terça-feira, 4 de novembro de 2008

António Souto – Crónica (5)

Quinta crónica de António Souto, depois desta, desta, desta e desta . O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Esta é a da edição de Outubro.
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Contos (d)e realidades
«A Última Colina» (1), um livro de Urbano Tavares Rodrigues, o mais recente, uma antologia de contos.
Admiro o autor (que tenho o privilégio de conhecer e de o ter modestamente como amigo), a sua bondade (sempre presente no olhar e no trato), o modo como governa a palavra, a sua mestria no falar e no dizer, o seu aprumo de valores.
A descoberta que fiz da/ na sua obra foi mais do que isto mesmo, foi uma revelação, um modo único de desvendar o homem e os afectos, um modo único de aprender as relações insidiosas entre os homens, mas, igualmente, a sua capacidade de perdoar, mesmo quando as consequências das atrocidades ficam indelevelmente gravadas na memória.
Em «A Última Colina» retomam-se estas dimensões. O registo do passado (de um passado-presente) vagueia pelos interstícios do texto, confundindo-se com as marcas da solidariedade e da fraternidade; a ternura e os apegos parecem ainda dar as mãos a uma ânsia de amar e de partilhar carícias. A juventude do autor (que em breve festejará os 85 anos) emerge por entre salpicos de alguma consciente desistência. Só nisto dói a leitura de um ou outro conto.
E depois há os outros, de uma manifesta actualidade.
(…) «Aquele palácio tinha a ver mais comigo do que jamais poderia ter imaginado.
Quem me guiava agora, através da pequena multidão de convidados, era a minha mulher, com o sorriso meigo dos seus melhores dias e um leve lume irónico nos grandes olhos verdes.
Acotovelávamos damas ultrapomposas, outras balofas e outras despidas em veludos e sedas rangentes, empresários vermelhos e atléticos, tostados pelo sol da riqueza ou com barbas altivas. Gente que falava de novas marcas e estratégias do poder, do simpático Bill Gates e da Microsoft, mas também de publicidade, de futebol, da televisão, numa linguagem cheia de segurança e de chavões. Eram os senhores do dinheiro e os senhores do mundo.
Olhámo-nos, eu e a minha mulher, com cumplicidade. ‘Têm os governantes necessariamente de se apalhaçar assim para agradarem e falar tanto em democracia e liberdade quando cada vez mais desses valores se distanciam? Teremos de gramar eternamente as mesmas obesidades mentais, a mesma mediocridade, o mesmo egoísmo palrador?’» (…)
(2)
Conto atrás de conto, revisitam-se lugares, vozes e perfumes, reconstrói-se uma vida. A vida de quem soube compreender as injustiças da Vida.
***
Vida que insiste em manter-se injusta. Em tornar-nos semelhantes e diferentes, discriminadamente desiguais. Povos do Norte e Povos do Sul, desenvolvidos e subdesenvolvidos, ricos e pobres.
Porém, quando a Europa se une – os outros, mal deles, são os outros –, ficamos todos (nós) repentinamente mais ricos, porque mais unidos na fartura. Mais iguais. Pelo menos é o que nos dizem.
Mas quando umas parcas linhas de jornal nos noticiam que nós, daqui, portugueses, tardamos cerca de dois anos, em relação ao resto da Europa, a usufruir de novas terapêuticas, só porque os medicamentos mais eficazes, por serem caros, custam também aqui a chegar – como agora acontece no caso do cancro do pulmão –, então enxergamos como a ficção é tão real e tão oportunas são as palavras de Urbano Tavares Rodrigues…
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(1) «A Última Colina» (contos), Dom Quixote, Setembro de 2008
(2) In «Um Dia na Vida»
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1 comentário:

Anónimo disse...

É de louvar o seu comentário - inteligente - ao livro do Urbano Tavares Rodrigues. O que o António Manuel Venda fez é absolutamente natural - revela tudo sobre si. O que não é natural, é não falar de quem merece.