quarta-feira, 1 de julho de 2009

António Souto – Crónica (13)

Décima terceira crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Esta é a da edição de Junho de 2009.
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Agastamentos
1. Andam os portugueses, classe baixa e média, contando euros e cêntimos, cada vez menos euros e menos cêntimos, e liga a gente a televisão e o que ouve e vê? Vê e ouve gente especialista em economia e finanças a falar de milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões, milhares de milhões, tudo euros, muitos euros, à grande, como se migalhas fossem.
Ele é BCP para cima, ele é BPN para baixo, e mais BPP para cima, ou melhor, eles são BCP, BPN e BPP todos para baixo, e Banco de Portugal nem para baixo nem para cima, e depois é a nossa Caixa Geral, cada vez menos de depósitos nossos, a inocular milhares de milhões para salvar milhões, e há até quem afirme que umas milionárias obrinhas de arte (coisa de pouca monta), património de um qualquer banco privado, debandaram a sete asas, levaram um sumiço dos diabos, quem sabe se para assim evitar a fúria de algum queixoso mais destrambelhado.
No mesmo dia em que se noticia este suposto descaminho, assistimos em debate acalorado, no Canal 1, o Bastonário da Ordem dos Advogados a revelar que os Conselhos Distritais reclamam mais e maiores subsídios para fazer face aos seus compromissos, mas que, curiosamente, apresentam alguns deles saldos finais de milhões, de milhões de euros, milhões de irritar tantos jovens advogados que, contribuindo para o levedar do bolo (com a legítima esperança de virem a ser advogados a sério), andam pelo país inteiro a penar numa canseira danada para desenrascarem umas oficiosas.
E o estranho é que não há dia que passe em que se não desenterrem, sabe-se lá como e por obra e graça de quem, mais uns milhões para uma coisa e para outra e para outra ainda, e se não esfumem por incomuns malabarismos outros tantos milhões. Felizmente, no final do deve-haver, ao ritmo das legislaturas, tudo se controla, com mais ou menos sacrifício, com mais ou menos défice, com mais ou menos praia!
2. Carlos Candal faleceu. Com ele um pouco da história de um partido que ajudou a fundar. Com ele um pouco da história da intervenção política aveirense. Com ele uma personalidade intrépida e o culto de um estilo retórico. Com ele a marca singular de um charuto sempre atiçado, como um manifesto. PUM!
3. Faleceu José Calvário. Com ele um pouco da história da música que ajudou a criar. Com ele um pouco da história da canção e da Eurovisão. Com ele uma partitura de liberdade. Com ele um pouco das notas de Abril. E depois do Adeus?
4. Faleceu também Jorge de Sena, mas há três décadas (1919-1978). Ou terá morrido há cinquenta anos, quando partiu para o exílio? A nossa história tem destas coisas: tratamos mal ou maltratamos o que é nosso, enjeitamos quanto nos embaraça, para nos delambermos quando a fama faz subir a parada. Foi assim com Vieira da Silva; é assim (ou será ainda mais) com Saramago.
Ficcionista, poeta e dramaturgo, Sena foi igualmente um professor de mérito no Brasil e nos Estados Unidos da América. Nunca fez as pazes com a pátria, pelo menos em vida. Fê-las agora através da mulher e da filha que, cumprindo o seu desejo, doaram o seu espólio (ou parte dele) à Biblioteca Nacional de Portugal. Em Setembro, iniciado o Outono, e segundo consta, serão trasladados os seus restos mortais para chão luso, nos Prazeres, em Lisboa. Os portugueses agradecem e louvam o gesto. Sinais de Fogo… ou sinais do tempo?
5. Ah, já nos esquecíamos, houve europeias! E houve quem tivesse perdido, muito, mais do que devia. Há quem diga que é o preço das reformas, mas não creio. Cá para mim é o preço justo pelas sandices, sobretudo das formas. O problema maior é que a procissão ainda vai no adro, e a meio do Outono não creio que haja santos populares que nos assistam. E teria sido tudo tão mais simplex…
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2 comentários:

Susn F. disse...

Gostei de ler esta crónica, principalmente o ponto 4. A mentalidade pequenina de muitos portugueses não lhes permite aceitar o sucesso e compreender as escolhas daqueles que tanto fazem pela sua arte.

Abraço

Manuel Ramalhete disse...

Gostei da crónica.

Este cavar de fosso entre os portugueses, cada vez mais vergados ao peso da vida do dia a dia e a ostentação dos milhares de milhões, para isto e para aquilo, já não é só vergonhoso: é obsceno. Devem ser esses os conceitos deles de solidariedade e de coesão nacional.
Mas, respondendo a Sérgio Godinho: sim, há hoje uma raiva a crescer-nos nos dentes!

Hoje, já não existe o sentido das proporções. São cada vez mais os que seguem o culto da destemperança. Que fazem gala em iludir a grande massa da população. Há um sadismo instalado na classe dominante. Há mesmo um desafio que já nem é disfarçado.

Noutro ponto: Jorge de Sena, sim foi atirado para o exílio. Imperdoável, mas parece que ganharam. Sob outros nomes (mas os mesmos), tentaram, mais tarde, fazer o mesmo a Saramago. Pobres idiotas; Saramago não estava para aí virado e foram eles que acabaram. Alguns no ridículo e quase todos em larada.