sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

António Souto – Crónica (31)

… as chancas gastas e as botas encardidas a secar ao borralho para umas horas mais tarde acolherem os pés ligeiros e as poucas prendas que o menino Jesus acabaria por deixar na sua azáfama de estafeta noctívolo. Camisolinhas de aconchego, dois ou três pares de meias, uns lencinhos às riscas, tudo da loja próxima ou da feira dos vinte e seis. Quase não há lembrança de brinquedos, talvez uma camioneta de chapa muito colorida ou um pífaro de pistões a fingir.
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Um natal que já não é
Este é o último mês do ano. E porque mantemos inalterada a regularidade, esta é a última folha do calendário. De Janeiro a Dezembro, um saltinho de anão, que o tempo não dá tréguas e o que agora é… já foi!
Seria caso para, uma vez mais cumprindo a rotina, fazer balanços, mas não nos apetece, até porque de pouco ou nada servem quando os objectivos são precários ou inexistentes. E depois, sendo os natais o que sempre são, o melhor é pôr de lado os aborrecimentos da computação e cuidar de guardar uns trocos para um bolo-rei, para um qualquer, do mais tradicionalzinho ao gurmê, ao tropical, ao salgado, ao de chocolate ou ao escangalhado, mas um bolo-rei que se traga para a mesa, se possível redondo, para tragar com a natividade dentro.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, quando era mesmo natal, com uma aldeia a sério, e no ventre dela muitas casas escuras e desalinhadas e todas com fumo nas chaminés entupidas de fuligem.
Aquilo é que era lindo, as rachas a arder ao declinar da tarde, com a casca a estoirar quando os toros ainda verdes, e a lenha ali toda à mão para a noite inteira, e o calor que o brasido dava à casa e aos corpos.
A gente ali à espera contando os serões de Dezembro, e quando chegava a véspera do grande dia era uma festa de gestos e de desejos, um remoinho de comeres distintos, mesmo quando iguais, mas provados com o vagar que faltara antes e que faltaria depois, que a lida não se compadecia com delongas e o gado tinha que se alimentar. (E como doía ir para o campo à frente das vacas pelos caminhos de água ou cortar a erva diária nas manhãs de geada, as mãos e os dedos entorpecidos…) E como o jantar se alinhava então com as iguarias de memória… eles eram os bilharacos e as filhoses e as rabanadas e a aletria e às vezes o arroz-doce e também os biscoitos sortidos da Triunfo trazidos por um primo da cidade e as broinhas de mel e os bombons trazidos por parentes da capital!
A gente toda sentada à mesa, naquele dia mais comprida que o habitual, a luz do tecto tremeluzente (com um candeeiro de petróleo de prevenção), um desforrar de estômagos e de conversas vagas. Uma noitada que nos esquecia sempre a missa do galo, que era sempre muito cedo para quem se amesendava sempre tarde, e as castanhas (assadas sob a caruma afogueada) e o bolo-rei faziam pesar demasiado os físicos já cansados e a pedir deita.
Aquilo é que era lindo, as chancas gastas e as botas encardidas a secar ao borralho para umas horas mais tarde acolherem os pés ligeiros e as poucas prendas que o menino Jesus acabaria por deixar na sua azáfama de estafeta noctívolo. Camisolinhas de aconchego, dois ou três pares de meias, uns lencinhos às riscas, tudo da loja próxima ou da feira dos vinte e seis. Quase não há lembrança de brinquedos, talvez uma camioneta de chapa muito colorida ou um pífaro de pistões a fingir. Mas havia também um chocolatinho cobiçado com uma prata muito bonita que a gente esticava cautelosamente e metia no meio de um livro para se alisar com o tempo. Ah, falta ainda acrescentar que naquele dia em que o menino vinha ao mundo, a gente se vestia com roupa nova, que ficava durante muito tempo nova e muito tempo limpa.
Bem sei que o natal não é já o que dantes era, muito mais natal. Mas esta nossa idade, agora de abastança e crise, continua a acreditar num menino que cresceu e se transformou em pai, sobretudo num pai natal aleivoso e mortinho por que acreditem nele. Afinal, em que pode a gente mais acreditar? Voltemos a página!
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Crónica de Dezembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30.
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1 comentário:

Anónimo disse...

antonio, gotei muito de facto reflecte bem o Natal da nossa meninice...
a fantasia da chegada do Menino Jesus era grande, nesse tempo ainda não havia a moda do Pai-Natal,para felicidade de todos. Nem o consumo destes anos. de facto a feira dos 26, era a grande fonte de comercio da terra onde se sabiam as novidades e se podiam comprar as pequeninas prendas.
Gostei e partilho contigo todos estes sentimentos...
bom Natal
Ermelinda Melo