sábado, 27 de março de 2010

António Souto – Crónica (22)

Março de tresvarios
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Pior do que isto, neste momento, só ser português, ou ser gente.
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Este mês de Março ameaça fazer jus ao ditado «Março marçagão, de manhã Inverno e de tarde Verão». Mas só ameaça mesmo, que a chuva, quando se quer libertar das alturas, não está com meias medidas e cai a qualquer hora. E agora que entra Abril, as águas mil hão-de chegar com a mesma teimosia, uma bênção para a natureza e para as árvores, para os milhares de árvores que, no seu dia, e em ano de centenário da República, foram por toda a parte fincadas na terra, com mais ou menos cerimónia, com mais ou menos parcimónia. Mas que a chuva nos dá cabo da paciência, a nós, gente citadina e pouco dada a molhas imprevistas, lá isso dá, e o pior é que nos faz andar um pouco macambúzios e desacordados com a vida e com os outros.
A tal ponto tem andado este mês de Março que os tresvarios, quando vêm ao de cima, resvalam para uma espécie de incontinência colectiva.
Quem não assistiu ao congresso do PSD, todo cheiinho de líderes e ex-líderes e anónimos de base (ou de bases) apoiantes de todos os quadrantes, assim numa espécie de telenovela barata cuja imprevisibilidade se deixa adivinhar nos primeiros episódios, e não se divertiu com um autarca, daqueles consolidados, que discursou e excursou animadamente com a sede à mercê de um copo de vinho que não veio, por não ser suposto rociar a goela com o néctar dos deuses, mas com um copo de água cristalina? O mesmo autarca que apregoou, em jeito de graça (muito aplaudida) ser um mentiroso ganhador de escrutínios, qualidade elementar para uma boa e continuada vitória. Um gracejo, pois então. E no final do dito consílio, arrastados pela verve encantatória de um ex-quase-tudo, as bases votaram uma proposta de alteração estatutária prevendo, ou determinando, um silenciamento pré-eleitoral que os candidatos a líderes, à saída, disseram todos enjeitar. Com acólitos destes…
E quem não assistiu um destes dias, num acto oficial de pompa e circunstância, a um mestre-de-cerimónias contratado para a ocasião anunciando com marcação a preceito: «E agora vai usar da palavra o senhor primeiro-ministro, engenheiro José Trócrates»? E o senhor primeiro-ministro, não se fazendo rogado, ignorou a deixa e usou da palavra, por não poder usar certamente nada mais à mão de semear. Isto há trocas…
E quem não assistiu, em directo ou em diferido, ao senhor presidente do hemiciclo insistindo na necessidade de um secretário de Estado se dirigir à assembleia com a fórmula regimental «senhor presidente, senhores deputados»? O problema é que o orador – ou porque pouco devotado a estas vãs etiquetas, ou porque pouco adestrado nestes protocolos, ou porque muito o nervosismo de debutante – não havia maneira de atinar com a maldita fórmula regimental, e o senhor presidente a dar-lhe com ela, e ela a enrodilhar-se na língua, e o senhor presidente a ameaçar retirar-lhe a palavra, e o orador que ainda não a tinha tomado, e a algazarra no plenário, e…
Melhor do que tudo isto, neste mês de Março, só mesmo o folhetim da comissão de ética agora revirada em comissão de inquérito, com chamadas e desfiles e audições e relatórios, cada um a seu tempo, que muito relatam e pouco concluem, como se viu e como se verá.
Melhor do que isto, só mesmo o PEC, um programa qualquer que dez milhões e seiscentos e cinquenta mil portugueses não sabem o que é, um programa que no dia um de Abril os restantes portugueses já terão esquecido.
Pior do que isto, neste momento, só ser português, ou ser gente.
Eu, pelo sim pelo não, e enquanto me não livro da crise, vou tentar livrar-me da chuva, e havendo uns raios de sol rumarei à beira-mar, entre Oeiras e Cascais, e anónimo tentarei confundir-me entre invernantes serôdios, como aconteceu já num ou noutro fim-de-semana soalheiro, como se para aquelas bandas por ali parisse a galega a meio da tarde…
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Crónica de Março de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21.
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