segunda-feira, 3 de agosto de 2009

António Souto – Crónica (14)

Décima quarta crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Esta é a da edição de Julho de 2009.
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Vagares
Já se iniciaram as férias. O tempo agora é de vagares, mas só por um tempo, sempre curto no final, sempre mais curto que o próprio Verão. Aproveitamos agora para fazer o que em período de ganha-pão não nos dá jeito, como descansar, por exemplo, e para descansar, muitas vezes, basta fazermos aquilo que nos apetece e nos dá mais gozo, sem pavores de perdermos o transporte, sem as estafas das filas massacrantes, sem o nefando rigor dos horários ou sem os olhares punitivos de quem comanda e ordena.
E ainda vai o ócio no adro e já se acabou a leitura do primeiro livro de desocupação: Os Passos da Cruz (de Nuno Júdice). Conheço o autor, como conheço o ensaísta e o poeta que se encantam nele. Nunca o experimentara na ficção, e a descoberta fez-se com agrado. Nesta novela emaranham-se com mestria tempos e personagens, confunde-se o leitor com um narrador habilidoso, enleia-se uma certa realidade com uma certa ficção: «Com efeito, o meu objectivo naquele momento deixara de ser arranjar gasolina para voltar para a cidade, preferindo explorar a situação em que me encontrava, recolhendo o maior número possível de elementos para o meu livro que, a partir destes factos reais, poderia deixar de ser uma biografia, que dificilmente evitaria o que se costuma designar por ‘biografia romanceada’, para se transformar num relato construído a partir da minha própria experiência.» Em última análise, sublinha-se a complexidade do Ser, a demanda das raízes de um ser múltiplo. Uma leitura recomendável que se articula com uma outra (feita por ocasião da Feira do Livro), igualmente aconselhável: A Divina Miséria (de João de Melo). Também novela, nela se expandem dez capítulos, como «passos» ou «estações» (que há aqui muito de simbologia mística), cujos eixos acentuam, para além da descrença na Igreja solidária e num americanismo globalizante, uma sedutora preocupação com a frágil existência humana, um pessimismo anunciado: «As gerações de agora, as pessoas em si, uma a uma, perderam os sonhos, os segredos, o dia seguinte, o horizonte do olhar. Hoje em dia, ninguém é de ninguém. Não há nada a dar nem a receber. Que é feito do sentimento de gratidão? Onde a arte de ouvir, de escutar o coração desamparado do tempo e das pessoas que nele vivem e morrem? Não se agradece a idade, o saber, a experiência, a vontade, o ser. Ninguém aqui faz nada por ninguém.»
Estive em Avanca, entre Estarreja e Ovar, melhor, estive no Avanca’09, isto é, nos «Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia» que, entre 22 e 26 de Julho, fizeram nesta vila, à semelhança de edições anteriores, a «festa do cinema». Aceitei, pela terceira vez, o honroso convite para participar no júri de uma das competições. No folheto de apresentação, podia ler-se: «80 filmes em exibição»; «12 filmes em estreia mundial»; «48 filmes em estreia nacional»; «71 países inscreveram cerca de 2000 filmes»; «7 workshops internacionais»; «11 individualidades no trabalho»; «12 anos de festival». A isto, poderíamos ainda acrescentar as largas dezenas de participantes nos workshops, os muitos espectadores que assistiram às exibições programadas, os muitos elementos do júri que visionaram os filmes em competição, bem como os muitos voluntários que com entusiasmo diariamente fizeram com que o festival decorresse como previsto. Porém, para um evento com esta dimensão, que envolve parceiros locais e institucionais (empresas, organismos e autarquias locais, Escola Egas Moniz, ICAM, IPJ, Direcção Regional de Cultura) e que, pela qualidade e pela longevidade, adquiriu uma inequívoca projecção internacional, persiste, sobretudo por parte dos meios de comunicação social, um silêncio e um alheamento estranhamente redutores. O Cineclube de Avanca (tal como o seu responsável, António Costa Valente) merecia uma maior e melhor atenção. Para o ano, voltando lá, voltaremos à carga!
Entrei no Titanic, na estação do Rossio, em Lisboa, por entre destroços e memórias, objectos «recuperados com enorme esforço dos escombros da área circundante do naufrágio». Uma viagem iniciada em 10 de Abril de 1912, no Reino Unido, terminaria abruptamente dois dias depois no Atlântico Norte, com o embate deste monstro a vapor num iceberg. Com 2.206 pessoas a bordo (1.314 passageiros e 892 elementos da tripulação), ali faleceram nas águas geladas 1.497 seres humanos, entre ricos e pobres, entre gente de primeira classe e gente anónima de terceira classe. A exposição, embora interessante e capaz de transportar o visitante ao ambiente trágico do sucedido, não parece justificar os 13 euros (por adulto) cobrados à entrada. Nem mesmo para visitantes de primeira classe, com os pés assentes em terra.
De regresso a férias, vamos a férias, com outras impressões e outros vagares.
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2 comentários:

Luís Graça disse...

Caro Souto:
Folgo em saber que ocupaste bem o teu tempo. Nos primórdios dos anos 90 entrevistei o Costa Valente para o fanzine/revista Azul BD Três, num dossier sobre cinema de animação. E logo aí fiquei ciente do bom trabalho de Avanca.

a. souto disse...

É verdade, Luís, o Cineclube trabalha que se desunha, e o Costa Valente, sempre enérgico, lá vai progredindo academicamente: fez o doutoramento, dá aulas na Universidade de Aveiro e acaba de produzir a primeira longa-metragem de animação. Em simultâneo, anima o cinema e a cultura da região. Um amigo desinteressado, em tudo!
Abraço.