sábado, 16 de agosto de 2008

Dois textos sobre Saramago (2)

Segundo de dois textos sobre José Saramago (o primeiro foi publicado neste blog há poucos dias). O autor é o meu amigo António Souto, que os escreveu para uma crónica («Ex-abrupto») que mantém no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Este segundo texto é o da edição de Julho.

Da estupidez dos homens
Na crónica anterior (de Junho) referimo-nos à personalidade e à escrita de José Saramago, nosso Nobel da Literatura (1998). Aí mencionámos, de raspão, a infeliz intervenção de um «aspirante a censor» que viria a manchar, já em regime democrático, a nossa liberdade de Abril.
Volto de novo ao assunto depois de ter ido visitar, ao Palácio Nacional da Ajuda, a exposição (já encerrada ao público desde 27 de Julho) intitulada «A Consistência dos Sonhos». Organizada e inaugurada em Espanha, por comissário espanhol, esta exposição traça cronologicamente toda a vida e obra de José Saramago – um universo de sonhos alimentados em criança (em vida áspera iniciada no campo), em jovem (em trabalhos e estudos de constante abnegação e luta) e em adulto (em nome de muitos 'outros' e com a escrita como mester). Uma exposição cuidadosa que enobrece o homenageado e que nos orgulha a nós, portugueses como ele.
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No entanto, nesta mostra biobibliográfica, há dois apontamentos ‘verdadeiros’ que nos envergonham e que nos devem fazer pensar sobre a ignorância e estupidez dos homens, bem como sobre a cegueira política (razões de sobra para lermos «Ensaio sobre a Cegueira» e «Ensaio sobre a Lucidez», ambos de Saramago).
1 – Em 1992, era Cavaco Silva primeiro-ministro e Santana Lopes secretário de estado da Cultura, houve um subsecretário de estado deste último (de seu nome Sousa Lara) que vetou o nome de Saramago – e o seu livro «O Evangelho segundo Jesus Cristo» – para o Prémio Literário Europeu, com o argumento de que este livro não representava Portugal e que atacava «princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses» e, portanto, «longe de os unir, dividiu-os» (Sousa Lara, debate sobre a Cultura na Assembleia da República, Abril de 1992). Tentando justificar esta sua decisão de veto, afirma peremptoriamente: «Esta minha atitude nada tem a ver com estratégias de venda, nem sequer com opções literárias. E muito menos com as escolhas políticas de Saramago. Não entrou em linha de conta o facto de ele ser comunista ou pertencer à Frente Nacional para a Defesa da Cultura» («Público», 25 de Abril de 1992). Acção indigna, esta, que fez com que Saramago transferisse a sua residência para Espanha, para a ilha de Lanzarote, onde ainda hoje vive com a sua mulher Pilar del Rio. Foram precisos vários anos, mais de dez, para que Durão Barroso, em jeito de ‘pedido de desculpa’, condenasse «em absoluto» um acto discriminatório proferido por um governo igualmente do seu partido político e reatasse as boas relações do escritor com Portugal.
2 – Em 1997, quando a Escola Secundária de Mafra propôs para seu patrono o nome de José Saramago, a Assembleia Municipal de Mafra e o respectivo Executivo negaram esta pretensão, através de uma deliberação que a exposição «A Consistência dos Sonhos» dá a ler aos visitantes. A razão principal prendia-se com a publicação, pelo escritor, do livro «Memorial do Convento», obra que em nada valorizava Mafra e os mafrenses, assim mesmo. Por ironia do destino, este romance (que inspirou uma ópera – «Blimunda» – escrita pelo compositor italiano Azio Corghi, estreada em 1990, em Milão) é hoje livro obrigatório de leitura integral no 12º ano de escolaridade. O Ministério da Educação, contudo, contrariando a extenuada argumentação camarária, acabaria por aprovar a designação de «Escola Secundária José Saramago» àquele estabelecimento de ensino.
Também por ironia, ou por valia, em 1998 é atribuído o Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, pela sua vasta e singular obra. Está bem de ver que a autarquia mafrense ficou numa situação algo incómoda, de difícil digestão, a tal ponto que em Dezembro do ano passado, e pela mão do mesmo Presidente da Câmara de então, Ministro dos Santos, o Executivo decidiu atribuir a medalha de mérito, categoria de ouro, ao escritor José Saramago, pela sua obra «Memorial do Convento».
Saramago, que faltou à cerimónia, entendeu, porém, receber a distinção, não sem antes declarar: «Que méritos tenho hoje que me faltassem ontem? O meu primeiro e natural impulso foi rejeitar, mas depois pensei na fidelidade, na constância com que durante aquele tempo os meus leitores de Mafra sofreram comigo a repugnante injustiça. Será pois por gratidão a eles, e só por gratidão a eles, que aceitei o distintivo.»
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Assim se faz a história de um homem que, no alto dos seus oitenta e seis anos, já não aspira a mais merecimentos ou a quaisquer fingidas bajulações.
Assim se faz e desfaz a história de outros homens, bem mais pequenos, que dificilmente sairão da sua reconhecida estupidez.
Felizmente que há quem faça exposições como esta, de sonhos sustentados, para bem da História.
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8 comentários:

Anónimo disse...

António:

É por isso que não gostam de Saramago. Diz o que tem a dizer e é consequente. Por isso e pela inveja. Mas quem são o Laras e os Ministros dos Santos?
Daqui a uns anos já ninguém se lembra deles e, se foram lembrados, são como nódoas que tentaram enxovalhar um escritor de mérito.

É curioso que "larada" é uma nódoa larga produzida por um líquido ou é um excremento aquoso muito espalhado (diarreia), entre outros significados. Pode ser só coincidência.

Um abraço.

Leonor disse...

Foi com grande orgulho que na exposição vi a assinatura da minha mãe no documento oficial para que a Escola, onde hoje sou professora, tivesse o nome de Saramago.

Anónimo disse...

Leonor:

E é caso para estar orgulhosa, tal como a Senhora sua mãe. Em nome deste cidadão, bem hajam!

Anónimo disse...

Leonor

É mesmo para estar orgulhosa.

Abraço,

António

Manuel Nunes disse...

O "Memorial" é das obras mais fascinantes de Saramago. Uma exaltação histórica dos humildes: trolhas, cabouqueiros, homens-bestas de carga. Foram eles a argamassa que juntou as pedras, que fez subir as paredes e os torreões.
Há tempos encontrei na Biblioteca Nacional, por mero acaso, um texto de um viajante do século XVIII (se não estou em erro inglês) onde é descrita uma nulher extraordinária que então vivia em Lisboa. A mulher tinha uma aptidão excepcional, nunca achada em ninguém: a de poder ver o interior dos corpos quando em jejum. Este escrito - onde o viajante apresenta os costumes e crendices de um povo atrasado - inspirou Saramago na criação de Blimunda - o que só demonstra como o autor estudou os textos da época em que decorre o seu romance. Não sendo histórico, é um romance que dialoga com a História.
E a Blimunda não pára: Hélia Correia fez dela personagem do seu belíssimo romance "Lillias Fraser".
Continue a dar-nos Saramago, caro António, que o pessoal agradece.
Grande abraço para todos,
Manuel Nunes

Leonor disse...

Obrigada, peço desculpa pela revelação pública mas foi um momento importante. Ainda hei-de escrever um texto sobre o episódio.
Beijinho

Anónimo disse...

Leonor

Quando escrever o texto, gostava de o publicar também aqui. É possível?

António

Leonor disse...

Sim, claro. É uma honra.