quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

António Souto – Crónica (8)

Oitava crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»).
Esta é a da edição de Janeiro de 2009.
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Sofrimento próprio e alheio
Aqueles que nunca sofreram não sabem nada, não conhecem nem os bens nem os males, ignoram os homens, ignoram-se a si próprios. (François Fénelon)
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Hospital. Serviço de neurocirurgia. Enfermaria, três dias; bloco operatório, cuidados intermédios e enfermaria, uma dúzia deles. Duas semanas de cogitação e de aprendizagem. Traumatismos cranianos, aneurismas, neurinomas, acidentes vasculares cerebrais, algumas hérnias, quase tudo cabeças recortadas, suturadas e grampeadas. Cenário de ficção ao jeito de Steven Spielberg.
Medem-se os sinais vitais, fazem-se pensos, posicionam-se acamados, aspiram-se doentes com secreções, dá-se a medicação, mudam-se garrafas com alimentação por sonda, substituem-se os soros, substituem-se lençóis e fronhas e pijamas, fazem-se gestos de carinho, uma palavra de conforto, um afago na mão ou no rosto, deseja-se uma boa noite…
E a noite, continuamente, uma eternidade. Quem passa todo o tempo no quarto perde a noção do dia. As luzes quase sempre acesas. Lá para a uma ou duas da manhã apagam-se, mas ficam as do corredor, em vigília, ou as da sala dos enfermeiros (ou das enfermeiras, a maior parte), também velando.
Lá para as seis e meia, sete horas, de novo as lâmpadas de néon como castigo. Medem-se as tensões, as saturações, as temperaturas. Distribui-se a roupa da cama. Poisam-se ao lado os pijamas, as bacias de inox e as toalhas para o banho dos mais debilitados. Os outros, podendo, e autorizados, irão por seu pé, ou em cadeira de rodas, acompanhados, à casa de banho. Primeiro os que estão na calha para o bloco operatório. Às sete e meia, mais coisa menos coisa, em jejum desde a meia-noite, estão já lavados e com a bata cobrindo-lhes a nudez envergonhada. Tomam um comprimidinho para relaxar e aguardam serenamente que os maqueiros venham. A partir das oito podem chegar a qualquer momento.
Comigo, chegaram passava já das nove. Foi só o tempo de descer de uma cama e subir para outra, um pouco mais estreita. Às nove e dez (marcava um relógio de parede) estava numa antecâmara do bloco. Colocaram-me um acesso na mão esquerda para o soro. Reconheci o anestesista assistente que me visitara na véspera. Reparei ainda que a anestesista de serviço, presumo, me injectou qualquer coisa. Depois, encostaram-me a maca a uma larga persiana que começou subindo. A curiosidade fez-me olhar de soslaio para descortinar a sala de operações. O vazio.
Seis horas terá durado a intervenção. Acordei tarde. Um pouco enjoado e com tubos molestando-me. A meu pedido, e assegurados da sua dispensabilidade, foram retirados a sonda nasogástrica e o outro tubinho destinado ao oxigénio. Mantiveram a algália, três acessos (um deles numa artéria, que um aparelho incansavelmente monitoriza) e o sistema (com um cateter do braço esquerdo ao coração). Cuidados intermédios. Sala com mais quatro doentes. A cabeça e o pescoço doridos. A recuperação faz-se, lenta. A saída dali só não é mais rápida por falta de vagas na enfermaria. Três dias depois, os nestuns, os cerelaques e as sopas gelatinosas dão finalmente lugar às refeições normais e às rotinas que antes conhecera na enfermaria.
O «capecete» é retirado da cabeça. As suturas no crânio e no pescoço dão nas vistas. Junto-me aos demais pacientes de cascos recortados, suturados e grampeados. Participo agora no filme, já não como figurante, mas como personagem por uns dias principal. Os primeiros passos, os sessenta e sete passos para um lado e para o outro do corredor. O começo da autonomia. Os repastos e as visitas na sala do refeitório. A rotina, agora, na liberdade.
Fala-se com um vizinho, com outro e com outro. Gente jovem e menos jovem, mulheres e homens. Ouvem-se histórias distintas de desmaios, de quedas, de atropelos, de imprevistos. Acasos, adversidades, tragédias. Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.
No dia da alta, à despedida, sentimos no sorriso de cada enfermeira e de cada auxiliar um rasgo de saudades. Estranhamente.
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