo da loja próxima ou da feira dos vinte e seis. Quase não há lembrança de brinquedos, talvez uma camioneta de chapa muito colorida ou um pífaro de pistões a fingir. Mas havia também um chocolatinho cobiçado com uma prata muito bonita que a gente esticava cautelosamente e metia no meio de um livro para se alisar com o tempo. Ah, falta ainda acrescentar que naquele dia em que o menino vinha ao mundo, a gente se vestia com roupa nova, que ficava durante muito tempo nova e muito tempo limpa.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, muito mais natal. Mas esta nossa idade, agora de abastança e crise, continua a acreditar num menino que cresceu e se transformou em pai, sobretudo num pai natal aleivoso e mortinho por que acreditem nele. Afinal, em que pode a gente mais acreditar? Voltemos a página!
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Crónica de Dezembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30.
Um natal que já não é
Este é o último mês do ano. E porque mantemos inalterada a regularidade, esta é a última folha do calendário. De Janeiro a Dezembro, um saltinho de anão, que o tempo não dá tréguas e o que agora é… já foi!
Seria caso para, uma vez mais cumprindo a rotina, fazer balanços, mas não nos apetece, até porque de pouco ou nada servem quando os objectivos são precários ou inexistentes. E depois, sendo os natais o que sempre são, o melhor é pôr de lado os aborrecimentos da computação e cuidar de guardar uns trocos para um bolo-rei, para um qualquer, do mais tradicionalzinho ao gurmê, ao tropical, ao salgado, ao de chocolate ou ao escangalhado, mas um bolo-rei que se traga para a mesa, se possível redondo, para tragar com a natividade dentro.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, quando era mesmo natal, com uma aldeia a sério, e no ventre dela muitas casas escuras e desalinhadas e todas com fumo nas chaminés entupidas de fuligem.
Aquilo é que era lindo, as rachas a arder ao declinar da tarde, com a casca a estoirar quando os toros ainda verdes, e a lenha ali toda à mão para a noite inteira, e o calor que o brasido dava à casa e aos corpos.
A gente ali à espera contando os serões de Dezembro, e quando chegava a véspera do grande dia era uma festa de gestos e de desejos, um remoinho de comeres distintos, mesmo quando iguais, mas provados com o vagar que faltara antes e que faltaria depois, que a lida não se compadecia com delongas e o gado tinha que se alimentar. (E como doía ir para o campo à frente das vacas pelos caminhos de água ou cortar a erva diária nas manhãs de geada, as mãos e os dedos entorpecidos…) E como o jantar se alinhava então com as iguarias de memória… eles eram os bilharacos e as filhoses e as rabanadas e a aletria e às vezes o arroz-doce e também os biscoitos sortidos da Triunfo trazidos por um primo da cidade e as broinhas de mel e os bombons trazidos por parentes da capital!
A gente toda sentada à mesa, naquele dia mais comprida que o habitual, a luz do tecto tremeluzente (com um candeeiro de petróleo de prevenção), um desforrar de estômagos e de conversas vagas. Uma noitada que nos esquecia sempre a missa do galo, que era sempre muito cedo para quem se amesendava sempre tarde, e as castanhas (assadas sob a caruma afogueada) e o bolo-rei faziam pesar demasiado os físicos já cansados e a pedir deita.
Aquilo é que era lindo, as chancas gastas e as botas encardidas a secar ao borralho para umas horas mais tarde acolherem os pés ligeiros e as poucas prendas que o menino Jesus acabaria por deixar na sua azáfama de estafeta noctívolo. Camisolinhas de aconchego, dois ou três pares de meias, uns lencinhos às riscas, tudo da loja próxima ou da feira dos vinte e seis. Quase não há lembrança de brinquedos, talvez uma camioneta de chapa muito colorida ou um pífaro de pistões a fingir. Mas havia também um chocolatinho cobiçado com uma prata muito bonita que a gente esticava cautelosamente e metia no meio de um livro para se alisar com o tempo. Ah, falta ainda acrescentar que naquele dia em que o menino vinha ao mundo, a gente se vestia com roupa nova, que ficava durante muito tempo nova e muito tempo limpa.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, muito mais natal. Mas esta nossa idade, agora de abastança e crise, continua a acreditar num menino que cresceu e se transformou em pai, sobretudo num pai natal aleivoso e mortinho por que acreditem nele. Afinal, em que pode a gente mais acreditar? Voltemos a página!
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Crónica de Dezembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30.
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010
domingo, 19 de dezembro de 2010
O meu voto
O meu voto, a 23 de Janeiro, vai para Fernando Nobre. Era bom que conseguisse ir a uma segunda volta das eleições presidenciais e acabasse por ganhar.
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Foto: Vítor Gordo – Syncview
Foto: Vítor Gordo – Syncview
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Etiquetas:
Eleições presidenciais,
Fernando Nobre
Revista «human» de Dezembro
Nas bancas desde o início deste mês. É o número 24, de Dezembro de 2010. Mais informações sobre a edição aqui. Deixo a seguir o meu editorial…
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Dois anos de «human»
À semelhança do que aconteceu em Dezembro de 2009, a equipa da «human» preparou para este mês uma edição especial. Saindo do formato habitual, apresentamos agora aos leitores a nossa edição «Premium» de 2010, que tem a particularidade de ser a maior da história de dois anos da «human».
Temos por isso razões para estarmos felizes, pelo sucesso do projecto da «human», que como se sabe ultrapassa o próprio âmbito da revista. Sucesso que fica a dever-se a uma imensidade de pessoas, desde os colaboradores mais directos aos leitores, passando pelos parceiros, pelos anunciantes, por todos os fornecedores.
Esta edição «Premium» de 2010 apresenta mais de meia centena de perspectivas sobre a gestão das pessoas nas organizações. São as opiniões de muitos dos protagonistas da gestão de recursos humanos em Portugal, que podem ser lidas nas páginas seguintes, opiniões que resolvemos organizar por áreas, que surgem por ordem alfabética (tal como acontece com as instituições que os autores dos textos representam): Benefícios Extra-salariais; Coaching; Consultoria; Formação; Recrutamento e Selecção; Saúde e Segurança no Trabalho (SST); Tecnologias de Informação (TI); e Trabalho Temporário.
É uma edição que conta com o apoio da Mercer, como aliás já aconteceu com a edição «Premium» de 2009. Daí, logo a abrir, apresentarmos uma reflexão de Diogo Alarcão, partner da consultora em Portugal, sobre liderança e gestão de talentos, duas áreas que, segundo refere, começam a ser tidas como prioritárias para um crescente número de empresas nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, pensando nos cenários pós-crise.
No final, apresentamos ainda uma retrospectiva do que foi a «human» durante este ano de 2010. Já em Janeiro, teremos de novo a revista no seu formato habitual.
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Dois anos de «human»
À semelhança do que aconteceu em Dezembro de 2009, a equipa da «human» preparou para este mês uma edição especial. Saindo do formato habitual, apresentamos agora aos leitores a nossa edição «Premium» de 2010, que tem a particularidade de ser a maior da história de dois anos da «human».
Temos por isso razões para estarmos felizes, pelo sucesso do projecto da «human», que como se sabe ultrapassa o próprio âmbito da revista. Sucesso que fica a dever-se a uma imensidade de pessoas, desde os colaboradores mais directos aos leitores, passando pelos parceiros, pelos anunciantes, por todos os fornecedores.
Esta edição «Premium» de 2010 apresenta mais de meia centena de perspectivas sobre a gestão das pessoas nas organizações. São as opiniões de muitos dos protagonistas da gestão de recursos humanos em Portugal, que podem ser lidas nas páginas seguintes, opiniões que resolvemos organizar por áreas, que surgem por ordem alfabética (tal como acontece com as instituições que os autores dos textos representam): Benefícios Extra-salariais; Coaching; Consultoria; Formação; Recrutamento e Selecção; Saúde e Segurança no Trabalho (SST); Tecnologias de Informação (TI); e Trabalho Temporário.
É uma edição que conta com o apoio da Mercer, como aliás já aconteceu com a edição «Premium» de 2009. Daí, logo a abrir, apresentarmos uma reflexão de Diogo Alarcão, partner da consultora em Portugal, sobre liderança e gestão de talentos, duas áreas que, segundo refere, começam a ser tidas como prioritárias para um crescente número de empresas nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, pensando nos cenários pós-crise.
No final, apresentamos ainda uma retrospectiva do que foi a «human» durante este ano de 2010. Já em Janeiro, teremos de novo a revista no seu formato habitual.
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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Uma serpente de luzes na planície
Um dia, se o meu filho se tornar jogador de futebol, poderei oferecer-lhe a fotografia de um dos segundos iniciais da sua carreira. Tirei-a num estádio do Alentejo com relvado sintético e dividido em pequenos campos para que pudesse haver vários jogos ao mesmo tempo. Foi num torneio para miúdos, pequeninos, daqueles que estão mesmo a começar, miúdos de equipas de fama bem diferente – basta pensar nas participações do Benfica e do Alandroal.
Quatro elementos em cada equipa, o guarda-redes, um jogador mais recuado e dois laterais capazes de chegar à baliza adversária; ou outra táctica que se quisesse arranjar. Quando o jogo da equipa do meu filho estava prestes a iniciar-se, subi ao ponto mais alto da bancada e com a objectiva fixei o campo que lhe tinha calhado em sorte. Por isso é que depois fiquei com a fotografia daquele segundo. Nessa fotografia, o guarda-redes, pequenino mas com um jeito enorme para a baliza, mesmo sem o jogo ter começado tenta perceber se algum remate poderá surgir de repente. E à frente dele estão o meu filho e os dois restantes colegas, parecendo que trocam ideias sobre o que hão-de fazer mal comece o jogo. Talvez defender, pois a outra equipa, por ser de uma cidade grande, pode muito bem tê-los colocado em respeito. Talvez falem disso no seguimento de indicações do treinador. A verdade é que não sei, porque nunca fiz a pergunta. No centro, vê-se os jogadores de campo da outra equipa, os três junto à bola, prontos para começar; o guarda-redes é que não aparece na fotografia.
O jogo acabou por ficar em zero a zero, com a equipa do meu filho a jogar mais à defesa e ajudada pelo pequeno guarda-redes, que a cada bola que aparecia por perto se atirava sobre ela para logo a seguir se enrolar como um gato. Lembrei-me dos meus tempos não de miúdo como eles mas de adolescente, quando tinha na baliza alguns dos poucos ídolos que fui arranjando no futebol. A selecção portuguesa alinhava praticamente em todos os jogos com um guarda-redes de baixa estatura chamado Bento, que morreu há uns três anos, mas para mim o melhor era um outro ainda mais baixo que eu ia ver nos jogos do Portimonense. Eu fazia sempre a minha selecção com os jogadores que considerava os melhores, e sem preocupações de posição. Era no princípio dos anos oitenta do século passado. Na defesa João Pinto (o que fazia previsões apenas no fim dos jogos e que chegou a dizer a seguir a marcar um golo com o pé esquerdo, que raramente usava, que tinha chutado com o pé que estava mais à mão), Venâncio, Humberto coelho e Inácio (que em 2000, como treinador, haveria de levar o meu velho clube verde a um inesquecível título de campeão); no meio campo Carlos Manuel, Oliveira e Chalana; e à frente Nené (o que nunca sujava os calções), Gomes e Jordão (que uma vez numa entrevista aproveitou para avisar os adversários de que quando lhe tocavam estando ele dentro da área se atirava logo ao chão). Ou seja, a minha selecção só tinha jogadores do Benfica, do Sporting e do Porto, com excepção da baliza onde eu não punha o Bento, nem sequer o Damas (que não era dos baixos), mas antes o Mendes do Portimonense. Esse mesmo, o guarda-redes que eu via fazer as defesas mais incríveis do campeonato e a quem tomava uma especial atenção na altura do aquecimento para cada jogo, quando era o próprio treinador Manuel José, então ainda bastante novo, a ir-lhe fazer remates durante uns dez minutos.
Foi o guarda-redes pequenino que ajudou a equipa do meu filho, e também o meu filho e mais os dois colegas laterais avançados, foram eles todos que se ajudaram. Mesmo com alguma dificuldade em atacar, lutaram de forma a que os adversários da equipa da cidade grande não conseguissem marcar golos. A chuva também terá ajudado, porque a certa altura do jogo ganhou tais proporções que todo o torneio teve de ser interrompido. Era tão forte que nem os jogadores da cidade grande, com os seus equipamentos impermeáveis, conseguiam jogar, quanto mais a equipa do meu filho, de equipamentos normais.
Mas e que a equipa do meu filho tivesse perdido… Ou que tivesse ganho, ou que o tempo estivesse de sol, ou que do céu em vez de água tivesse caído neve ou granizo… Tanto fazia, porque eu fiquei com a fotografia de um dos segundos iniciais da carreira de futebolista do meu filho, se ele algum dia fizer uma carreira no futebol. Talvez o primeiro segundo. Além de outras fotografias que fui tirando do alto da bancada, e de um pequeno filme que também fiz. Essa fotografia acabou por passar para a minha mente, porque eu já a vi várias vezes. Posso mesmo dizer que a decorei dentro da cabeça. A imagem de um momento em que o primeiro jogo do meu filho está mesmo, mesmo a começar.
Mas há outra imagem que tenho dentro da cabeça, só que não vem de uma fotografia. Não sei como, mas a verdade é que a decorei também, apesar de a ter visto apenas de forma fugaz. Apareceu-me no espelho retrovisor do carro, talvez uma hora antes do jogo. Chuva, muita chuva nessa imagem ainda do começo da tarde, a caminho do torneio. Os miúdos seguiam no autocarro da câmara, e eu logo atrás, de carro, sem ter pensado se outras famílias além da minha iriam ver os seus miúdos no torneio. A certa altura, com a força da chuva a dificultar-me a visibilidade, dei comigo a pensar no autocarro que seguia vinte ou trinta metros à frente. Não dava para ver bem, foi o que pensei, mas se fosse Verão haveria de perceber-se facilmente as cores fortes do Alentejo, azul, amarelo e vermelho, a pintura do autocarro com o céu limpo, o pasto dos campos e as papoilas, e também uma frase tirada com adaptações do final de um romance de José Saramago, a frase logo a seguir ao nome da terra, «cidade levantada e principal».
Lembro-me de ter pensado nisso. E de ter dito para mim próprio: «os miúdos vão para o torneio, agora que estão a começar no futebol, e vão num autocarro com uma frase enorme de um enorme escritor, não vão patrocinados pela Coca-Cola nem pela Nike (muito menos pela cerveja Sagres), nem sequer vão num autocarro que fala de apoio ao desporto e à juventude e mais uma data de coisas; os miúdos vão no autocarro da frase do Saramago». Foi o que eu disse só para mim, creio que com as minhas filhas pequeninas adormecidas, a julgar pelo silêncio dentro do carro. E então veio o momento do qual decorei a imagem, como depois haveria de decorar a do segundo antes de começar o primeiro jogo do meu filho. No meio daqueles pensamentos, de repente questionei-me se devia levar as luzes ligadas ou não, se deveria apagá-las por a chuva estar a diminuir um pouco, e aí espreitei pelo espelho retrovisor para ver se atrás de mim algum carro também tinha as luzes ligadas, se é que vinha algum carro atrás de mim na estrada da planície alentejana, e logo percebi que havia muitos carros, e todos com luzes. As famílias dos outros miúdos… Só então é que reparei, depois de ter feito já algumas dezenas de quilómetros. Em que é que pensariam as pessoas desses carros? Como olhariam para o autocarro dos miúdos que avançava com eles para o torneio?
Comecei a contar os carros. Um, dois, três… Mas logo desisti, porque eram muitos, e eu tinha de concentrar-me na condução. Muitos carros, mesmo muitos. Formava-se uma fila na planície, na estrada que naquela altura fazia uma curva longa, uma fila de luzes passada para o meu espelho retrovisor, e foi essa imagem que eu decorei, como depois fiz com a da fotografia. A imagem de uma serpente de luzes na planície, pela estrada fora, atrás do autocarro da cidade levantada e principal.
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Quatro elementos em cada equipa, o guarda-redes, um jogador mais recuado e dois laterais capazes de chegar à baliza adversária; ou outra táctica que se quisesse arranjar. Quando o jogo da equipa do meu filho estava prestes a iniciar-se, subi ao ponto mais alto da bancada e com a objectiva fixei o campo que lhe tinha calhado em sorte. Por isso é que depois fiquei com a fotografia daquele segundo. Nessa fotografia, o guarda-redes, pequenino mas com um jeito enorme para a baliza, mesmo sem o jogo ter começado tenta perceber se algum remate poderá surgir de repente. E à frente dele estão o meu filho e os dois restantes colegas, parecendo que trocam ideias sobre o que hão-de fazer mal comece o jogo. Talvez defender, pois a outra equipa, por ser de uma cidade grande, pode muito bem tê-los colocado em respeito. Talvez falem disso no seguimento de indicações do treinador. A verdade é que não sei, porque nunca fiz a pergunta. No centro, vê-se os jogadores de campo da outra equipa, os três junto à bola, prontos para começar; o guarda-redes é que não aparece na fotografia.
O jogo acabou por ficar em zero a zero, com a equipa do meu filho a jogar mais à defesa e ajudada pelo pequeno guarda-redes, que a cada bola que aparecia por perto se atirava sobre ela para logo a seguir se enrolar como um gato. Lembrei-me dos meus tempos não de miúdo como eles mas de adolescente, quando tinha na baliza alguns dos poucos ídolos que fui arranjando no futebol. A selecção portuguesa alinhava praticamente em todos os jogos com um guarda-redes de baixa estatura chamado Bento, que morreu há uns três anos, mas para mim o melhor era um outro ainda mais baixo que eu ia ver nos jogos do Portimonense. Eu fazia sempre a minha selecção com os jogadores que considerava os melhores, e sem preocupações de posição. Era no princípio dos anos oitenta do século passado. Na defesa João Pinto (o que fazia previsões apenas no fim dos jogos e que chegou a dizer a seguir a marcar um golo com o pé esquerdo, que raramente usava, que tinha chutado com o pé que estava mais à mão), Venâncio, Humberto coelho e Inácio (que em 2000, como treinador, haveria de levar o meu velho clube verde a um inesquecível título de campeão); no meio campo Carlos Manuel, Oliveira e Chalana; e à frente Nené (o que nunca sujava os calções), Gomes e Jordão (que uma vez numa entrevista aproveitou para avisar os adversários de que quando lhe tocavam estando ele dentro da área se atirava logo ao chão). Ou seja, a minha selecção só tinha jogadores do Benfica, do Sporting e do Porto, com excepção da baliza onde eu não punha o Bento, nem sequer o Damas (que não era dos baixos), mas antes o Mendes do Portimonense. Esse mesmo, o guarda-redes que eu via fazer as defesas mais incríveis do campeonato e a quem tomava uma especial atenção na altura do aquecimento para cada jogo, quando era o próprio treinador Manuel José, então ainda bastante novo, a ir-lhe fazer remates durante uns dez minutos.
Foi o guarda-redes pequenino que ajudou a equipa do meu filho, e também o meu filho e mais os dois colegas laterais avançados, foram eles todos que se ajudaram. Mesmo com alguma dificuldade em atacar, lutaram de forma a que os adversários da equipa da cidade grande não conseguissem marcar golos. A chuva também terá ajudado, porque a certa altura do jogo ganhou tais proporções que todo o torneio teve de ser interrompido. Era tão forte que nem os jogadores da cidade grande, com os seus equipamentos impermeáveis, conseguiam jogar, quanto mais a equipa do meu filho, de equipamentos normais.
Mas e que a equipa do meu filho tivesse perdido… Ou que tivesse ganho, ou que o tempo estivesse de sol, ou que do céu em vez de água tivesse caído neve ou granizo… Tanto fazia, porque eu fiquei com a fotografia de um dos segundos iniciais da carreira de futebolista do meu filho, se ele algum dia fizer uma carreira no futebol. Talvez o primeiro segundo. Além de outras fotografias que fui tirando do alto da bancada, e de um pequeno filme que também fiz. Essa fotografia acabou por passar para a minha mente, porque eu já a vi várias vezes. Posso mesmo dizer que a decorei dentro da cabeça. A imagem de um momento em que o primeiro jogo do meu filho está mesmo, mesmo a começar.
Mas há outra imagem que tenho dentro da cabeça, só que não vem de uma fotografia. Não sei como, mas a verdade é que a decorei também, apesar de a ter visto apenas de forma fugaz. Apareceu-me no espelho retrovisor do carro, talvez uma hora antes do jogo. Chuva, muita chuva nessa imagem ainda do começo da tarde, a caminho do torneio. Os miúdos seguiam no autocarro da câmara, e eu logo atrás, de carro, sem ter pensado se outras famílias além da minha iriam ver os seus miúdos no torneio. A certa altura, com a força da chuva a dificultar-me a visibilidade, dei comigo a pensar no autocarro que seguia vinte ou trinta metros à frente. Não dava para ver bem, foi o que pensei, mas se fosse Verão haveria de perceber-se facilmente as cores fortes do Alentejo, azul, amarelo e vermelho, a pintura do autocarro com o céu limpo, o pasto dos campos e as papoilas, e também uma frase tirada com adaptações do final de um romance de José Saramago, a frase logo a seguir ao nome da terra, «cidade levantada e principal».
Lembro-me de ter pensado nisso. E de ter dito para mim próprio: «os miúdos vão para o torneio, agora que estão a começar no futebol, e vão num autocarro com uma frase enorme de um enorme escritor, não vão patrocinados pela Coca-Cola nem pela Nike (muito menos pela cerveja Sagres), nem sequer vão num autocarro que fala de apoio ao desporto e à juventude e mais uma data de coisas; os miúdos vão no autocarro da frase do Saramago». Foi o que eu disse só para mim, creio que com as minhas filhas pequeninas adormecidas, a julgar pelo silêncio dentro do carro. E então veio o momento do qual decorei a imagem, como depois haveria de decorar a do segundo antes de começar o primeiro jogo do meu filho. No meio daqueles pensamentos, de repente questionei-me se devia levar as luzes ligadas ou não, se deveria apagá-las por a chuva estar a diminuir um pouco, e aí espreitei pelo espelho retrovisor para ver se atrás de mim algum carro também tinha as luzes ligadas, se é que vinha algum carro atrás de mim na estrada da planície alentejana, e logo percebi que havia muitos carros, e todos com luzes. As famílias dos outros miúdos… Só então é que reparei, depois de ter feito já algumas dezenas de quilómetros. Em que é que pensariam as pessoas desses carros? Como olhariam para o autocarro dos miúdos que avançava com eles para o torneio?
Comecei a contar os carros. Um, dois, três… Mas logo desisti, porque eram muitos, e eu tinha de concentrar-me na condução. Muitos carros, mesmo muitos. Formava-se uma fila na planície, na estrada que naquela altura fazia uma curva longa, uma fila de luzes passada para o meu espelho retrovisor, e foi essa imagem que eu decorei, como depois fiz com a da fotografia. A imagem de uma serpente de luzes na planície, pela estrada fora, atrás do autocarro da cidade levantada e principal.
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Personagens de «O Medo Longe de Ti» – 4
O mágico velhinho
«E então vi o mágico velhinho a descer do comboio-ladrão, à frente de toda a gente, a fazer sinal de que não, de que tu não vinhas. Chegou-se ao pé de mim e eu não consegui pontapeá-lo. Por mais que quisesse, não consegui pontapeá-lo como nos últimos ramos da árvore alta da floresta das regras.»
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Outras personagens: 1, 2, 3.
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«E então vi o mágico velhinho a descer do comboio-ladrão, à frente de toda a gente, a fazer sinal de que não, de que tu não vinhas. Chegou-se ao pé de mim e eu não consegui pontapeá-lo. Por mais que quisesse, não consegui pontapeá-lo como nos últimos ramos da árvore alta da floresta das regras.»
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Outras personagens: 1, 2, 3.
Etiquetas:
Literatura,
Romance «O Medo Longe de Ti»
Contos inesquecíveis (6)
«Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito – um cágado.»
«O Cágado», de Almada Negreiros (do livro «Obras Completas – Contos e Novelas»)
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010
António Souto – Crónica (30)
Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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Um acto com muitas cenas
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Tudo se iniciou antes dele, muito antes dele. Tudo se prolongará para além dele, muito para além dele. Um cenário de crise anunciada. Uma crise real, um mau cenário.)
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Cena I
Dia 29 de Outubro, final de um Conselho de Estado e fim de sexta-feira (aziago, como muitas sextas). O presidente da República insiste que há muito sabia dos desatinos e dos sérios problemas que Portugal enfrentava e que não se coibiu de chamar a atenção para eles e etcetera e tal. Mas sempre com a discrição que o assunto exigia. Um presidente, portanto, discretíssimo. O Conselho de Estado, discretamente convocado, por sua discreta iniciativa, confirma que a situação é efectivamente crítica e que urge um entendimento.
Um acto com muitas cenas
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Tudo se iniciou antes dele, muito antes dele. Tudo se prolongará para além dele, muito para além dele. Um cenário de crise anunciada. Uma crise real, um mau cenário.)
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Cena I
Dia 29 de Outubro, final de um Conselho de Estado e fim de sexta-feira (aziago, como muitas sextas). O presidente da República insiste que há muito sabia dos desatinos e dos sérios problemas que Portugal enfrentava e que não se coibiu de chamar a atenção para eles e etcetera e tal. Mas sempre com a discrição que o assunto exigia. Um presidente, portanto, discretíssimo. O Conselho de Estado, discretamente convocado, por sua discreta iniciativa, confirma que a situação é efectivamente crítica e que urge um entendimento.
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Cena II
Dia 30, sábado de temporal, dia seguinte e véspera do Dia Mundial da Poupança, sabemos que afinal há concertação, mas desconcertada, e que à poupança, a bem ou a mal, ninguém haverá de escapar, mesmo que não tenha mais para poupar do que as unhas, coisa nossa que sempre cresce.
Cena II
Dia 30, sábado de temporal, dia seguinte e véspera do Dia Mundial da Poupança, sabemos que afinal há concertação, mas desconcertada, e que à poupança, a bem ou a mal, ninguém haverá de escapar, mesmo que não tenha mais para poupar do que as unhas, coisa nossa que sempre cresce.
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Cena III
Eduardo Catroga (protagonista da oposição) faz uma extensa e repetitiva declaração. Um delírio de protagonismo pessoal e institucional! O entendimento-acordo fora assinado. Às vinte e três horas e dezanove minutos! A precisão do tempo zelosamente captada. O rigor do espectáculo. Com o artifício das palavras.
«Vou guardar no meu álbum esta fotografia tirada pelo meu staff, para juntar aos milhares de negociações que levo nos meus 68 anos e mais de 45 anos de experiência profissional.»
«As condições minimalistas que eu tinha apresentado na terça aproximavam-se das que agora estão no acordo. Se as tivéssemos aceitado na terça, podíamos ter evitado ao país o espectáculo de quarta, o espectáculo de quinta, o espectáculo de sexta e o espectáculo que estamos a dar hoje aqui».
O espectáculo. O mau espectáculo a condizer com o mau cenário.
Cena III
Eduardo Catroga (protagonista da oposição) faz uma extensa e repetitiva declaração. Um delírio de protagonismo pessoal e institucional! O entendimento-acordo fora assinado. Às vinte e três horas e dezanove minutos! A precisão do tempo zelosamente captada. O rigor do espectáculo. Com o artifício das palavras.
«Vou guardar no meu álbum esta fotografia tirada pelo meu staff, para juntar aos milhares de negociações que levo nos meus 68 anos e mais de 45 anos de experiência profissional.»
«As condições minimalistas que eu tinha apresentado na terça aproximavam-se das que agora estão no acordo. Se as tivéssemos aceitado na terça, podíamos ter evitado ao país o espectáculo de quarta, o espectáculo de quinta, o espectáculo de sexta e o espectáculo que estamos a dar hoje aqui».
O espectáculo. O mau espectáculo a condizer com o mau cenário.
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Cena IV
Teixeira dos Santos (protagonista residente), em menos de um terço do tempo, justifica um entendimento que, pelos vistos, não é bem um entendimento. Porém, é tudo a sério, muito a sério. Como as palavras, o artifício também das palavras.
«Este é o orçamento mais importante dos últimos 25 anos.»
«O governo manifestou o seu sentido de responsabilidade e de coragem.»
«Com este entendimento o país vai ter o seu orçamento e evita-se assim uma crise.»
«Um orçamento que vai ter custos, um agravamento em mais de 500 milhões de euros que terá de ser agora compensado.»
«Um orçamento em que o PSD quis dourar a pílula.»
«Agora é preciso que o PSD apoie as medidas necessárias para que se assegure o cumprimento do défice de quatro vírgula seis.»
«Gostaria de ter podido tirar uma fotografia aqui com o senhor professor Eduardo Catroga a assinar o acordo, mas tal não foi possível, já que não houve vontade de conferência de imprensa conjunta.»
Só faltou mesmo a fotografia. E, pelos vistos, faltou igualmente o staff.
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(O cidadão-espectador resigna-se a assistir, com pouca ou nenhuma vontade já de aplaudir, com nenhumas forças para protestar.)
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Cena V
Dia dois de Novembro, um debate muito pouco debate, um debate muito retórico e muito pouco edificante, um debate de acusações que toda a gente já ouviu e leu. Um hemiciclo, afinal, muito redondo.
Questões de fundo, praticamente nada, apenas uma polifonia gasta, reincidente e aborrecida.
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(Mais do que isto, só a repetição incontinente dos comentadores que, em directo, têm o condão de amofinar os telespectadores com interpretações sobrepostas.)
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Cena VI
Meia dúzia de dias após, fim da acumulação das pensões e de salários na função pública.
«Pouco impacto na poupança, mas é uma questão de moralização.»
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(O cidadão percebe agora que são precisos muitos anos para concluir que é imoral aquilo que era já imoral!)
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Cena VII
A dívida pública dispara. Os juros também. Paira o espectro do FMI. Os mercados internacionais fingem ameaçar. Tudo soberano. Tudo enredo. Tudo fábula.
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Outras cenas
Os mercados internacionais indiciam tréguas. As sondagens baralham as intenções de voto. As oposições não são mais do que isso. Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Um orçamento mau e simultaneamente menos mau. Um acordo bom e simultaneamente menos bom e simultaneamente mau. Um encenador fora de cena. Actores definitivamente personagens num mau cenário e numa má peça. Um guião que já não serve.)
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Crónica de Novembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29.
Cena IV
Teixeira dos Santos (protagonista residente), em menos de um terço do tempo, justifica um entendimento que, pelos vistos, não é bem um entendimento. Porém, é tudo a sério, muito a sério. Como as palavras, o artifício também das palavras.
«Este é o orçamento mais importante dos últimos 25 anos.»
«O governo manifestou o seu sentido de responsabilidade e de coragem.»
«Com este entendimento o país vai ter o seu orçamento e evita-se assim uma crise.»
«Um orçamento que vai ter custos, um agravamento em mais de 500 milhões de euros que terá de ser agora compensado.»
«Um orçamento em que o PSD quis dourar a pílula.»
«Agora é preciso que o PSD apoie as medidas necessárias para que se assegure o cumprimento do défice de quatro vírgula seis.»
«Gostaria de ter podido tirar uma fotografia aqui com o senhor professor Eduardo Catroga a assinar o acordo, mas tal não foi possível, já que não houve vontade de conferência de imprensa conjunta.»
Só faltou mesmo a fotografia. E, pelos vistos, faltou igualmente o staff.
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(O cidadão-espectador resigna-se a assistir, com pouca ou nenhuma vontade já de aplaudir, com nenhumas forças para protestar.)
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Cena V
Dia dois de Novembro, um debate muito pouco debate, um debate muito retórico e muito pouco edificante, um debate de acusações que toda a gente já ouviu e leu. Um hemiciclo, afinal, muito redondo.
Questões de fundo, praticamente nada, apenas uma polifonia gasta, reincidente e aborrecida.
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(Mais do que isto, só a repetição incontinente dos comentadores que, em directo, têm o condão de amofinar os telespectadores com interpretações sobrepostas.)
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Cena VI
Meia dúzia de dias após, fim da acumulação das pensões e de salários na função pública.
«Pouco impacto na poupança, mas é uma questão de moralização.»
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(O cidadão percebe agora que são precisos muitos anos para concluir que é imoral aquilo que era já imoral!)
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Cena VII
A dívida pública dispara. Os juros também. Paira o espectro do FMI. Os mercados internacionais fingem ameaçar. Tudo soberano. Tudo enredo. Tudo fábula.
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Outras cenas
Os mercados internacionais indiciam tréguas. As sondagens baralham as intenções de voto. As oposições não são mais do que isso. Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Um orçamento mau e simultaneamente menos mau. Um acordo bom e simultaneamente menos bom e simultaneamente mau. Um encenador fora de cena. Actores definitivamente personagens num mau cenário e numa má peça. Um guião que já não serve.)
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sábado, 6 de novembro de 2010
Submarinos
Tive a primeira cadeira de economia no liceu, quando andava no nono ano. Depois foram aparecendo mais, até à universidade, e mesmo quando a seguir voltei a estudar, inclusive fora de Portugal. Apanhei excelentes professores, como Ferro Rodrigues (que ainda era pouco conhecido, ia para as aulas num pequeno carro branco e por vezes levava o jornal «A Bola» debaixo do braço), tive outros mais ou menos, tive um a quem chamavam «o camionista» e outro que era louco. Obrigaram-me a comprar um livro do primeiro-ministro da altura, cujo filho eu haveria depois de ver no dia da inspecção militar a despachar-se em menos de uma hora (com um sargento, ou lá o que era, a ameaçar quem protestava com a possibilidade de detenção). Foram muitas cadeiras, é verdade, mas só agora, passados todos estes anos, é que descobri que a dívida pública dos países se pode medir em submarinos. Na última semana perdi a conta ao número de pessoas que ouvi a falarem disso: comentadores, deputados e por aí adiante. Ainda ontem à noite, na televisão, o deputado europeu Nuno Melo se queixava de que nos anos de José Sócrates como primeiro-ministro Portugal se tinha endividado o equivalente a dois submarinos por mês.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010
Revista «human» de Novembro
Nas bancas desde meio da semana passada, ainda Outubro. É o número 23, de Novembro de 2010. Mais informações sobre a edição aqui. Deixo a seguir o meu editorial…
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Uma entrevista, um orçamento
Há já uns tempos que andávamos para entrevistar Marcelo Rebelo de Sousa. Era sobre o estado do país, da economia, das empresas, da nossa castigada sociedade civil, era sobre isso que queríamos ouvi-lo. Sucederam-se os meses e acabámos por conseguir. Foi poucos dias antes da entrega de um bocadinho do Orçamento de Estado na Assembleia da República, com o ministro das Finanças a gabar-se de que não dormia havia duas noites. O resto do documento ficaria para depois, nem sei quando, perdi a noção, ou antes, desinteressei-me. Se calhar ainda falta entregarem uma data de coisas e eu é que estou a leste. Não me admirava se fosse realmente assim. Por aquelas bandas, não há nada que não seja para se ir fazendo, até porque se for preciso meter mais dinheiro para aparar mais alguma trapalhada no défice ou com um submarino cá estamos nós de prevenção.
Na entrevista, Marcelo Rebelo de Sousa mostra-se preocupado com o orçamento, com que o que iria ser apresentado. E agora que a revista chega às bancas essa apresentação já foi feita, aos bocados, é certo, mas foi. Talvez falte alguma coisa, talvez não falte. Como disse, acabei por ficar a leste. Resguardado. Um pouco resguardado. Mas para a entrevista isso não importa, a sua validade é exactamente a mesma que seria se o ministro das Finanças se tivesse atrasado, nem sei, uma semana, duas semanas, três. Se os jornalistas tivessem acampado na Assembleia da República à espera de que ele aparecesse mais a sua equipa nessas alturas tão silenciosa. Se ainda lá estivessem à espera mais o doutor Jaime Gama. E se a própria lei também esperasse, com os prazos de entrega do documento completo a saltarem dias e mais dias no calendário. Até que o ministro aparecesse com as pens todas carregadas de ficheiros.
Sim, a validade da entrevista é a mesma. Vale a pena ler. Descobrir o que Marcelo Rebelo de Sousa pede para o país. E o que dele, país, vai dizendo resposta atrás de resposta.
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Uma entrevista, um orçamento
Há já uns tempos que andávamos para entrevistar Marcelo Rebelo de Sousa. Era sobre o estado do país, da economia, das empresas, da nossa castigada sociedade civil, era sobre isso que queríamos ouvi-lo. Sucederam-se os meses e acabámos por conseguir. Foi poucos dias antes da entrega de um bocadinho do Orçamento de Estado na Assembleia da República, com o ministro das Finanças a gabar-se de que não dormia havia duas noites. O resto do documento ficaria para depois, nem sei quando, perdi a noção, ou antes, desinteressei-me. Se calhar ainda falta entregarem uma data de coisas e eu é que estou a leste. Não me admirava se fosse realmente assim. Por aquelas bandas, não há nada que não seja para se ir fazendo, até porque se for preciso meter mais dinheiro para aparar mais alguma trapalhada no défice ou com um submarino cá estamos nós de prevenção.
Na entrevista, Marcelo Rebelo de Sousa mostra-se preocupado com o orçamento, com que o que iria ser apresentado. E agora que a revista chega às bancas essa apresentação já foi feita, aos bocados, é certo, mas foi. Talvez falte alguma coisa, talvez não falte. Como disse, acabei por ficar a leste. Resguardado. Um pouco resguardado. Mas para a entrevista isso não importa, a sua validade é exactamente a mesma que seria se o ministro das Finanças se tivesse atrasado, nem sei, uma semana, duas semanas, três. Se os jornalistas tivessem acampado na Assembleia da República à espera de que ele aparecesse mais a sua equipa nessas alturas tão silenciosa. Se ainda lá estivessem à espera mais o doutor Jaime Gama. E se a própria lei também esperasse, com os prazos de entrega do documento completo a saltarem dias e mais dias no calendário. Até que o ministro aparecesse com as pens todas carregadas de ficheiros.
Sim, a validade da entrevista é a mesma. Vale a pena ler. Descobrir o que Marcelo Rebelo de Sousa pede para o país. E o que dele, país, vai dizendo resposta atrás de resposta.
Custa ver...
O orçamento. Começa agora a discussão na Assembleia da República, provavelmente com gritaria, insultos, mentiras, desculpas esfarrapadas, ameaças e mais meia dúzia de tropelias. Não será, certamente, nada diferente do que foi a sua apresentação (um bocadinho apenas, numa pen entregue fora de horas) e, sobretudo, do que foi a posterior negociação entre o governo e o principal partido da oposição. Não se vê todos os dias uma negociação assim; com ameaças, visitas a casa, insultos, enganos, remoques, promessas de almoços, lamentos e gabarolices, e com declarações parvas para a comunicação social e cerimónias sem ninguém para as fazer. E fotos manhosas de telemóvel feitas a horas esquisitas. Alguém que anda por aí disse na televisão que o importante era que estes tipos se calassem. E que não aparecessem em tudo quanto é televisão ou jornal, acrescento eu. Que, malandros ou não, fossem trabalhar. Custa ver decisões que afectam a generalidade das pessoas em Portugal, milhões de pessoas, tomadas por gente tão desqualificada, em muitos casos gente à custa dos nossos impostos já reformada. Para a próxima, já se sabe, será pior. Por cá nem o palhaço Tiririca poderia fazer as suas promessas.
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segunda-feira, 25 de outubro de 2010
António Souto – Crónica (29)
Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima.
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Palavras cruzadas
Faz agora um ano tomava posse um novo governo. Renascia então uma nova esperança com o sossegar de tensões e com a promessa de um novo ciclo. Infelizmente, os mercados mundiais trocaram-nos as voltas e esfumaram o tremeluzir de confiança e de convencimento apregoados, e vai daí, cai-nos em cima a crise. E a crise, como sempre acontece, deixa mossas. Em quase todos, grandes como pequenos, embora nos pequenos e médios seja a pancada maior e de cura mais difícil. Não será de espantar, por isso, que daqui a nada esteja meio Portugal inevitavelmente deprimido. É que a depressão (tal como o fado) há muito existe, e sendo triste, tenderá a agravar-se.
Dizem as estatísticas que um em cada cinco portugueses sofre deste mal, e não parece que as estatísticas contemplem já com rigor a crise galopante que em breve tornará ainda mais adversas as condições de vida. E se à crise juntarmos todos os outros factores que os especialistas consideram determinantes, não haverá anti-depressivos suficientes e suficientemente fortes que nos socorram.
Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima. Mas não, D. Manuel I tinha os sonhos bem mais curtos e, como dizia o poeta, não consta que soubesse de eleições.
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E porque veio o vate à colação, este é incontestavelmente um país deles – uns por mestria, outros por arrojo. E se D. Dinis, sendo rei, não se inibiu de cultivar a arte, nem Aleixo, sendo iletrado, não deixou de ser artista, por que razão não há-de um qualquer artífice de lhe tomar o pulso? Pelos vistos, basta apanhar a inspiração a jeito, assim como quem apanha o transporte em hora de ponta.
Foi o que aconteceu a um procurador em dia de julgamento. Chegou atrasado à barra e entendeu justificar-se, perante a juíza, com argumentos versificados, nada menos do que uma dezena de quadras lavradas no metro, entre o domicílio e o tribunal. E para memória futura, que na história da literatura só cabem alguns, vá de as ditar para a acta. O jornal «Expresso» (23/09), noticiando o facto de a magistrada não ter apreciado a habilidade poética, reproduziu quatro delas. Nós, com a devida vénia, e para aquilatar dos predicados, reproduzimos três: «Os comboios já vão cheios/ muitos se levantam cedo/ nas mulheres aprecio os seios/ mas têm outro enredo // Vejo brancos e pretos/ nacionais e estrangeiros/ alguns vivem em guetos/ outros em lugares foleiros // São sete e pouco da manhã/ viajo de metro para o trabalho/ fi-lo ontem, farei-o (sic) amanhã/ só sou aquilo que valho.
Nem D. Dinis, que não tinha gramática, nem Aleixo, que a não aprendeu, se atreveram a tanto nem deram da pátria língua tanto desacerto, que nem a rima se aproveita de tão desgastada. Um atentado, portanto. E não se julgue que o procurador saiu há pouco dos bancos da faculdade, não senhor, leva já largos anos de profissão em matéria de justiça, e, segundo o hebdomadário, que o cita, para cima de «mil poemas escritos». É obra!
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E se estas duas notas aqui ficam em crónica, é só porque, primeiro, não havia mais assunto que à partida a justificasse – que há ocasiões em que as palavras não vêm à tona –, e, segundo, porque, ditosamente, as conversações em torno de um orçamento prenunciado e a notícia de que «cerca de 250 mil portugueses sem emprego e sem o décimo segundo ano vão ser chamados no próximo mês para acções de qualificação nos centros de Novas Oportunidades» inspiraram o mote.
Qual o nexo entre umas e outras? Decifre o leitor.
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Crónica de Outubro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.
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Palavras cruzadas
Faz agora um ano tomava posse um novo governo. Renascia então uma nova esperança com o sossegar de tensões e com a promessa de um novo ciclo. Infelizmente, os mercados mundiais trocaram-nos as voltas e esfumaram o tremeluzir de confiança e de convencimento apregoados, e vai daí, cai-nos em cima a crise. E a crise, como sempre acontece, deixa mossas. Em quase todos, grandes como pequenos, embora nos pequenos e médios seja a pancada maior e de cura mais difícil. Não será de espantar, por isso, que daqui a nada esteja meio Portugal inevitavelmente deprimido. É que a depressão (tal como o fado) há muito existe, e sendo triste, tenderá a agravar-se.
Dizem as estatísticas que um em cada cinco portugueses sofre deste mal, e não parece que as estatísticas contemplem já com rigor a crise galopante que em breve tornará ainda mais adversas as condições de vida. E se à crise juntarmos todos os outros factores que os especialistas consideram determinantes, não haverá anti-depressivos suficientes e suficientemente fortes que nos socorram.
Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima. Mas não, D. Manuel I tinha os sonhos bem mais curtos e, como dizia o poeta, não consta que soubesse de eleições.
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E porque veio o vate à colação, este é incontestavelmente um país deles – uns por mestria, outros por arrojo. E se D. Dinis, sendo rei, não se inibiu de cultivar a arte, nem Aleixo, sendo iletrado, não deixou de ser artista, por que razão não há-de um qualquer artífice de lhe tomar o pulso? Pelos vistos, basta apanhar a inspiração a jeito, assim como quem apanha o transporte em hora de ponta.
Foi o que aconteceu a um procurador em dia de julgamento. Chegou atrasado à barra e entendeu justificar-se, perante a juíza, com argumentos versificados, nada menos do que uma dezena de quadras lavradas no metro, entre o domicílio e o tribunal. E para memória futura, que na história da literatura só cabem alguns, vá de as ditar para a acta. O jornal «Expresso» (23/09), noticiando o facto de a magistrada não ter apreciado a habilidade poética, reproduziu quatro delas. Nós, com a devida vénia, e para aquilatar dos predicados, reproduzimos três: «Os comboios já vão cheios/ muitos se levantam cedo/ nas mulheres aprecio os seios/ mas têm outro enredo // Vejo brancos e pretos/ nacionais e estrangeiros/ alguns vivem em guetos/ outros em lugares foleiros // São sete e pouco da manhã/ viajo de metro para o trabalho/ fi-lo ontem, farei-o (sic) amanhã/ só sou aquilo que valho.
Nem D. Dinis, que não tinha gramática, nem Aleixo, que a não aprendeu, se atreveram a tanto nem deram da pátria língua tanto desacerto, que nem a rima se aproveita de tão desgastada. Um atentado, portanto. E não se julgue que o procurador saiu há pouco dos bancos da faculdade, não senhor, leva já largos anos de profissão em matéria de justiça, e, segundo o hebdomadário, que o cita, para cima de «mil poemas escritos». É obra!
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E se estas duas notas aqui ficam em crónica, é só porque, primeiro, não havia mais assunto que à partida a justificasse – que há ocasiões em que as palavras não vêm à tona –, e, segundo, porque, ditosamente, as conversações em torno de um orçamento prenunciado e a notícia de que «cerca de 250 mil portugueses sem emprego e sem o décimo segundo ano vão ser chamados no próximo mês para acções de qualificação nos centros de Novas Oportunidades» inspiraram o mote.
Qual o nexo entre umas e outras? Decifre o leitor.
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Crónica de Outubro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.
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Uma proposta
Já cansa. A crise na televisão, comentada a toda a hora, sobretudo por economistas e políticos, ou ex-políticos. Lembro-me de que muitos já andaram pelo Estado a contribuir para a situação a que chegámos, como se isso fosse uma condição fundamental para agora serem comentadores. Apesar do cansaço que me fazem, não tenho nada contra a sua presença nos ecrãs. Gostava apenas que com a imagem de cada um aparecessem três dados: idade, idade com que se reformou e quanto contribui mensalmente para o défice por causa da(a) reforma(a). É uma proposta para tornar tudo mais claro. Há neste imenso grupo quem se tenha reformado com 47 anos, quem após uns anos na política tenha pedido logo a subvenção de uns milhares de euros por mês sem se lembrar de que ainda andava pelos 50 anos, gente que fez um part-time de alguns meses numa instituição pública para a seguir se reformar com valores de futebolista já não digo do Benfica mas pelo menos do Sporting. Há de tudo. Com estes dados, a cada programa com comentadores percebia-se melhor a crise, e como o país está verdadeiramente a saque.
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Contas de cabeça
Como agora passei a ser rico, ou pelo menos passei a pertencer a uma classe de privilegiados, os meus filhos, mesmo sem terem culpa de nada, vão deixar de receber abono de família. A crise a isso obriga, segundo dizem. O Estado Social não dá para tudo, segundo também dizem, por isso é preciso fazer opções. E contas, nem que seja só de cabeça. Eu fiz algumas, tendo como referência os valores dos abonos de família que vão acabar. Quantas crianças terão de deixar de receber abono de família para que se continue a pagar as reformas de alguns cidadãos? Contas de cabeça, por alto. Para pagar a reforma de Manuel Alegre, à volta de 90 crianças. Para pagar a de Alberto João Jardim, umas 120. Para pagar a de Cavaco Silva, perto de 180. A de Ernâni Lopes (que apregoa cortes de 30% nos salários mas reformou-se aos 47 anos), não mais do que 60 crianças. A de Marques Mendes (o das fusões & extinções), à volta de 80. Para pagar a de Mira Amaral, mais de 500 crianças (este é uma espécie de Tyrannosaurus Rex das reformas). Para a de Campos e Cunha, quase 230. A de Almeida Santos, umas 100 crianças. E dava para continuar a fazer contas. Podem-me chamar demagogo que eu não me importo. Nem deixo de fazer as minhas contas.
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Uma questão de pudor
«Prós e Contras» na RTP, faz hoje uma semana. Em discussão, «o aperto». Sindicalistas, empresários, políticos... O costume. Nada contra. Mas convidar Mira Amaral? 18.000 euros mensais de reforma por menos de dois anos na Caixa Geral de Depósitos... Por uma questão de pudor, poderiam ter evitado o convite.
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domingo, 17 de outubro de 2010
«Escritos & Escritores»
Uma imagem da participação no «Escritos & Escritores», este fim-de-semana, em Avis, no Alto Alentejo. Organização da associação ACA – Amigos do Concelho de Avis. Mais imagens aqui.
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quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Mineiro
As imagens do Chile... Trazem-me uma recordação de há muitos, muitos anos, de ter lido no «DN Jovem» um pequeno poema de Serafim Guimarães. Chamava-se «Mineiro» esse poema. Não me lembro exactamente da estrutura, por isso coloco-o aqui em prosa: «De sol a sol, cavando na direcção errada. O tesouro que procuras não está debaixo da terra.»
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sábado, 9 de outubro de 2010
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
O Nobel também chega aos escritores geniais
O Prémio Nobel, finalmente. Notícia boa, que soube ontem em viagem, pelo rádio, num dia triste para mim. Tenho quase todos os livros de Mario Vargas Llosa, embora não tenha lido os mais recentes. A notícia trouxe-me a lembrança de horas e horas de leitura, há dez, quinze, vinte anos, sobretudo de «A Tia Julia e o Escrevedor», dos dois romances onde aparece o polícia Lituma, de «A Cidade e os Cães» ou de «Pantaleão e as Visitadoras». Por vezes, o Nobel também chega aos escritores geniais.
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Etiquetas:
Literatura,
Mario Vargas Llosa,
Prémio Nobel da Literatura 2010
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Merecer o palco
O lançamento de «Milagrário Pessoal», de José Eduardo Agualusa, na semana passada. Entre trabalhos, passei por lá, no Clube Ferroviário. Sítio magnífico, a ver o Tejo, e muita, muita gente. Acho que me tinham mandado o livro, mas de tarde não o encontrei na pilha da D. Quixote em cima da secretária. Comprei um exemplar e trouxe um autógrafo fantástico. Apesar de tudo o que se tem falado, ainda não conhecia nada do livro, mas os excertos lidos por Fernando Alves – em cima de um palco que partilhou com o autor – deixaram-me impressionado. Textos de uma estranha beleza, leitura a tocar o encantamento. Lembro-me do que pensei na altura, que se alguém merecia um palco eram aqueles dois.
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Etiquetas:
José Eduardo Agualusa,
Romance «Milagrário Pessoal»
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A gramática da crise
«… e no fim disto, esperemos ao menos que vamos ter um país bem melhor.»
Ricardo Costa, a comentar as medidas contra a crise, presumo que seguindo já o acordo ortográfico
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Revista «human» de Outubro
Nas bancas desde hoje, dia 30. É o número 22, de Outubro de 2010. Mais informações sobre a edição aqui. Deixo a seguir o meu editorial…
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Os exemplos do desporto
Alto rendimento. É o grande destaque desta edição, num trabalho protagonizado por quatro nomes de topo do desporto português, nomes que nos habituámos a ver nos palcos onde se apresentam os melhores atletas do mundo. Em pequenas entrevistas, Elisabete Jacinto, João Garcia, Telma Monteiro e Frederico Gil falam-nos das suas experiências em competições onde o alto rendimento e a necessidade contínua de superação se apresentam como essenciais. Com eles, tentámos perceber como nas empresas se pode aprender com o desporto, sobretudo com os maiores talentos.
De muitas coisas que nos foram dizendo estes quatro atletas de excelência, destaco aqui uma de João Garcia, o alpinista que escalou as maiores montanhas do planeta. Quando lhe perguntámos, partindo do título do seu primeiro livro, qual poderia ser a mais alta solidão, por exemplo de um líder de uma multinacional, em vez de tentar adivinhá-la, ele respondeu de outra forma, salientando que quem lidera pelo exemplo e preza valores nobres nunca terá de lidar com a mais alta solidão.
Outros temas que quero destacar na edição: a secção «O Dia na Empresa», desta vez com a visita a uma adega de Trás-os-Montes; reflexões sobre temas como a responsabilidade social, a liderança ou o futuro da sociedade portuguesa; o tema dos planos de pensões – tão importante quando cada vez se torna mais certa a incerteza sobre o futuro das reformas do Estado –; e a entrevista com uma mulher com enormes responsabilidades comerciais mas que pelo facto de gerir uma equipa de centena e meia de pessoas vê as suas responsabilidades colocarem-se também ao nível da gestão de recursos humanos.
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Os exemplos do desporto
Alto rendimento. É o grande destaque desta edição, num trabalho protagonizado por quatro nomes de topo do desporto português, nomes que nos habituámos a ver nos palcos onde se apresentam os melhores atletas do mundo. Em pequenas entrevistas, Elisabete Jacinto, João Garcia, Telma Monteiro e Frederico Gil falam-nos das suas experiências em competições onde o alto rendimento e a necessidade contínua de superação se apresentam como essenciais. Com eles, tentámos perceber como nas empresas se pode aprender com o desporto, sobretudo com os maiores talentos.
De muitas coisas que nos foram dizendo estes quatro atletas de excelência, destaco aqui uma de João Garcia, o alpinista que escalou as maiores montanhas do planeta. Quando lhe perguntámos, partindo do título do seu primeiro livro, qual poderia ser a mais alta solidão, por exemplo de um líder de uma multinacional, em vez de tentar adivinhá-la, ele respondeu de outra forma, salientando que quem lidera pelo exemplo e preza valores nobres nunca terá de lidar com a mais alta solidão.
Outros temas que quero destacar na edição: a secção «O Dia na Empresa», desta vez com a visita a uma adega de Trás-os-Montes; reflexões sobre temas como a responsabilidade social, a liderança ou o futuro da sociedade portuguesa; o tema dos planos de pensões – tão importante quando cada vez se torna mais certa a incerteza sobre o futuro das reformas do Estado –; e a entrevista com uma mulher com enormes responsabilidades comerciais mas que pelo facto de gerir uma equipa de centena e meia de pessoas vê as suas responsabilidades colocarem-se também ao nível da gestão de recursos humanos.
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010
As minhas histórias do José Eduardo Agualusa
Hoje é o dia da apresentação em Lisboa do novo romance do José Eduardo Agualusa, «Milagrário Pessoal». Tentarei ir, obviamente, pelo autor e pela ligação que tenho àquilo que escreve. Acompanho a escrita do José Eduardo desde a segunda metade da década de oitenta do século passado, quase vinte e cinco anos. Era os tempos do «DN Jovem», ainda antes de ele conseguir publicar o primeiro livro («A Conjura»). Em 2007 foi o José Eduardo que apresentou o meu romance «O que Entra nos Livros», uma espécie de continuação do livro que mais gostei de escrever, «O Medo Longe de Ti». Foi na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, e a foto é da altura em que o José Eduardo falava, ainda às voltas com o cansaço da viagem que acabava de fazer do Brasil. O meu filho mais velho tinha na altura quase três anos. No final da apresentação, chamou-me de parte e perguntou-me quem era o senhor que tinha ido comigo para a mesa, para falar do livro. Disse-lhe que era o Agualusa. Claro que a seguir veio logo uma pergunta: «Quem é o Agualusa?» Pensei um pouco e acabei por responder que era um senhor que tinha muitas histórias. A partir daí, durante quase um ano, noite após noite, o meu filho pediu-me que lhe contasse uma das histórias do Agualusa. E eu contei. As minhas histórias do José Eduardo Agualusa, uma nova a cada dia, inventada por mim exactamente na altura em que a contava. Talvez umas trezentas histórias, ou mais. Grandes aventuras as dessas noites, à espera que o sono do meu filho chegasse…
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segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Personagens de «O Medo Longe de Ti» – 3
Sophie, a observadora de escritores
«E o Jaime, lembras-te do Jaime? A Sophie, da amostra que tinha de nós, enfim, para ela tudo bem... Mais um, deve ter pensado. O Jaime, que nem os postais para a namorada que tinha deixado em Espanha conseguia encher. Mas a Sophie achou que sim, que ele também escrevia. Quando descobriu tudo, telefonou-me para a cabana a perguntar-me se todos os homens eram mesmo uns porcos, se eram mesmo todos assim ou se havia algum que se aproveitasse. E eu sem saber de que estava ela a falar. – Sophie, mas o que é que eu te fiz? – perguntei-lhe.
E ela insistia na pergunta, se todos os homens eram uns porcos, até que me contou que o Jaime a tinha convencido a ir observá-lo.
– O Jaime?! – estranhei. – Mas observá-lo a fazer o quê?!
– A escrever!! – gritou a Sophie. – Aquele porco espanhol!!! Diz-me, tu, jovem escritor, os homens são todos uns porcos, não são?!!
E a seguir desligou-me o telefone, sem esperar resposta.»
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Outras personagens: 1, 2.
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«E o Jaime, lembras-te do Jaime? A Sophie, da amostra que tinha de nós, enfim, para ela tudo bem... Mais um, deve ter pensado. O Jaime, que nem os postais para a namorada que tinha deixado em Espanha conseguia encher. Mas a Sophie achou que sim, que ele também escrevia. Quando descobriu tudo, telefonou-me para a cabana a perguntar-me se todos os homens eram mesmo uns porcos, se eram mesmo todos assim ou se havia algum que se aproveitasse. E eu sem saber de que estava ela a falar. – Sophie, mas o que é que eu te fiz? – perguntei-lhe.
E ela insistia na pergunta, se todos os homens eram uns porcos, até que me contou que o Jaime a tinha convencido a ir observá-lo.
– O Jaime?! – estranhei. – Mas observá-lo a fazer o quê?!
– A escrever!! – gritou a Sophie. – Aquele porco espanhol!!! Diz-me, tu, jovem escritor, os homens são todos uns porcos, não são?!!
E a seguir desligou-me o telefone, sem esperar resposta.»
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Outras personagens: 1, 2.
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António Souto – Crónica (28)
… à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
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Os muros da escola
Todos os anos lectivos têm um início e um fim, como os anos civis, embora não coincidentes com estes.
O ano lectivo no secundário inaugura-se, para os caloiros, um dia antes das aulas a sério. Ocasião para conhecer os novos colegas, os novos espaços e as novas regras.
O grande encontro faz-se às dez, no Auditório, para ouvirem todos palavras de recepção e de acolhimento. Antes disso, porém, já muitos deles tinham recebido o baptismo de chegada a este ciclo de ensino: bastou transporem os portões da escola, e logo os mais velhos os acoitaram com esguichos de água, farinha de trigo e ovos, e muitos grafitos pelas partes desnudadas.
Às dez e meia, os directores de turma dirigem-se para uma sala pré-determinada. Os alunos seguem também cada um para a sua. Alguns, circunspectos, perguntam onde fica, outros, mais afoitos, aventuram-se com um plano nas mãos. Depois, lá dentro, a turma vai-se formando aos poucos num amontoado de seres atarantados entre o curioso e o displicente. São agora jovens, todos iguais e todos diferentes.
Professores e alunos apresentam-se. Já ninguém desconhece a história, sempre a mesma, só não se conhecem uns aos outros, mas não tardará. Um pouco de conversa e o ambiente de retraimento inicial começa a descontrair-se e a dissipar-se.
Um professor comunica umas quantas informações. Transmite algumas normas de comportamento e de civilidade. Distribui os cartões de estudante. Deseja um bom ano e uma boa empatia.
Antes disso, no entanto, e volvidos parcos minutos, já a primeira criatura se revelara. Enfastia-se, como se em cativeiro. Olha para o relógio e não esconde a inquietude. Assim uma espécie de vontade fisiológica contida. Não, esclarece, nada que a casa de banho mais próxima resolva. Não, o problema era a pressa. Tinha pressa de se ir embora. O professor pede-lhe um pouco de paciência, que faltava fazer ainda, e só, uma aligeirada visita pela escola, só para no dia seguinte se orientarem sem perdas de tempo. Não, tinha mesmo pressa, e a impaciência principia a molestar. Pois então que fosse (os seus colegas viram, ouviram e sentiram o nervosismo no ar). E foi, decidido a ir e a só voltar no dia seguinte. A visita pelos pátios cumpre-se, agora com um aluno a menos que ninguém nota. Pelos vistos, houve quem quisesse marcar o desapego e a insolência de véspera, e deste modo dizer ao que vinha.
O professor sabe disso.
No dia seguinte, como determina o calendário escolar, arrancam as aulas a sério. No dia seguinte, como repetidamente acontece, haverá sempre um parvalhão a mais a marcar presença e a marcar o passo.
O professor sabe disso. O professor sabe que o dia seguinte será sempre um novo dia, com ou sem Estatuto, velho ou novo. O professor também sabe que nem todos os alunos são obtusos e grosseiros.
Por isso é que o professor é convidado duas vezes por ano para jantar com ex-alunos de há quatro anos, jovens crescidos e quase formados. Por isso é que o professor foi jantar hoje com ex-alunos que deixaram este ano a escola e que pela primeira vez experimentam a universidade, jovens crescidos que aprenderam de crianças que a estultícia não dá frutos.
Hoje, à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
Todos os anos lectivos têm um início.
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Crónica de Setembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27.
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Os muros da escola
Todos os anos lectivos têm um início e um fim, como os anos civis, embora não coincidentes com estes.
O ano lectivo no secundário inaugura-se, para os caloiros, um dia antes das aulas a sério. Ocasião para conhecer os novos colegas, os novos espaços e as novas regras.
O grande encontro faz-se às dez, no Auditório, para ouvirem todos palavras de recepção e de acolhimento. Antes disso, porém, já muitos deles tinham recebido o baptismo de chegada a este ciclo de ensino: bastou transporem os portões da escola, e logo os mais velhos os acoitaram com esguichos de água, farinha de trigo e ovos, e muitos grafitos pelas partes desnudadas.
Às dez e meia, os directores de turma dirigem-se para uma sala pré-determinada. Os alunos seguem também cada um para a sua. Alguns, circunspectos, perguntam onde fica, outros, mais afoitos, aventuram-se com um plano nas mãos. Depois, lá dentro, a turma vai-se formando aos poucos num amontoado de seres atarantados entre o curioso e o displicente. São agora jovens, todos iguais e todos diferentes.
Professores e alunos apresentam-se. Já ninguém desconhece a história, sempre a mesma, só não se conhecem uns aos outros, mas não tardará. Um pouco de conversa e o ambiente de retraimento inicial começa a descontrair-se e a dissipar-se.
Um professor comunica umas quantas informações. Transmite algumas normas de comportamento e de civilidade. Distribui os cartões de estudante. Deseja um bom ano e uma boa empatia.
Antes disso, no entanto, e volvidos parcos minutos, já a primeira criatura se revelara. Enfastia-se, como se em cativeiro. Olha para o relógio e não esconde a inquietude. Assim uma espécie de vontade fisiológica contida. Não, esclarece, nada que a casa de banho mais próxima resolva. Não, o problema era a pressa. Tinha pressa de se ir embora. O professor pede-lhe um pouco de paciência, que faltava fazer ainda, e só, uma aligeirada visita pela escola, só para no dia seguinte se orientarem sem perdas de tempo. Não, tinha mesmo pressa, e a impaciência principia a molestar. Pois então que fosse (os seus colegas viram, ouviram e sentiram o nervosismo no ar). E foi, decidido a ir e a só voltar no dia seguinte. A visita pelos pátios cumpre-se, agora com um aluno a menos que ninguém nota. Pelos vistos, houve quem quisesse marcar o desapego e a insolência de véspera, e deste modo dizer ao que vinha.
O professor sabe disso.
No dia seguinte, como determina o calendário escolar, arrancam as aulas a sério. No dia seguinte, como repetidamente acontece, haverá sempre um parvalhão a mais a marcar presença e a marcar o passo.
O professor sabe disso. O professor sabe que o dia seguinte será sempre um novo dia, com ou sem Estatuto, velho ou novo. O professor também sabe que nem todos os alunos são obtusos e grosseiros.
Por isso é que o professor é convidado duas vezes por ano para jantar com ex-alunos de há quatro anos, jovens crescidos e quase formados. Por isso é que o professor foi jantar hoje com ex-alunos que deixaram este ano a escola e que pela primeira vez experimentam a universidade, jovens crescidos que aprenderam de crianças que a estultícia não dá frutos.
Hoje, à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
Todos os anos lectivos têm um início.
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Crónica de Setembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27.
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sábado, 25 de setembro de 2010
Personagens de «O Medo Longe de Ti» – 2
«Ali estava ele a conferir se tinha todos os estudantes presentes, como se não se visse logo que não, como se não desse para ver que na primeira fila, na nossa, a minha e a da rapariga mais bonita do mundo, faltava gente. Três mesas sem livros nem cadernos, três cadeiras vazias. Alguma coisa se passava.»
..Primeira personagem aqui.
Etiquetas:
Literatura,
Romance «O Medo Longe de Ti»
Contos inesquecíveis (5)
«Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da gordura na sertã. Dantes, seria o bastante para lhe correr a baba pelas barbelas abaixo.»
«Nero», de Miguel Torga (do livro «Bichos»)
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Personagens de «O Medo Longe de Ti» – 1
O jovem escritor
– Sophie, ou a chamada está sob escuta ou então estás a ranger os dentes de raiva!
– Raiva, jovem escritor, eu?! A ranger os dentes, talvez. Mas isso é dos nervos. Estou nervosa, nervosinha como uma raposa da floresta a aproximar-se da cidade em busca de alguma entrada para o novo aviário que agora fizeram junto à ligação com a auto-estrada para Stuttgart...
– Sophie, ou a chamada está sob escuta ou então estás a ranger os dentes de raiva!
– Raiva, jovem escritor, eu?! A ranger os dentes, talvez. Mas isso é dos nervos. Estou nervosa, nervosinha como uma raposa da floresta a aproximar-se da cidade em busca de alguma entrada para o novo aviário que agora fizeram junto à ligação com a auto-estrada para Stuttgart...
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Etiquetas:
Literatura,
Romance «O Medo Longe de Ti»
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
O pinheiro
Excerto de uma entrevista do nosso futebol.
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Jornalista «Mister, afinal o Sporting não conseguiu contratar o pinheiro que o senhor tanto queria...»
Paulo Sérgio «É verdade.»
Jornalista «A que é que se referia ao falar num pinheiro em que as bolas iriam bater para entrarem nas balizas dos adversários?»
Paulo Sérgio «Um avançado com mais de um metro e noventa.»
Jornalista «Mas para isso tinham o Purovic, que acabaram por emprestar ao Belenenses...»
Paulo Sérgio «Em parte é verdade.»
Jornalista «Não percebi.»
Paulo Sérgio «É que eu queria um pinheiro bravo.»
Jornalista «A que é que se referia ao falar num pinheiro em que as bolas iriam bater para entrarem nas balizas dos adversários?»
Paulo Sérgio «Um avançado com mais de um metro e noventa.»
Jornalista «Mas para isso tinham o Purovic, que acabaram por emprestar ao Belenenses...»
Paulo Sérgio «Em parte é verdade.»
Jornalista «Não percebi.»
Paulo Sérgio «É que eu queria um pinheiro bravo.»
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domingo, 12 de setembro de 2010
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Por curiosidade
Tirei a foto apenas por curiosidade. Já o tinha visto em tantos sítios por aqui, nos baloiços, no escorrega, em cima das cadeiras ou de uma mesa, num dos tapetes, nos muros, nas árvores. Mas nunca à baliza. Por isso tirei a foto. Apenas por curiosidade. Não por publicidade. No Benfica que não estejam já com ideias.
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Contos inesquecíveis (4)
«O trabalho de Big Bart consistia em levar a caravana a salvo até ao Oeste, engatar as senhoras todas, matar meia dúzia de homens e depois voltar para trás, para ir buscar outro carregamento.»
«Tira lá os olhos das mamas, ó manjerico!», de Charles Bukowski (do livro «A Sul de Nenhum Norte»)
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O clube
Nunca tinha reparado, mas agora, com o anúncio do despedimento de Carlos Queiroz, fiquei a saber que Gilberto Madail é mais um dos que integram o clube do «tem a haver». Antes de passar ao que tinha sido decidido na reunião da direcção da FPF, o presidente fez questão de revelar algumas coisas que tinham a «haver» já não me lembro bem com o quê. Não há-de ser por falta de sócios, simpatizantes ou mal-falantes que este clube um dia fechará as portas. Há sempre alguém que nos diz «tem a haver», independentemente de nos fazer ou não pensar um pouco. Os tipos do acordo ortográfico deviam ter pensado nisto também. Se é que não pensaram. A verdade é que não sei. Pouco apanhei do acordo, tirando algumas asneiras mais gritantes. Na volta meteram lá o «tem a haver» e eu é que ainda ando um bocado atrasado.
Resta saber se Carlos Queiroz tem a haver alguma coisa com isto. Sem aspas e com muitos zeros no cheque.
Resta saber se Carlos Queiroz tem a haver alguma coisa com isto. Sem aspas e com muitos zeros no cheque.
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quinta-feira, 9 de setembro de 2010
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Revista «human» de Setembro
Nas bancas já desde o final do mês passado. É o número 21, de Setembro de 2010. Mais informações sobre a edição aqui. Deixo a seguir o meu editorial…
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A economia
Um trabalho sobre MBAs, pós-graduações e formação de executivos, com vários exemplos de bem sucedidas apostas no desenvolvimento de competências, e um outro sobre consultoria, nomeadamente explorando o apoio que esta actividade pode dar ao tecido empresarial, são dois dos destaques da edição de Setembro da «human». A mesma edição em que decidimos puxar para figura de capa um homem a quem em Portugal nos habituámos a ouvir falar de economia de uma forma simples e que toda a gente consegue perceber. Num tempo em que a economia se tornou um assunto do dia-a-dia, fica o convite para acompanhar as ideias de Camilo Lourenço, um jornalista que gosta de traduzir essa mesma economia na linguagem de aldeia que o pai lhe ensinou. Precisamente para que toda a gente perceba. E porque interessa a toda a gente, ou não estivesse o país – como ele assinala – a ver à sua frente «o dia do juízo final».
A propósito do tema desta entrevista, permitam-me mais um destaque. Uma das habituais crónicas, a de Carlos Antunes, intitulada «Os economistas do regime», de quem cada vez mais as pessoas se desligam, encolhendo os ombros em relação ao que dizem. O nosso colaborador encontra duas razões para isso, a fadiga e uma outra que dessa mesma fadiga deriva. Porque em geral – como explica Carlos Antunes – as pessoas «vêem esses economistas, ex-ministros das finanças, ex-banqueiros ou gestores, a somarem reformas, muitas delas de valores obscenos para a realidade portuguesa, adquiridas em escassos anos de trabalho e auferidas em acumulação com outras, a botarem discurso sobre a crise e a exigirem do alto do seu conforto milionário sacrifícios múltiplos a quem se sacrificou a vida inteira». O calendário deles, já se vê, não inclui «o dia do juízo final» de que fala Camilo Lourenço.
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A economia
Um trabalho sobre MBAs, pós-graduações e formação de executivos, com vários exemplos de bem sucedidas apostas no desenvolvimento de competências, e um outro sobre consultoria, nomeadamente explorando o apoio que esta actividade pode dar ao tecido empresarial, são dois dos destaques da edição de Setembro da «human». A mesma edição em que decidimos puxar para figura de capa um homem a quem em Portugal nos habituámos a ouvir falar de economia de uma forma simples e que toda a gente consegue perceber. Num tempo em que a economia se tornou um assunto do dia-a-dia, fica o convite para acompanhar as ideias de Camilo Lourenço, um jornalista que gosta de traduzir essa mesma economia na linguagem de aldeia que o pai lhe ensinou. Precisamente para que toda a gente perceba. E porque interessa a toda a gente, ou não estivesse o país – como ele assinala – a ver à sua frente «o dia do juízo final».
A propósito do tema desta entrevista, permitam-me mais um destaque. Uma das habituais crónicas, a de Carlos Antunes, intitulada «Os economistas do regime», de quem cada vez mais as pessoas se desligam, encolhendo os ombros em relação ao que dizem. O nosso colaborador encontra duas razões para isso, a fadiga e uma outra que dessa mesma fadiga deriva. Porque em geral – como explica Carlos Antunes – as pessoas «vêem esses economistas, ex-ministros das finanças, ex-banqueiros ou gestores, a somarem reformas, muitas delas de valores obscenos para a realidade portuguesa, adquiridas em escassos anos de trabalho e auferidas em acumulação com outras, a botarem discurso sobre a crise e a exigirem do alto do seu conforto milionário sacrifícios múltiplos a quem se sacrificou a vida inteira». O calendário deles, já se vê, não inclui «o dia do juízo final» de que fala Camilo Lourenço.
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sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Contos inesquecíveis (3)
«Só quando parámos o jipe é que os vi. Estavam ali, à beira da estrada, meio escondidos pelo fragor do crepúsculo – o velho e os seus lagartos. Eram lagartos enormes e tinham o pescoço enrugado como o do velho e os mesmos olhos miúdos e misteriosos.»
«Dos perigos do riso», de José Eduardo Agualusa (do livro «Fronteiras Perdidas»)
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Yannick
Um golo de Yannick qualificou o Sporting para a «Liga Europa». Curiosamente, o mesmo jogador que José Eduardo Bettencourt tentou esta semana oferecer ao Benfica. Anda o meu clube a pagar principescamente a um presidente para isto...
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Uma entrevista
Diria que alcançou um estilo literário próprio e facilmente identificável por quem o lê?
Acho que dá para perceber que os meus livros são realmente meus. Não sei. Mas foi uma coisa a que desde o início me habituei, porque logo quando saiu o primeiro livro alguém escreveu num jornal que era mais fácil falsificar um quadro de Dali do que assinar um livro meu com outro nome. Talvez pelo exagero que tinha, a frase acabou por ser citada várias vezes e isso ajudou a que, de vez em quando, eu fosse confrontado com essa história do estilo próprio. Depois há outra coisa, eu entro nalguns dos meus livros. Quem, além de mim, iria colocar-me num livro?
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Toda a entrevista, feita por Lurdes Breda para o site «Livros & Leituras», aqui.
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Acho que dá para perceber que os meus livros são realmente meus. Não sei. Mas foi uma coisa a que desde o início me habituei, porque logo quando saiu o primeiro livro alguém escreveu num jornal que era mais fácil falsificar um quadro de Dali do que assinar um livro meu com outro nome. Talvez pelo exagero que tinha, a frase acabou por ser citada várias vezes e isso ajudou a que, de vez em quando, eu fosse confrontado com essa história do estilo próprio. Depois há outra coisa, eu entro nalguns dos meus livros. Quem, além de mim, iria colocar-me num livro?
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Toda a entrevista, feita por Lurdes Breda para o site «Livros & Leituras», aqui.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Contos inesquecíveis (2)
«Um juiz aposentado, que nesse outono se encontrava em tratamento de águas numas termas, frente ao mar, viu passar no horizonte do pôr-do-sol um bando de porcos-voadores. Um juiz no outono é sempre muito prevenido, e se estiver aposentado pior.»
«Ascensão e queda dos porcos-voadores», de José Cardoso Pires (do livro «A República dos Corvos»)
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