… à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
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Os muros da escola
Todos os anos lectivos têm um início e um fim, como os anos civis, embora não coincidentes com estes.
O ano lectivo no secundário inaugura-se, para os caloiros, um dia antes das aulas a sério. Ocasião para conhecer os novos colegas, os novos espaços e as novas regras.
O grande encontro faz-se às dez, no Auditório, para ouvirem todos palavras de recepção e de acolhimento. Antes disso, porém, já muitos deles tinham recebido o baptismo de chegada a este ciclo de ensino: bastou transporem os portões da escola, e logo os mais velhos os acoitaram com esguichos de água, farinha de trigo e ovos, e muitos grafitos pelas partes desnudadas.
Às dez e meia, os directores de turma dirigem-se para uma sala pré-determinada. Os alunos seguem também cada um para a sua. Alguns, circunspectos, perguntam onde fica, outros, mais afoitos, aventuram-se com um plano nas mãos. Depois, lá dentro, a turma vai-se formando aos poucos num amontoado de seres atarantados entre o curioso e o displicente. São agora jovens, todos iguais e todos diferentes.
Professores e alunos apresentam-se. Já ninguém desconhece a história, sempre a mesma, só não se conhecem uns aos outros, mas não tardará. Um pouco de conversa e o ambiente de retraimento inicial começa a descontrair-se e a dissipar-se.
Um professor comunica umas quantas informações. Transmite algumas normas de comportamento e de civilidade. Distribui os cartões de estudante. Deseja um bom ano e uma boa empatia.
Antes disso, no entanto, e volvidos parcos minutos, já a primeira criatura se revelara. Enfastia-se, como se em cativeiro. Olha para o relógio e não esconde a inquietude. Assim uma espécie de vontade fisiológica contida. Não, esclarece, nada que a casa de banho mais próxima resolva. Não, o problema era a pressa. Tinha pressa de se ir embora. O professor pede-lhe um pouco de paciência, que faltava fazer ainda, e só, uma aligeirada visita pela escola, só para no dia seguinte se orientarem sem perdas de tempo. Não, tinha mesmo pressa, e a impaciência principia a molestar. Pois então que fosse (os seus colegas viram, ouviram e sentiram o nervosismo no ar). E foi, decidido a ir e a só voltar no dia seguinte. A visita pelos pátios cumpre-se, agora com um aluno a menos que ninguém nota. Pelos vistos, houve quem quisesse marcar o desapego e a insolência de véspera, e deste modo dizer ao que vinha.
O professor sabe disso.
No dia seguinte, como determina o calendário escolar, arrancam as aulas a sério. No dia seguinte, como repetidamente acontece, haverá sempre um parvalhão a mais a marcar presença e a marcar o passo.
O professor sabe disso. O professor sabe que o dia seguinte será sempre um novo dia, com ou sem Estatuto, velho ou novo. O professor também sabe que nem todos os alunos são obtusos e grosseiros.
Por isso é que o professor é convidado duas vezes por ano para jantar com ex-alunos de há quatro anos, jovens crescidos e quase formados. Por isso é que o professor foi jantar hoje com ex-alunos que deixaram este ano a escola e que pela primeira vez experimentam a universidade, jovens crescidos que aprenderam de crianças que a estultícia não dá frutos.
Hoje, à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
Todos os anos lectivos têm um início.
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Crónica de Setembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27.
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Os muros da escola
Todos os anos lectivos têm um início e um fim, como os anos civis, embora não coincidentes com estes.
O ano lectivo no secundário inaugura-se, para os caloiros, um dia antes das aulas a sério. Ocasião para conhecer os novos colegas, os novos espaços e as novas regras.
O grande encontro faz-se às dez, no Auditório, para ouvirem todos palavras de recepção e de acolhimento. Antes disso, porém, já muitos deles tinham recebido o baptismo de chegada a este ciclo de ensino: bastou transporem os portões da escola, e logo os mais velhos os acoitaram com esguichos de água, farinha de trigo e ovos, e muitos grafitos pelas partes desnudadas.
Às dez e meia, os directores de turma dirigem-se para uma sala pré-determinada. Os alunos seguem também cada um para a sua. Alguns, circunspectos, perguntam onde fica, outros, mais afoitos, aventuram-se com um plano nas mãos. Depois, lá dentro, a turma vai-se formando aos poucos num amontoado de seres atarantados entre o curioso e o displicente. São agora jovens, todos iguais e todos diferentes.
Professores e alunos apresentam-se. Já ninguém desconhece a história, sempre a mesma, só não se conhecem uns aos outros, mas não tardará. Um pouco de conversa e o ambiente de retraimento inicial começa a descontrair-se e a dissipar-se.
Um professor comunica umas quantas informações. Transmite algumas normas de comportamento e de civilidade. Distribui os cartões de estudante. Deseja um bom ano e uma boa empatia.
Antes disso, no entanto, e volvidos parcos minutos, já a primeira criatura se revelara. Enfastia-se, como se em cativeiro. Olha para o relógio e não esconde a inquietude. Assim uma espécie de vontade fisiológica contida. Não, esclarece, nada que a casa de banho mais próxima resolva. Não, o problema era a pressa. Tinha pressa de se ir embora. O professor pede-lhe um pouco de paciência, que faltava fazer ainda, e só, uma aligeirada visita pela escola, só para no dia seguinte se orientarem sem perdas de tempo. Não, tinha mesmo pressa, e a impaciência principia a molestar. Pois então que fosse (os seus colegas viram, ouviram e sentiram o nervosismo no ar). E foi, decidido a ir e a só voltar no dia seguinte. A visita pelos pátios cumpre-se, agora com um aluno a menos que ninguém nota. Pelos vistos, houve quem quisesse marcar o desapego e a insolência de véspera, e deste modo dizer ao que vinha.
O professor sabe disso.
No dia seguinte, como determina o calendário escolar, arrancam as aulas a sério. No dia seguinte, como repetidamente acontece, haverá sempre um parvalhão a mais a marcar presença e a marcar o passo.
O professor sabe disso. O professor sabe que o dia seguinte será sempre um novo dia, com ou sem Estatuto, velho ou novo. O professor também sabe que nem todos os alunos são obtusos e grosseiros.
Por isso é que o professor é convidado duas vezes por ano para jantar com ex-alunos de há quatro anos, jovens crescidos e quase formados. Por isso é que o professor foi jantar hoje com ex-alunos que deixaram este ano a escola e que pela primeira vez experimentam a universidade, jovens crescidos que aprenderam de crianças que a estultícia não dá frutos.
Hoje, à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.
Todos os anos lectivos têm um início.
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Crónica de Setembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27.
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2 comentários:
“… à mesa, num encontro breve, a amizade voltou a saltar os muros da escola, contrariando quem nela teima em ver apenas números em lugar de pessoas.”
Não poderia deixar de agradecer o facto de nunca ter visto “ apenas números em lugar de pessoas”
Obrigado por sempre nos ter acompanhado, compreendido e sobretudo apoiado.
Parabéns pelo trabalho e pela dedicação.
Da sua (ex) aluna
Rita Júlio
Obrigado, Rita, pela atenção e pela gratidão.
Infelizmente, nem sempre a escola cuida do "ser" (preocupada que anda com o "estar"); infelizmente, nem sempre o tempo nos é suficiente para os afectos!
Por mim, e consciente dos defeitos, faço o meu possível (que, sei, será sempre pouco).
Beijo e felicidades para o novo futuro!
(E vai dando novas!)
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