quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Uma serpente de luzes na planície

Um dia, se o meu filho se tornar jogador de futebol, poderei oferecer-lhe a fotografia de um dos segundos iniciais da sua carreira. Tirei-a num estádio do Alentejo com relvado sintético e dividido em pequenos campos para que pudesse haver vários jogos ao mesmo tempo. Foi num torneio para miúdos, pequeninos, daqueles que estão mesmo a começar, miúdos de equipas de fama bem diferente – basta pensar nas participações do Benfica e do Alandroal.
Quatro elementos em cada equipa, o guarda-redes, um jogador mais recuado e dois laterais capazes de chegar à baliza adversária; ou outra táctica que se quisesse arranjar. Quando o jogo da equipa do meu filho estava prestes a iniciar-se, subi ao ponto mais alto da bancada e com a objectiva fixei o campo que lhe tinha calhado em sorte. Por isso é que depois fiquei com a fotografia daquele segundo. Nessa fotografia, o guarda-redes, pequenino mas com um jeito enorme para a baliza, mesmo sem o jogo ter começado tenta perceber se algum remate poderá surgir de repente. E à frente dele estão o meu filho e os dois restantes colegas, parecendo que trocam ideias sobre o que hão-de fazer mal comece o jogo. Talvez defender, pois a outra equipa, por ser de uma cidade grande, pode muito bem tê-los colocado em respeito. Talvez falem disso no seguimento de indicações do treinador. A verdade é que não sei, porque nunca fiz a pergunta. No centro, vê-se os jogadores de campo da outra equipa, os três junto à bola, prontos para começar; o guarda-redes é que não aparece na fotografia.
O jogo acabou por ficar em zero a zero, com a equipa do meu filho a jogar mais à defesa e ajudada pelo pequeno guarda-redes, que a cada bola que aparecia por perto se atirava sobre ela para logo a seguir se enrolar como um gato. Lembrei-me dos meus tempos não de miúdo como eles mas de adolescente, quando tinha na baliza alguns dos poucos ídolos que fui arranjando no futebol. A selecção portuguesa alinhava praticamente em todos os jogos com um guarda-redes de baixa estatura chamado Bento, que morreu há uns três anos, mas para mim o melhor era um outro ainda mais baixo que eu ia ver nos jogos do Portimonense. Eu fazia sempre a minha selecção com os jogadores que considerava os melhores, e sem preocupações de posição. Era no princípio dos anos oitenta do século passado. Na defesa João Pinto (o que fazia previsões apenas no fim dos jogos e que chegou a dizer a seguir a marcar um golo com o pé esquerdo, que raramente usava, que tinha chutado com o pé que estava mais à mão), Venâncio, Humberto coelho e Inácio (que em 2000, como treinador, haveria de levar o meu velho clube verde a um inesquecível título de campeão); no meio campo Carlos Manuel, Oliveira e Chalana; e à frente Nené (o que nunca sujava os calções), Gomes e Jordão (que uma vez numa entrevista aproveitou para avisar os adversários de que quando lhe tocavam estando ele dentro da área se atirava logo ao chão). Ou seja, a minha selecção só tinha jogadores do Benfica, do Sporting e do Porto, com excepção da baliza onde eu não punha o Bento, nem sequer o Damas (que não era dos baixos), mas antes o Mendes do Portimonense. Esse mesmo, o guarda-redes que eu via fazer as defesas mais incríveis do campeonato e a quem tomava uma especial atenção na altura do aquecimento para cada jogo, quando era o próprio treinador Manuel José, então ainda bastante novo, a ir-lhe fazer remates durante uns dez minutos.
Foi o guarda-redes pequenino que ajudou a equipa do meu filho, e também o meu filho e mais os dois colegas laterais avançados, foram eles todos que se ajudaram. Mesmo com alguma dificuldade em atacar, lutaram de forma a que os adversários da equipa da cidade grande não conseguissem marcar golos. A chuva também terá ajudado, porque a certa altura do jogo ganhou tais proporções que todo o torneio teve de ser interrompido. Era tão forte que nem os jogadores da cidade grande, com os seus equipamentos impermeáveis, conseguiam jogar, quanto mais a equipa do meu filho, de equipamentos normais.
Mas e que a equipa do meu filho tivesse perdido… Ou que tivesse ganho, ou que o tempo estivesse de sol, ou que do céu em vez de água tivesse caído neve ou granizo… Tanto fazia, porque eu fiquei com a fotografia de um dos segundos iniciais da carreira de futebolista do meu filho, se ele algum dia fizer uma carreira no futebol. Talvez o primeiro segundo. Além de outras fotografias que fui tirando do alto da bancada, e de um pequeno filme que também fiz. Essa fotografia acabou por passar para a minha mente, porque eu já a vi várias vezes. Posso mesmo dizer que a decorei dentro da cabeça. A imagem de um momento em que o primeiro jogo do meu filho está mesmo, mesmo a começar.
Mas há outra imagem que tenho dentro da cabeça, só que não vem de uma fotografia. Não sei como, mas a verdade é que a decorei também, apesar de a ter visto apenas de forma fugaz. Apareceu-me no espelho retrovisor do carro, talvez uma hora antes do jogo. Chuva, muita chuva nessa imagem ainda do começo da tarde, a caminho do torneio. Os miúdos seguiam no autocarro da câmara, e eu logo atrás, de carro, sem ter pensado se outras famílias além da minha iriam ver os seus miúdos no torneio. A certa altura, com a força da chuva a dificultar-me a visibilidade, dei comigo a pensar no autocarro que seguia vinte ou trinta metros à frente. Não dava para ver bem, foi o que pensei, mas se fosse Verão haveria de perceber-se facilmente as cores fortes do Alentejo, azul, amarelo e vermelho, a pintura do autocarro com o céu limpo, o pasto dos campos e as papoilas, e também uma frase tirada com adaptações do final de um romance de José Saramago, a frase logo a seguir ao nome da terra, «cidade levantada e principal».
Lembro-me de ter pensado nisso. E de ter dito para mim próprio: «os miúdos vão para o torneio, agora que estão a começar no futebol, e vão num autocarro com uma frase enorme de um enorme escritor, não vão patrocinados pela Coca-Cola nem pela Nike (muito menos pela cerveja Sagres), nem sequer vão num autocarro que fala de apoio ao desporto e à juventude e mais uma data de coisas; os miúdos vão no autocarro da frase do Saramago». Foi o que eu disse só para mim, creio que com as minhas filhas pequeninas adormecidas, a julgar pelo silêncio dentro do carro. E então veio o momento do qual decorei a imagem, como depois haveria de decorar a do segundo antes de começar o primeiro jogo do meu filho. No meio daqueles pensamentos, de repente questionei-me se devia levar as luzes ligadas ou não, se deveria apagá-las por a chuva estar a diminuir um pouco, e aí espreitei pelo espelho retrovisor para ver se atrás de mim algum carro também tinha as luzes ligadas, se é que vinha algum carro atrás de mim na estrada da planície alentejana, e logo percebi que havia muitos carros, e todos com luzes. As famílias dos outros miúdos… Só então é que reparei, depois de ter feito já algumas dezenas de quilómetros. Em que é que pensariam as pessoas desses carros? Como olhariam para o autocarro dos miúdos que avançava com eles para o torneio?
Comecei a contar os carros. Um, dois, três… Mas logo desisti, porque eram muitos, e eu tinha de concentrar-me na condução. Muitos carros, mesmo muitos. Formava-se uma fila na planície, na estrada que naquela altura fazia uma curva longa, uma fila de luzes passada para o meu espelho retrovisor, e foi essa imagem que eu decorei, como depois fiz com a da fotografia. A imagem de uma serpente de luzes na planície, pela estrada fora, atrás do autocarro da cidade levantada e principal.
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2 comentários:

Anónimo disse...

gostei de ler tudo é importante, parabens...
ermelinda-melo
guimarães

Manuel Ramalhete disse...

António:

Mais uma belíssima crónica. Parabéns!
Que bom seria poder dizer "País levantado e principal". Já não tanto por mim, mas pelos meus filhos e principalmente pelos meus netos e pelos netos de toda a gente!

Um abraço!