domingo, 6 de dezembro de 2009

António Souto – Crónica (18)

Crises de crença
1)
Como se diz numa linguagem de rés-do-chão, a coisa está preta. A crise veio e instalou-se, embora haja por vezes um ou outro Pangloss que afirme que ela está de partida ou que até já se foi. Mas a gente sabe que ela anda por aí, como a gripe A1N1, e que faz ou pode fazer estragos, aos outros ou a nós, e o que mais nos aflige é não sabermos se a vacina actua ou não, se chega ou não para todos. Com a crise galopa o desemprego, sem freio, por todos os montes e vales, campos e cidades do país, e dos que passam por ele, pelo desemprego, quase 250 mil não acedem, porque não podem, a contas bancárias – cerca de 30% deles porque cometeu alguma infracção, os restantes 70%, dizem-nos, porque não têm rendimentos que permitam quaisquer movimentos. São parcos os euros para justificarem a ilusão de um cartão de crédito na carteira, sequer um de débito, e os poucos que lhes passam pelos bolsos matam-lhes a dignidade, dizem-lhes que não são gente, ou que não passam disso mesmo, de gente de indigentes numa pátria do norte, rica e desenvolvida. E parte deste povo que há pouco partiu, volta a partir, ainda mais para norte, onde a crise é menos crise e as pessoas ainda são pessoas para além de gente. A pena que me faz, agora que se evoca Ary dos Santos, não haver quem cante este infortúnio, não haver vozes que se indignem.
2) O tecido produtivo (fica bem de vez em quando falar como quem fala bem) está abalado, isto é, como todos os outros, em crise. Crêem os entendidos que o problema reside sobretudo nas pequenas e médias empresas (PME, também para impressionar), que é quem mais produz e anima o mercado (mais uma expressão a mais), que estão em sufoco e que o estado as não apoia como seria sua obrigação, que não rendem como podiam e que por isso as exportações não cobrem as importações. Cá para mim estou em crer que andamos todos às avessas – para que havemos de impulsionar (mais um palavrão bonito e à la mode) a indústria se somos é mesmo bons no comércio, na charlatanice, sempre fomos, de resto, desde que vencemos Baco nos idos de quinhentos. O que a gente gosta é de negociar e de negócios, seja com quem for e venha quem vier. Não espanta, portanto, que apesar da crise haja alguns (negócios) que vão de vento em popa, principalmente daqueles de encher o olho, daqueles de fausto mercado, como carros de alta gama, roupa de alta-costura, jóias de alto valor. Pelo menos a fazer fé nos registos que nos asseveram que o mercado de luxo está em alta e, pasme-se, que cerca de 30% desse mercado se faz com cidadãos angolanos. É tudo questão de regressar às origens, de descobrir novas índias e de nos convertermos em mercadores de um novo tempo.
3) A crise é crise. Financeira, de estímulo ou de fé. A todo o momento pode ela chegar à porta de um qualquer insuspeito e entrar, sem bater, e instalar-se no seu bolso ou no seu coração. Pelos vistos, ninguém lhe é imune, nem mesmo quem por vocação se apartou dos bens terrenos poderá dar graças a Deus por estar a salvo. Soube-se há pouco que um padre, jovem ainda, tendo esperado pacientemente que a sua amada atingisse os dezoito anos, fugiu depois com ela das bandas de Celorico (de Basto) para parte incerta. Os pais da moçoila não assentiam com estes desatinos de eros, mas ela sim, que era para além de vacinada já maior, e a crise, a haver, seria a do seu abençoado amador.
4) Tomara que fossem todas as crises como esta, de crença!
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Crónica de Novembro de 2009 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17.
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