quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
António Souto – Crónica (54)
... teimosamente o natal é sempre quando é dezembro e a chuva
e o frio nos lembram que a primavera ainda vem longe. Pior, o natal, como o
inverno da nossa meninice, entra-nos já pelos poros adentro logo nos primeiros
dias de novembro, sem pedir licença nem agasalho, acenando de costas voltadas
às andorinhas que abalam. Tudo em minúscula, tudo minúsculo…
Um natal de cansaço
Começo a ficar cansado de ouvir e ver tanto natal quando
chega a quadra natalícia, como se não houvesse mais nada para ver e ouvir. Se
ao menos o natal pudesse ser realmente quando o homem quisesse, a gente
inventava um quando nos apetecesse ou, então, o que era ainda mais fácil, a
gente riscava-o quando chegassem os primeiros bolos-reis apócrifos e as iluminações
de rua nos distraíssem da severidade da vida. Mas não, teimosamente o natal é
sempre quando é dezembro e a chuva e o frio nos lembram que a primavera ainda
vem longe. Pior, o natal, como o inverno da nossa meninice, entra-nos já pelos
poros adentro logo nos primeiros dias de novembro, sem pedir licença nem
agasalho, acenando de costas voltadas às andorinhas que abalam. Tudo em
minúscula, tudo minúsculo…
É verdade que este ano parece haver menos natal, está tudo
um bocadinho apagado, pelo menos aqui pelos meus lados, que não vejo luzes nas
avenidas nem nas praças, nem ainda nas janelas, só um ou outro pai-natal,
insignificante e esganado, numa ou noutra fachada dos prédios vizinhos, mas
mesmo assim tenho a certeza de que, mais dia, menos dia, o natal chegará a
valer, pela capital já cheira a ele, e, se não anda já à solta pelas artérias
do burgo, andará por certo em reboliço pelos centros comerciais todos que
existem num raio de vinte ou trinta quilómetros, e de sexta à noite a domingo à
tarde, não haverá lugar nos estacionamentos nem nos elevadores nem nas escadas
rolantes nem nos corredores labirínticos sobrepostos nem nas salas de cinema
nem em certas lojas que vendem roupa a preço fingido de saldo ou bugigangas de
iludir e de esvaziar a bolsa. E a ninguém causará perplexidade saber que há
quem se atole em natal quando o tempo é de lusco-fusco e o desalento se
entranha mais que o frio.
Por isso me cansa ouvir e ver tanto natal, e me cansa ainda
mais quando chove em vésperas de nevar e as palavras se tornam insuficientes
para tanto branco.
«Chove. É dia de Natal./ Lá para o Norte é melhor:/ Há a
neve que faz mal,/ E o frio que ainda é pior.// E toda a gente é contente/
Porque é dia de o ficar./ Chove no Natal presente./ Antes isso que nevar.//
Pois apesar de ser esse/ O Natal da convenção,/ Quando o corpo me arrefece/
Tenho frio e Natal não.// Deixo sentir a quem quadra/ E o Natal a quem o fez,/
Pois se escrevo ainda outra quadra/ Fico gelado dos pés.» (Fernando Pessoa)
Quando penso nisto, e muito embora não podendo a gente ter
um natal à nossa medida, vergo-me e reconheço que, de facto, pouco mais há para
ver e para ouvir do que o natal que nos vaticinaram, um mês inteiro só de
natal, um dezembro de natal todo minúsculo e amassado em azedume, e dentro dele
um brinde para nos decorar o presépio que deixaremos a um canto da sala, em
abandono, por largos anos, até que se dissipe o sonho que tivemos, um dia, em
crianças.
Cansaço apenas.
Crónica de Novembro
de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores:
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,
11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36;
35; 37;
38;
39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52; 53.
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Não vale a pena exagerar
Estamos mal no Sporting. Muito mal. Godinho Lopes é uma desgraça de um nível em que mesmo quem o julgava pouco indicado para o cargo de presidente do clube dificilmente poderia acreditar há cerca de um ano. Como eu. Mas também não vale a pena exagerar. Em rodapé, passa na TVI24 que o Sporting está a ter «o pior arranque de sempre da história». Não é, obviamente. É o pior arranque de sempre. E é o pior arranque da história. Pode-se dizer uma coisa ou outra, mas não as duas ao mesmo tempo. Só se for por causa do acordo ortográfico, que dá para tudo e privilegia a asneira. O presidente é mau. E também se pode dizer que é péssimo. Porque é verdade. Mas não é um mau/ péssimo. Ou é mau ou é péssimo – embora o péssimo, de certa forma, aplicando um raciocínio matemático, englobe o mau. Já o mau não pode englobar o péssimo. Não chega a tanto. Godinho Lopes é péssimo. Acho que isso basta. Mau/ péssimo talvez só se aplique ao caso extremo de José Eduardo Bettencourt. Que é – ou foi, felizmente –, que foi, dizia, um caso especial. Esse foi tudo. De sempre, da história, mau, péssimo, o que se queira. Godinho Lopes, agora, já se vê, persegue-o. Infelizmente, acredito que consiga apanhá-lo.
Nota: na foto, tomada de posse de Godinho Lopes como presidente do Sporting.
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sexta-feira, 9 de novembro de 2012
A maneira de escrever
«Os meus amigos do sportem (sim, tenho vários) devem estar como eu com o PSD. É morder a bala e deixar passar. De família não se muda...» Isto escreve o advogado e antigo deputado do PSD José Eduardo Martins no «Facebook». Não consigo perceber como pode escrever o nome do Sporting de forma adulterada e ao mesmo tempo escrever PSD de forma correcta. Ainda por cima quando o PSD é que está adulterado, como o país infelizmente tem comprovado, enquanto o Sporting se mantém na sua essência como um grande clube, apenas com maus resultados na equipa principal de futebol, situação que certamente irá mudar mais cedo ou mais tarde.
terça-feira, 6 de novembro de 2012
sábado, 3 de novembro de 2012
Senhor presidente
O
presidente da Comissão Europeia no mais recente livro de José Rodrigues
Miguéis, perdão, de José Rodrigues dos Santos:
«…atirou
um olhar lúbrico para a cama. A loura vaporosa gemia baixinho com as dores.
Como habitualmente, aquilo excitou-o. Deixou o roupão cair na alcatifa, foi
buscar o chicote e, nu e erecto de desejo, abeirou-se da cama.
‘Anda, minha cabra’, rosnou,
desenrolando o chicote. ‘Prepara-te para o segundo assalto.’»
Nervos, muitos nervos
Uma conferência em Lisboa. Eu tinha de falar logo a seguir à abertura, tanto que saí de casa bem cedo, para não me atrasar no trânsito num dos acessos à cidade. Passava pouco das seis e meia da manhã, mas com a mudança de hora já havia alguma luz no montado. Talvez por isso, ao sair de casa, os cães e os gatos tenham percebido que a minha roupa – um fato escuro, uma camisa branca e uma gravata azul – era diferente da habitual. Ficaram a uma certa distância, indecisos, sem saberem se brindar-me com as brincadeiras do costume ou se com um ataque rápido em que eu não tivesse outra hipótese a não ser fugir o mais depressa que conseguisse. Decididamente, não tinham a certeza de quem eu era, vestido daquela forma.
Olhei para o relógio e senti a pressão do tempo. Por isso fiz um gesto de despedida, sem dizer nada, não fosse a minha voz ser capaz de entrar em casa e acordar os miúdos. Fui até ao portão, saí com cuidado para que não batesse e meti-me no carro. Depois da estrada de terra, que me demorou uns dez minutos a percorrer, conduzi depressa até Lisboa, e a verdade é que não me atrasei. Só que cheguei à conferência numa pilha de nervos. Tive até de parar um pouco na entrada do edifício onde ia decorrer – respirei fundo, durante dois ou três segundos, e só depois é que subi a escadaria que levava ao auditório. Havia uma pessoa a indicar o caminho, e até me perguntou se eu me sentia bem. Disse-lhe que sim, agradeci o cuidado e continuei.
Tinham-me avisado de que o auditório estaria cheio, e além disso eu sabia da presença dos presidentes das associações nacionais que integravam a confederação que promovia a conferência. Estavam representados seis países, todos de língua portuguesa. Vi logo as bandeiras mal entrei no auditório, ainda vazio. Faltava uns quinze minutos para começar o registo de participantes e por isso o movimento era pouco. Dava para preparar as minhas coisas à vontade. Ou seja, tinha valido a pena o esforço de sair de casa bem cedo. À noite – pensei –, ia voltar sem gravata e com o casaco debaixo do braço; de certeza que assim não haveria problema com os cães e os gatos. Por agora, o importante era afastar o nervosismo que ainda subsistia.
Admito que se pense que eu estava naquele estado por causa de ir falar na conferência. Mas não, não era nada disso. Eu estava assim por causa do sítio, que ficava pertíssimo da sede de um dos partidos da coligação que apoia o governo. Lembro-me de que só ao estacionar o carro reparei na sede, mesmo à minha frente. Só aí é que comecei a pensar na roupa que levava. Assim vestido, receei, havia o risco de ao sair do carro despertar a atenção de alguma das pessoas que passavam, ou de alguém que aparecesse à janela. Podiam confundir-me com um político da coligação, na volta até com algum secretário de Estado metido no governo pelo partido que ali tinha a sede.
Saí do carro com muito cuidado, a olhar para um lado e para outro. Podia ser atingido por alguma pedra, ou pior, por um ovo podre ou por um tomate bem maduro. Uma pedra, se conseguisse evitar que me acertasse na cabeça, era o menos, pois numa perna ou num braço poderia fazer no máximo uma nódoa negra. Mas o ovo ou o tomate haveriam de levar-me a desistir de aparecer na conferência. Ia dizer o quê? Peço desculpa, atiraram-me um ovo (ou um tomate, conforme o caso) depois de me terem confundido com um secretário de Estado, e pronto, deu nisto...
Fiz o caminho entre a zona da sede do partido e a entrada do edifício da conferência sem saber bem onde me enfiar. Não era a minha cara... Isso podia eu esconder olhando para baixo ou passando uma mão pelos olhos a fingir que tentava afastar o sono. Era a roupa. Eu só pensava na roupa. E daí os nervos. Cada metro até chegar ao edifício pareceu um quilómetro. Mas finalmente cheguei, e sem ser atingido. Na volta, algum milagre…
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
António Souto – Crónica (53)
Refundam-se, portanto, todos os
programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os
relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias
e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida.
No refundar está a virtude
Os
portugueses têm experimentado, nos últimos meses, o pior de uma receita de
austeridade, um tratamento que, a avaliar pelos resultados, tem piorado a
doença e agravado o estado dos enfermos. Estamos doentes, estamos mal e
tendemos a estiolar.
A
solução está, por enquanto, em peregrinar. Da Praça de Espanha a Fátima,
passando pela Assembleia da República, que é onde mora a nação inteira,
marcha-se por causas, devoções e muita, muita fé. Protestos e luta com
intervenção musical e, à mistura, o soar de vozes e motes de Abril.
De
um enorme aumento de impostos, havido, passa-se para um aumento significativo
de impostos a haver. Maturidade, seriedade e competência saem como arrotos da
boca da governação. Culpa-se o estado social de viver acima das suas
possibilidades, constata-se inauditamente que os impostos dos contribuintes
estão abaixo do requerido, conclui-se por um ajustamento imprescindível dos
pratos da balança.
Bem
doutrinam entendidos de diferentes quadrantes para o perigo do desaire, bem
apostolam os ex-presidentes da república que da resignação à indignação vai um
curto passinho, ou que é chegada a hora de acabar com esta governança, ou que a
democracia pode rebentar, que nada, nada mesmo parece demover a brigada de
iluminados das suas convicções altruístas que a todo o custo teimam em levar à
letra, de forma desirmanada, os versos de Camões – «Não tornes por detrás, pois
é fraqueza/ Desistir-se da cousa começada». Só que a coisa começou torta, tem
crescido retorcida e exibe-se derreada.
E
assim, paulatinamente, regressamos da pior maneira às profundezas da nossa
civilização, como ao inferno, que é onde ardem já os gregos, como em ruínas. E
quando o impasse surge, nítido e incontestável, inventam-se eufemismos de rara
espécie e clama-se por «uma espécie de refundação». Ah, malditas palavras, que
tanto são uma coisa como são outra, que tanto são como não são… Se ao menos
isto fosse uma espécie de magazine para desenfado, mas não, isto é demasiado
sério para poder sequer ser entendido como rasgo de humor negro. E o presidente
que é, ninguém o sabe, embora ande por aí, facebookando, deixando que outros se
alvorocem e dêem sentido aos vazios.
«– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!/ Ó fraudulento gosto, que se atiça/ C'uma aura
popular, que honra se chama!/ Que castigo tamanho e que justiça/ Fazes no peito
vão que muito te ama!/ Que mortes, que perigos, que tormentas,/ Que crueldades
neles experimentas!» Outra vez Camões, mas daquele que poucos lêem. Porque se
todos o tivessem lido, e com ele aprendido os vícios acusados, não estaríamos
no estorvo em que estamos e sem porto à vista. Mas não, para muitos, nem no
tempo certo nem noutro qualquer se colheram ou colherão os ensinamentos
fundadores do ser-se. Do ser cidadão. Para muitos, definitivamente, nem com
programa de ajustamento em novas oportunidades.
Refundam-se, portanto, todos os
programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os
relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias
e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida.
Refunde-se tudo, porque
é na refundação que está doravante a virtude!
domingo, 28 de outubro de 2012
sábado, 27 de outubro de 2012
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
Uma época diferente para os pequenitos
Está a começar mais uma época de futebol para os pequenitos. É uma época diferente em relação às anteriores, pois pela primeira vez faz-se sentir verdadeiramente a crise. Há clubes que já não conseguem participar com a mesma pujança com que o faziam antes (aparecem com uma equipa por escalão em vez de duas ou até três), e outros que simplesmente desistiram. Há miúdos que já não foram inscritos pelos pais. Já não se pode contar com o tradicional lanche que era distribuído no final, nem mesmo com os autocarros para o transporte. E até nos pequenos campos que são instalados em cada estádio para os torneios se nota faltas no material (uma baliza que fica sem rede, as fitas das marcações a não surgirem com a mesma fartura de antes e por aí adiante). Este pequeno mundo do futebol em que os miúdos se julgam Messis e Ronaldos também está a fazer, se bem que à força e sem períodos de adaptação, o seu ajustamento. Mas eles marcam golos na mesma, muitos, como sempre têm feito. Ontem, os que acompanho, marcaram 19 em quatro jogos (um deles na imagem) – e também sofreram alguns, o que é bom, para não ficarem a pensar que são os maiores.
Observo estas mudanças, como tantas outras na sociedade portuguesa, e não consigo deixar de pensar, entre outras coisas, nas filas de carros para os conselhos (de Estado e de ministros), filas compridas e topo de gama, como antes, como provavelmente para sempre. Circulam depressa, não vá alguém fazer mais do que gritar «Gatunos!», e por isso nem dá para perceber algum ajustamento – uma jante de liga menos leve, uns estofos mais espartanos, um motorista mais pequeno, sei lá, uma coisa qualquer que mostre que ali, naquele mundo tão distante do nosso mundo comum, as coisas também são ajustadas.
Um grupo predador
Fecho de mais uma edição da revista, como sempre pela noite fora. Revejo um artigo do colaborador de Espanha, que fala de dois povos cegos, o dele e o nosso. Escolho um destaque: «A classe política converteu-se num grupo predador que, sem gerar riqueza, subtrai rendimentos da maioria do povo em benefício próprio e dos seus feudos.»
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
Manuel António Pina (1943-2012)
Porque é de noite
e estamos ambos sós,
leitura e escritura,
criador e criatura,
na mesma inumerável voz.
Manuel António Pina («Os Livros»)
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
A sabedoria do Corvo
Desempenhei dois cargos políticos em representação do PSD,
por isso me choca tanto a situação actual. Com José Sócrates, em que mesmo no
tempo em que havia quem lhe chamasse «menino de ouro» dava para perceber que a
coisa não ia acabar bem, era diferente. Eu via os desmandos, criticava-os, mas
sabia que nunca ninguém me haveria de confrontar com o que ia acontecendo.
Agora não, por mais que critique a loucura que nos vai sendo preparada dia após
dia não me livro, de vez em quando, de ouvir coisas do género de o partido em
cujas listas já participei estar a dar cabo do país. Por mais que o outro tenha
dado, e muito, ainda ficou por cá alguma coisa para Pedro Passos Coelho mostrar
serviço. E como tem mostrado...
Claro que eu ainda fui a tempo de não votar em Pedro Passos
Coelho. A princípio, antes da sua chegada à liderança do PSD, ainda tinha
alguma expectativa, mas depois comecei a ouvir um ou outro disparate e fui
desconfiando. Quase em cima das eleições para o partido fui entrevistá-lo – uma
conversa muito simpática, devo assinalar –, mas eu saí de lá (dos escritórios
da empresa onde ele estava na altura) espantado, ou talvez deva dizer
assustado. Ainda comentei algumas das respostas com uma jornalista que me
acompanhou, mas ela limitou-se a perguntar do que é que eu estava à espera.
Não votei, como disse, mas estava longe de esperar esta
calamidade. De qualquer maneira, logo após as eleições comecei a perceber
aquilo com que poderíamos vir a confrontar-nos. A quebra da palavra chocou-me
verdadeiramente. Já estava habituado a isso com muitos políticos, mas com Pedro
Passos Coelho ultrapassou-se tudo o que era conhecido em Portugal. Diga ele o
que disser, depois do histórico como primeiro-ministro, sei que a sua palavra
não vale absolutamente nada.
Por isso não vejo agora grandes hipóteses a não ser um
governo de iniciativa presidencial – embora essa opção não esteja isenta de
problemas. É dramático constatar a situação a que chegámos e ter como
alternativa o partido que mais contribuiu para levar o país à bancarrota, e
pior, saber que um dos ministros – nem que fosse da pasta dos automóveis de
alta cilindrada – seria Carlos Zorrinho, o velho comprador da bomba de Pedro
Mota Soares e agora reincidente nas compras.
Independentemente do que venha a acontecer – governo de
iniciativa presidencial, eleições ou a continuidade da loucura actual –, o PSD
tem de começar a pensar em livrar-se mesmo de Pedro Passos Coelho. Nem é só a
questão de ganhar ou não eleições (e as dos Açores já mostraram muito), é antes
de tudo não permitir que o país seja arrastado para um poço já não digo sem
fundo mas com um fundo, passe o pleonasmo, muito mas mesmo muito fundo; e por
um governo que em grande parte o representa. Quanto a eleições, para o PSD, o
melhor será pensar a médio ou mesmo a longo prazo, porque as próximas é para
perder, e por muitos.
Acho que se numa eleição nacional o PSD, depois de tudo o
que um governo em grande parte seu tem feito ao país, tiver mais de dez por
cento dos votos, será caso para dizer que se caiu na loucura total. Mas se
calhar até se aproximará dos vinte e cinco ou trinta, e para isso eu nem
quererei pensar em explicações (sei que nunca as encontrarei). Falo em dez por
cento para não falar em menos, ou até para não falar inclusive em zero, porque
a sabedoria do Corvo, onde agora nas eleições açorianas ninguém votou neste
PSD, dificilmente chegará ao país.
Uma nota: no Corvo o PSD fez um acordo com o PPM tendo em vista a eleição de um deputado monárquico em vez de dois socialistas; não deixa no entanto de ser simbólica a imagem de zero votos.
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Ficcionar o tempo que vivemos
De um jornal («Negócios»), perguntaram-me como ficcionaria, de forma breve, o momento que estamos a viver. Coloco abaixo a explicação que dei (trabalho do jornalista Filipe Pacheco, aqui).
Este é um tempo de grandes dificuldades, mas é mais do que isso: é um tempo que está cheio de gente perigosa. As dificuldades poderiam servir, aqui, na ficção, para vários registos, e não me espantaria que alguns autores escrevessem sobre elas, ou tendo-as como pano de fundo das suas histórias. Isso, aliás, num ou noutro caso, já tem vindo a acontecer, inclusive com nomes consagrados. Se fosse ficcionar este tempo, talvez eu optasse pela parte da gente perigosa. Mais do que pela das dificuldades, que essa estranha gente ainda por cima se afadiga a fazer crescer. Provavelmente optaria por um romance policial, com bandidos do género dos que aparecem nos romances de Robert Wilson, maldosos, nalguns casos particularmente cruéis, para quem as outras pessoas não valem absolutamente nada. Lembro-me de um bandido, da zona de Sevilha, cuja arma preferida era uma motosserra, curiosamente a mesma que aparece numa imagem de bandidos que circula na Internet com a cara de membros do governo; um deles tem uma motosserra, já os outros aparecem com armas diferentes, uma matraca, uma catana, um martelo, uma navalha, uma pistola e por aí adiante. Noutra altura talvez uma imagem assim me chocasse um pouco, mas agora, com o que nos tem aparecido por cá, nem por isso. Os bandidos daquela imagem parecem-me reais, verdadeiramente mal-intencionados, uns com ar ameaçador, outros com uns sorrisinhos de plástico, outros ainda não se percebe bem com que ar, mas de certeza que não estão a magicar nada de bom.
Este é um tempo de grandes dificuldades, mas é mais do que isso: é um tempo que está cheio de gente perigosa. As dificuldades poderiam servir, aqui, na ficção, para vários registos, e não me espantaria que alguns autores escrevessem sobre elas, ou tendo-as como pano de fundo das suas histórias. Isso, aliás, num ou noutro caso, já tem vindo a acontecer, inclusive com nomes consagrados. Se fosse ficcionar este tempo, talvez eu optasse pela parte da gente perigosa. Mais do que pela das dificuldades, que essa estranha gente ainda por cima se afadiga a fazer crescer. Provavelmente optaria por um romance policial, com bandidos do género dos que aparecem nos romances de Robert Wilson, maldosos, nalguns casos particularmente cruéis, para quem as outras pessoas não valem absolutamente nada. Lembro-me de um bandido, da zona de Sevilha, cuja arma preferida era uma motosserra, curiosamente a mesma que aparece numa imagem de bandidos que circula na Internet com a cara de membros do governo; um deles tem uma motosserra, já os outros aparecem com armas diferentes, uma matraca, uma catana, um martelo, uma navalha, uma pistola e por aí adiante. Noutra altura talvez uma imagem assim me chocasse um pouco, mas agora, com o que nos tem aparecido por cá, nem por isso. Os bandidos daquela imagem parecem-me reais, verdadeiramente mal-intencionados, uns com ar ameaçador, outros com uns sorrisinhos de plástico, outros ainda não se percebe bem com que ar, mas de certeza que não estão a magicar nada de bom.
Eu teria no entanto de tomar em conta, ao ficcionar este tempo, um aspecto que tem sido importante na minha escrita. Grande parte das histórias passam-se no campo, e algumas delas têm mais animais do que gente. Há um livro, por exemplo, em que entram animais, quase todos inofensivos: um lagarto, uma borboleta, um ouriço-cacheiro, um texugo ou uma gineta (gato bravo), por exemplo. São esses e outros animais os protagonistas, a par de um menino de seis ou sete anos. Se estivesse escrever o livro agora, não sei se não me sentiria tentado a colocar um ou outro animal mais perigoso. Uma víbora, sobretudo uma da uma espécie a que chamam cornuda, particularmente letal. Ou um escorpião, animal que nos meus tempos de criança, no Algarve, me habituei a ouvir ser chamado de alclara. As víboras cornudas e o veneno das suas dentadas, e as alclaras das picadas capazes de causar uma dor de vinte e quatro horas – dois autênticos perigos.
Quando estou por Lisboa uso sapatos, mas quando fico a trabalhar por casa costumo andar de chinelos, os mesmos que uso pelos campos aqui das redondezas. Às vezes penso no perigo das víboras e das alclaras – penso sobretudo no das víboras. Talvez devesse usar chinelos em Lisboa e sapatos aqui pelos campos. Mas não, faço ao contrário. Há aqui um muro imenso, muito antigo, que aos pouco tenho vindo a libertar das silvas; e a arranjar, porque muitas das pedras foram caindo. Deve ter mais de cem anos, como muitas das árvores que rodeia. As silvas rasgam-me a pele, mesmo que use umas luvas e troque a T-shirt por uma camisa de manga comprida. Por isso regresso inevitavelmente do muro como se tivesse estado a participar numa luta de gatos. Mas isso não é o pior, não passa dos arranhões nos braços, nas mãos e às vezes no rosto. O pior é que debaixo de uma pedra pode de repente aparecer uma víbora, quem sabe se das cornudas. Ou uma alclara, que agora ouço sempre tratar por escorpião. Enfim, antes um escorpião do que uma víbora… De certeza que por este trabalho no muro um dia hei-de ter uma víbora cornuda nas minhas histórias. Mas nem seria preciso esse trabalho. O tempo que viemos também me faz pensar nas víboras. Até na cidade.
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
António Souto – Crónica (52)
… a quinze, foi a festa de portas abertas na Gulbenkian com «Pedro e o Lobo», de Sergei Prokofiev, no Grande Auditório (do outro Pedro, uivado em coro às portas de Sete Rios, a festa foi desigual)
Ilusões de presente
Esperei Setembro e deixei-o escapar, tão depressa como se foi o Verão das férias, das manhãs preguiçadas e dos fins de tarde estendidos.
Por norma meio de ressaca e meio de recomeço, este mês foi, como na gíria futebolística, de desmotivação profissional, não que o plantel não estivesse solidário, o problema é que continuou faltando uma palavrinha de apoio de um mister ou de um special qualquer, e se o CR, que é quem é, se sente triste por tão pouco, que dizer de um vulgar pregador de sermões aos peixes quando o novo ano lectivo se anuncia quebrantado e muito pouco venturoso…
Parodiando Cesário, houve neste mês, porém, duas coisas simplesmente belas que atenuaram o advento do Outono e me distraíram do desarrimo. A primeira delas, a quinze, foi a festa de portas abertas na Gulbenkian com «Pedro e o Lobo», de Sergei Prokofiev, no Grande Auditório (do outro Pedro, uivado em coro às portas de Sete Rios, a festa foi desigual). A outra, a vinte e dois, foi a festa de Brasil e Portugal (ou de Portugal e Brasil) unidos no Terreiro do Paço: Zé Ricardo, Carminho, Zeca Baleiro, Boss AC, Paulo Gonzo e Martinho da Vila. Momentos únicos de distinção e gáudio a custo zero, suspensões da crise, ilusões de presente.
E mais não houve no mês que foi, senão acasos de anedotário que registei na nossa imprensa e reproduzo para remanso da austeridade.
1) Foi descoberta uma nova Gioconda, de rosto mais novo, mais liso, aparentemente pintada a par com a outra, a de rosto agora mais envelhecido. Mas o mais importante da revelação não foi a pintura, mas o facto relevante de este quadro ser da autoria mais que provável do amante de Leonardo Da Vinci. Isto, sim, é de ficar com duas monas!
2) Foi lançado mais um livro infantil, o que, convenhamos, não é grande novidade, novidade mesmo, e relevante, é ter sido escrito pela mão de Cinha Jardim, figura da nossa socialite e da nossa memória colectiva. Quer dizer, importante, mesmo importante, foi ela ter-se inspirado no neto e na cadela para a trama. A imprensa é mesmo tramada!
3) Foi apanhado em flagrante uma criatura de meia-idade algures numa rua dos Estados Unidos a fazer sexo com… um sofá! A polícia deteve-o por atentado ao pudor. E fez-se notícia.
4) Foi detido mais um norte-americano. Coisa rara. Este, também pouco mais velho que o anterior, por ter desatado ao tiros a um vizinho seu, acusando-o de lhe ter violado a mulher. Coisa rara. Raro, sobretudo, e grave, porque a violação terá sido por telepatia. Como o repórter estava lá, tomou notas e divulgou o caso. E não era para menos, que coisa tão estranha não ocorre por aí além.
5) Foi eleita «a cadela mais mimada do mundo». Dá pelo nome de Lola e dorme numa cama de seis mil euros. Saracoteando-se com uma modesta coleira de platina e diamantes no valor de 32 mil euros, não consta que esta milionária Yorshire Terrier seja ainda perseguida pelo fisco por manifestos sinais exteriores de riqueza, embora haja fortes suspeitas de que tenha contas abertas na Suazilândia, na Ilha Tristão da Cunha e nas Ilhas Palau.
6) Foi tornado público o último relatório do SIS. A matéria é séria e impõe cuidados redobrados. O nível de ameaça contra os ministros subiu para três, e para quem não lida de perto com estas informações, este nível intermédio, e a subir, é crítico e não deixa ninguém em paz, que um qualquer cidadão pode ser chamado um dia destes a estas altas funções e, se isto se mantém, ninguém quererá aceitar o cargo. Sim, que o seguro morreu de velho.
7) Foi finalmente publicitado o que muita gente pensava há muito e acreditava ser verdade, que em Marte já houve água. Crê-se que a água se terá evaporado, mas as fotos não mentem e a morfologia marciana comprova a circunstância. E como onde há água há vida, não espantará que os ET andem pelo meio de nós.
Serão acasos do anedotário, é certo, mas casos assim tão circunspectos e inquietantes como estes não se encontram todos os dias nem em todas as conjunturas, nem mesmo na actual, de hipocrisia e impudência.
E se, havendo mais vida para além da Terra, fôssemos todos para Marte?!
Um mentiroso na assembleia
Observo um mentiroso a falar na televisão. Está na Assembleia da República e fala sempre unindo o polegar e o indicador da mão direita. Não sei se é uma característica dos mentirosos, se por exemplo eles têm cinco características que os distinguem, ou nove, ou cinquenta. Lembro-me de uma vez ter ido a uma escola falar sobre os livros e de alguns dos alunos me terem surpreendido com as nove características dos vampiros.
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quinta-feira, 13 de setembro de 2012
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Sol (2003-2012)
O Sol. Inesquecível. Quero acreditar que passeia por uma nuvem branca, como aquelas lá ao fundo, tranquilo, feliz, sempre pensativo.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
António Souto – Crónica (51)
… promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em
cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por
bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham»
(Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star
Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope
de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]»
(Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos
Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de
Coventry).
À espera de Setembro
Está praticamente tudo fechado para férias neste lindo mês
de Agosto. E bem podem fazer questão de nos tirar as férias e aquilo que as
subsidia que elas são sagradas, e penando uns mais outros menos lá se vai cada
um de nós desempeçando com os cêntimos sobrantes. Isto de fechado para férias é
como quem diz, que há fechaduras que tão cedo não voltarão a rodar por serem as
férias inevitavelmente estendidas, mas disto não discorreremos, que assaz se
tem perorado, disto, dos incêndios e de outras acrimónias do Verão.
Por isso, poderíamos igualmente confessar que também nos
continuamos mantendo em regime de ócio e, assim, arranjarmos desculpa decorosa
para nos esquivarmos ao encargo da crónica mensal, mas ficaríamos por certo de
mal com a nossa consciência. Não aprontaremos pretextos, portanto, mas a
verdade é que os assuntos merecedores de atenção acabam por falhar e ficamos
para aqui à deriva a ver se chegamos à costa, isto é, ao final da página, sem
que o leitor dê pelo vazio da substância. É claro que há sempre forma de
contornar as vagas.
Por exemplo, fazermos como fez Luiz Fagundes Duarte numa
crónica recente, que à falta de matéria e ou de inspiração se decidiu por
discorrer sobre as placas toponímicas «inauguratórias», sobre o pouco que dizem
e, sobretudo, do muito que fica por dizer. Coloca-se uma primeira pedra num
descampado ou inaugura-se uma qualquer obra, feita ou não, e lá fica uma lápide
com o registo da Excelência que a descerrou (ou não, às vezes, que conhecemos
pelo menos uma pedra com o nome de um «descerrante» que no acto se encontrava a
léguas) e, quando calha, ainda de uns quantos insignes que assistiram
protocolarmente ao evento, mas nunca se entalham os nomes daqueles que deram o
corpo e o coiro ao manifesto. Foi por estas e por outras que Saramago,
narrando-nos a edificação do Convento de Mafra, decidiu nomear vinte e três
operários, de A a Z, edificando-os também, porque deles foi a maior parte da
criação.
Ou, por exemplo, chamarmos à colação conteúdo mais
contundente, como a efusiva sugestão do presidente do Comité Olímpico Português
de, «sem conotações políticas», ser reactivada a Mocidade Portuguesa. Uma
proposta virtuosa para pôr os atletas de alta competição na linha, que isto de
ir uma vastíssima delegação para o estrangeiro malbaratar uma fortuna e, no
regresso, trazer duas míseras medalhas não é exemplo para ninguém, muito menos
para a Pátria, e é de nobres exemplos que a Pátria necessita, bem como de
elevados encorajamentos como este, ou como aqueloutro que, coincidentemente,
pretendia a suspensão da democracia por uns meses.
Ou, por exemplo, imergirmos até nos faltar o ar por
insignificâncias que têm preocupado gente folgada a propósito do desaparecimento
de documentos relativos aos famigerados contratos dos submarinos que tanto têm
dado que falar por cá como por águas alemãs e que um ex-ministro da Defesa já
esclareceu não saber de nada e muito menos os ditos terem vindo acidentalmente
misturados com as 61.893 páginas que fotocopiou nos idos de 2007 e que um
Expresso de Novembro desse ano muito bem elucidou.
Ou, por exemplo, e isto seria bem mais sério, sublinharmos o
desafio reformador de o Ministério da Educação atingir a curto prazo uma oferta
de 50% de cursos profissionais nas escolas portuguesas, o mesmo objectivo de há
uns quatro ou cinco anos, promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em
cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por
bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham»
(Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star
Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope
de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]»
(Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos
Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de
Coventry). Era só uma questão de alguns poucos ajustamentos e de alguma pouca
imaginação.
Mas não, não nos apetece encher chouriços, empatar, para
sermos mais elegantes, não vá o leitor enfadar-se, e com razão, de maneira que
nos ficamos por aqui, sem cronicarmos nada, nadinha, esperando apenas por
Setembro.
Crónica de Agosto de 2012 de António Souto para o blog
«Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,
11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36;
35; 37;
38;
39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50.
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
terça-feira, 28 de agosto de 2012
A lentidão
Não foi só os jogadores do Sporting a jogarem em câmara lenta contra o Rio Ave (0-1, em casa), foi também o treinador (?), depois, a falar em câmara lenta.
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segunda-feira, 27 de agosto de 2012
domingo, 19 de agosto de 2012
O meu ídolo do Sporting
Foi no final da década de 1970 que comecei a acompanhar o futebol. Mesmo assim, lembro-me de poucas coisas do título do meu clube em 1979/ 80. As minhas memórias dos jogos do Sporting começam verdadeiramente no Verão de 1981, quando a equipa foi estagiar para a Bulgária e eu ouvia na rádio que o novo guarda-redes, o húngaro Meszaros, fazia defesas impossíveis. O nome era uma novidade, mas acabou por se tornar familiar. Lembro-me de escrevê-lo num pequeno caderno onde ia apontando todos os jogos dessa época, com a certeza de que o campeonato não iria fugir. Mesmo com os falhanços que tivemos, por exemplo logo a abrir em casa com o Belenenses, num jogo que deu um empate; ou noutros empates em casa, com o Guimarães, o Espinho e o Leiria; ou até nas derrotas no estádio do Boavista, onde parecia haver uma maldição qualquer contra nós, e em Portimão, tão perto da minha terra. O jogo de Portimão, que lá está no pequeno caderno com os dois a zero do penalty do brasileiro Tião e do remate na meia-lua de Norton de Matos, esse jogo foi o único que vi ao vivo naquela época inesquecível. Foi mesmo a primeira vez que pude ir ver o Sporting, ainda por cima ficando junto ao gradeamento, a dois metros da linha de golo onde Meszaros, na primeira parte, andava de um lado para o outro, e eu completamente espantado, como se estivesse perto de um extraterrestre.
Meszaros seria sempre um dos jogadores sobre os quais eu escreveria numa série dos meus ídolos do Sporting. Nunca fui muito de ter ídolos, pensando mais na equipa, e por isso consigo facilmente enumerar os jogadores escolhidos: além de Meszaros, os que eu verdadeiramente recordo como ídolos são Balakov, Marco Aurélio, Pedro Barbosa, André Cruz, Beto Acosta, Mário Jardel e Liedson. Por muito que tenha apreciado outros, seria sobre estes que eu conseguiria escrever.
Há no entanto um outro ídolo, e que eu sempre associo ao Sporting. Nunca como ele um jogador me impressionou tanto. As memórias que guardo, além dos golos e das jogadas que fazia, são de frustração por ele não ter alinhado pela minha equipa. Uma época, duas, três, eu sempre à espera de que fosse para o Sporting, e nada. Até que acabou por ir, mas demasiado tarde, quando parecia completamente transformado, incapaz de marcar os golos que antes eu via com admiração e nalguns casos com um enorme espanto. Foi no começo da época de 1988/ 89. Ele está na foto oficial do plantel do Sporting, curiosamente entre dois defesas, como era habitual andar em campo: o brasileiro Ricardo Rocha e o português Miguel. Chamava-se Serge Cadorin e haveria de fazer essa época na Académica, com dezena e meia de jogos e poucos golos, regressando depois ao seu verdadeiro clube em Portugal, o Portimonense, onde ainda faria menos jogos e marcaria menos golos. Depois, a Bélgica, o seu país, para uma época final no clube da terra onde nasceu, uma época ainda menos conseguida.
O Cadorin que chegou ao Sporting já não era o mesmo jogador que tinha chegado meia-dúzia de anos antes a Portugal, para jogar no Portimonense. Estava limitado, depois de uma explosão em sua casa, cerca de um ano antes do começo dessa época de 1988/ 89, uma explosão que gerou opiniões polémicas e que por pouco não lhe tirava a vida. Creio que ele nunca quis falar muito do assunto, e até a sua filha, Sandy, chegada a Portimão com os pais com apenas duas semanas, em 1983, numa entrevista de há três ou quatro anos fala apenas de um «infeliz acidente».
Foi o jogador consumido pela explosão que chegou ao meu clube. Incapaz de marcar golos como os que eu tinha visto no estádio do Portimonense – o primeiro logo na estreia, num empate a dois com o Farense, então de regresso à primeira divisão; Cadorin empatou o jogo já perto do fim, fazendo entrar a bola na baliza, imagine-se, do grande Meszaros; e na baliza do Portimonense estava Vitor Damas. Cadorin, que tinha sempre os defesas por perto, como na foto em que aparece com a camisola do Sporting. Uma vez, num jogo para a Taça de Portugal com o Espinho, marcou um dos golos que mais me ficou na memória. O Espinho tinha uma equipa modesta, mas no centro da defesa estava um antigo internacional, quase a acabar a acarreia, Freitas, ex-jogador do Porto. Os colegas de Freitas não acertavam com a marcação a Cadorin e por isso o ex-internacional repreendia-os constantemente. Eles, ainda jovens, nem respondiam, parecendo envergonhados. Até que de repente aconteceu uma jogada extraordinária. A bola foi metida em profundidade para Cadorin. Um dos defesas que o marcava já não o conseguiu apanhar, mas estava lá o experiente Freitas, que correu para ele e com um salto conseguiu agarrá-lo com firmeza. Pensei que ia ser falta, que Cadorin acabaria no chão para um livre a uns trinta metros da baliza. Mas não. Cadorin correu, correu, entrou na área e marcou golo, correu veloz como sempre, mesmo com o antigo internacional sempre agarrado a ele, de rojo, como se tivesse cola nas mãos. Já não me lembro bem, mas acho que Freitas só largou Cadorin depois de ter andado uns bons metros de rojo, quando o meu ídolo já corria em direcção à bancada central para festejar o golo em frente dos sócios do clube.
Mas o jogo que tenho mais presente, acima de todos, é o de finais de 1985, com o Porto, em Portimão. Comprei o jornal «A Bola» nesse dia, o jornal enorme, preto, branco e vermelho, a anunciar que Cadorin tinha sido aliciado para fazer um penalty contra a sua equipa. Li o que lá escreviam, que tinha sido o próprio Cadorin a denunciar o caso, e depois fui para o estádio. Encontrei o ambiente de confusão do costume, bem diferente do de agora por lá, pois já não vai muita gente aos jogos. Quase não se conseguia andar, coisa que aliás acontecia em todos os jogos importantes. Mas ao entrar no estádio notei qualquer coisa diferente do habitual. Não sabia bem o que era, mas tinha a ver com a história do penalty. Percebia-se nos olhares das pessoas, nos comentários, no receio do que poderia acontecer pouco depois de o jogo começar, já que o penalty estava marcado para os primeiros cinco minutos.
Tentei ver o que se passava com Cadorin, os movimentos que ia fazendo no aquecimento, e rapidamente percebi que muito dificilmente o Portimonense não ganharia o jogo, e mais, tive a certeza de que ele ia marcar. Reforcei essa certeza logo nos primeiros minutos, quando o vi fugir aos defesas do Porto e atirar à barra da baliza de Zé Beto. E depois, sobre o intervalo, talvez um minuto antes de o árbitro apitar, os dois momentos do jogo. Primeiro um ataque rápido do Portimonense, pela zona central, com a bola a sobrar para um dos irmãos Reina, que tentou o remate. A bola bateu num defesa do Porto e sobrou para o lado esquerdo, onde apareceu um jogador do Portimonense com nome de marca de automóvel: Skoda. Costumava jogar de bola colada aos pés e de cabeça levantada, mas aí nem perdeu tempo, centrou logo para a área. Zé Beto pareceu não saber bem se sair ou não, e enquanto estava nesse dilema apareceu Cadorin a chutar para dentro da baliza. Não me lembro de ter visto alguma vez um golo comemorado de forma tão efusiva naquele estádio. O barulho nas bancadas, os adeptos do Portimonense de pé, muitos aos saltos e aos abraços. Tudo tão diferente de um recanto da bancada coberta, que me parecia reservado aos notáveis do Porto, pouca gente, incluindo algumas senhoras com casacos de peles. Mais do que para a claque do Porto, era para lá que muitos adeptos do Portimonense se viravam. E as senhoras ripostavam, e algumas cirandavam pela bancada a fazerem carantonhas, procurando tirar satisfação das coisas que ouviam.
Eu costumava ficar perto dessa zona. Entrava para o peão com o cartão de jogador dos juvenis e depois subia para uma cobertura da porta de acesso, onde se via melhor o jogo. Estava concentrado na zaragata das senhoras dos casacos de peles com alguns adeptos do Portimonense. Mas de repente desviei o olhar. O jogo tinha recomeçado, faltaria uns segundos para o intervalo, e os jogadores do Porto estavam nervosos. Tinham acabado de perder a bola, que foi parar ao meio campo do Portimonense, e aí alguém já a lançava para o lado direito do ataque, mesmo junto a um dos bancos de suplentes. Foi por esse lado que correu Cadorin, surgido nem se percebia de onde. Um anãozinho que o Porto por vezes utilizava a defesa esquerdo correu desesperado para lá. A baliza ainda estava tão longe, pensava eu. Mas Cadorin, que chegou bem antes do anãozinho, chutou a bola de primeira. Mesmo junto ao banco de suplentes, chutou logo daí, e eu lembro-me de ter visto a bola pelo ar, a fazer um arco enorme. Zé Beto olhou para ela a cortar os ares, sem saber como apanhá-la, a bola a cair quando se aproximava da baliza. Muita gente parecia ir aproveitar o facto de ainda estar de pé e a saltar e aos gritos para festejar mais um golo, mas a bola apenas roçou no ferro da baliza, mesmo no encontro do poste direito com a barra. O árbitro apitou logo a seguir para o intervalo.
Na segunda parte o Portimonense apareceu mais retraído, a tentar guardar o resultado, e o Porto, mesmo que quisesse mudar as coisas, não conseguia. Cadorin andava de olhos postos na baliza de Zé Beto e todos os jogadores do Porto pareciam de olhos postos nele, mais do que na baliza do Portimonense, onde não conseguiram marcar nem por uma vez. Acabou com um a zero. Lembro-me de à noite ver Cadorin na televisão a dizer que tinha sido um jogo normal, apenas isso. E sobre o facto de o terem tentado comprar disse apenas que não queria falar mais do assunto. O repórter insistiu, perguntando-lhe se perante a polícia confirmaria as acusações que tinha feito. Disse simplesmente que sim, que confirmaria.
Pouco mais de um ano passado, a explosão que lhe tirou as forças que faziam dele o jogador mais impressionante que alguma vez vi jogar. Digo isto agora, depois de tantos jogadores e tantos jogos, em tantos estádios. Mas Cadorin, visto com os meus olhos de adolescente, foi mesmo o jogador mais impressionante de todos. Às vezes eu ia para o liceu de Portimão, depois de ter saído do autocarro que me levava desde a Serra de Monchique, e passava pela avenida que acompanhava a bancada do estádio do Portimonense. Uma vez por outra via os jogadores. Lembro-me de Vítor Damas num Citroen Dyane e de um jogador que controlava o jogo a meio-campo, Carvalho, num Renault Cinco, o mesmo modelo em que passado pouco tempo veria Manuel Fernandes na bicha para a portagem da Ponte Vinte e Cinco de Abril. Já Cadorin nunca o vi de carro. Acho que ele morava num prédio perto do estádio, mesmo em frente de onde agora é a biblioteca municipal. Era de lá que o via sair às vezes, de fato de treino, em direcção ao estádio, com passada larga e sempre metido consigo, da mesma forma que o via no campo, pensativo, e de repente a arrancar para a baliza como um furacão, ou a chutar de primeira com uma força tremenda.
Não jogou pelo Sporting, foi apenas num começo de época vestir a camisola verde e branca para a foto oficial do plantel. Época de 1988/ 89, mais uma das terríveis épocas dos dezoito anos sem campeonatos. O verdadeiro Cadorin, o que chegou a Portimão em 1983, sempre acreditei, teria ajudado a construir uma história diferente. Mas infelizmente só chegou ao Sporting depois da maldita explosão. Nunca conseguiu marcar um golo por nós, marcou-nos foi dois em Alvalade. Marcou contra nós, mas é o meu ídolo do Sporting.
Cadorin morreu em 2007, aos 45 anos, vítima de um ataque cardíaco. Na entrevista da filha há várias fotos. Dos tempos de Portimão, mas também dos tempos que se seguiram ao regresso à Bélgica. Cadorin passou a vender têxteis nas feiras, com a mulher. É um Cadorin envelhecido o desses tempos, mesmo sendo ainda um homem novo. Nas outras fotos reconhece-se a zona da Praia da Rocha, e também a Praia do Vau. Os filhos ainda pequeninos, e ele jovem e cheio de força, e a mulher também ainda jovem. Numa das fotos a mulher está a encher de água um garrafão, nas Caldas de Monchique. Cadorin segura a filha pequenina pela mão. A casa dos meus pais, onde eu vivia então, fica um pouco mais acima. Só na entrevista da filha, mais de vinte anos depois, descobri que o meu ídolo ia com a família buscar água à minha terra.
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Uma história
Maradona esteve brilhante
Chamemos-lhe, por exemplo, Gabriel García Márquez. Ou antes, chamemos-lhe Diego Armando Maradona, que provavelmente ainda é mais conhecido do que o escritor colombiano. É uma das personagens desta história, que aconteceu há alguns anos, em Portugal, durante o primeiro aniversário de uma livraria. Maradona – talvez devesse chamar-lhe García Márquez, já nem sei – estava convidado.
Foi no primeiro aniversário de uma livraria, durante um leilão de livros em que eu próprio dei ajuda. Fiz sugestões para a preparação do programa e também forneci alguns contactos, além, obviamente, de carregar umas boas caixas de livros. Um dia, na preparação da festa, tinha surgido a ideia de fazer o leilão. A ideia foi-se desenvolvendo e então tomou-se à decisão de o leilão ser de livros de viagens, com os próprios autores dos livros escolhidos a marcarem presença. Tudo iria acontecer no largo da câmara, junto à entrada da livraria, e esperava-se que acorressem umas centenas de pessoas.
Muitos dos escritores convidados aceitaram, e entre eles havia gente conhecida, como José Eduardo Agualusa, Miguel Sousa Tavares, Clara Pinto Correia, Robyn Davidson, José Megre, Manuel João Ramos, Miguelanxo Prado ou José Manuel Fajardo. Cada um teria um livro para ser leiloado, depois de dizer algumas palavras, como complemento do texto ou da ilustração que pelo próprio punho teria colocado numa das páginas em branco.
Claro que para fazer o leilão tinha de ser convidada uma pessoa importante, conhecida no meio, digamos assim, literário. Foi então que surgiu a ideia de convidar o tal Gabriel García Márquez de cá, ou antes, o tal Diego Armando Maradona, ou Mário Vargas Llosa, ou Eusébio da Silva Ferreira, enfim, o que se queira. Talvez Maradona seja o melhor. E foi mesmo convidado. As pessoas da livraria achavam que ele não ia aceitar, mas a verdade é que aceitou.
Cá o nosso Maradona aceitou.
Bom, lá chegou o dia do aniversário, com várias iniciativas, até que ao fim da tarde ia começar o leilão. Os escritores que tinha confirmado a presença estavam todos, e tinham devolvido os livros com o texto, o desenho e o autógrafo. Os que só se tinham comprometido a devolver o livro também tinham cumprido. O largo da câmara estava cheio, confirmava-se mesmo a presença de centenas de pessoas. Eu tinha carregado muitas caixas de livros. Tudo corria bem, tirando o caso de Diego Armando Maradona. Não estava presente. Nem ia estar, apesar de ter o nome no programa, confirmado e reconfirmado. Tinha telefonado a dizer que um problema de última hora o impedia.
E então, para fazer o leilão, de repente as pessoas da livraria lembraram-se de mim. Foi desta forma que eu me vi no meio dos escritores, com um pequeno martelo para assinalar cada arrematação. Lembro-me de que havia um Benfica – Porto ao mesmo tempo e que dava na televisão. Se fosse o Sporting a jogar seria uma catástrofe, pensei, mas assim… Curiosamente, o jogo não tinha desmobilizado a assistência. Ainda pensei que poderiam ter vindo pelo Maradona, e depois pensei que ele próprio, o nosso Maradona, era capaz de estar ausente por causa do jogo. Daquele ou de outro qualquer.
Acho que fui escolhido por também ser escritor, embora os convidados fossem dos conhecidos e eu não. Lá me apresentaram, a dizer que era o substituto do leiloeiro Diego Armando Maradona, que também tinha publicado livros e essas coisas. Aí notei que pouca gente da assistência se importou, o que me levou a pensar que estavam mesmo interessados nos autores e nos livros a leilão. Confirmei-o depois, com os valores obtidos em cada martelada.
Lembro-me de que guardei os apontamentos que ia tomando, por isso posso ainda confirmar os valores. Estávamos nos últimos tempos do escudo. O livro de José Eduardo Agualusa, «Um Estranho em Goa», por exemplo, com o preço base de três mil e quinhentos escudos, foi vendido por vinte mil. O de José Manuel Fajardo, «Terra Prometida», que partiu de quatro mil e quinhentos, chegou aos vinte e um mil, o de José Megre, «Trinta Anos de Viagens», com uma base de sete mil e quinhentos escudos, atingiu vinte e cinco mil. Miguel Sousa Tavares (as crónicas de «Sul») ficou-se pelos dez mil, mas Manuel João Ramos («Histórias Etíopes») chegou aos doze e Miguelanxo Prado («Carta de Lisboa») aos quinze. Robyn Davidson («Lugares Desertos») chegou a dez mil e quinhentos escudos e Clara Pinto Correia atingiu os sete mil («The Big Easy»). Pelo meio, ainda foi leiloado um CD com músicas de Lula Pena, uma cantora portuguesa na altura radicada no Luxemburgo, que ia actuar a seguir. Ela não conseguiu conter o espanto quando viu o CD chegar a dezasseis mil e quinhentos escudos. E também foi leiloada uma foto do fotógrafo Vasco Cunha Monteiro, integrada numa exposição sobre uma viagem à Patagónia que estava patente na livraria (e o que é certo é que a foto chegou aos cinquenta e dois mil escudos).
Tudo isto, principalmente para quem anda pelo mundo dos livros, parece muito dinheiro. Ainda por cima tratando-se de autores vivos e parte deles presentes no leilão e a fazerem intervenções. Foi uma surpresa para mim. E também para os autores participantes. José Eduardo Agualusa, antes de regressar ao hotel onde devia descansar um pouco para depois apanhar o avião de regresso a Berlim, onde então estava a viver, veio ter comigo e disse-me: «Pá, tu és mesmo bom!» Por momentos pensei que ele tinha algum dos meus livros e que se calhar andava com ideias de cravar-me um autógrafo, mas logo percebi o que ele queria dizer, ao ouvi-lo falar de novo: «Pá, tu vendeste um livro meu por vinte contos, um livro que nem chega aos três nas livrarias! Tu és mesmo bom!»
Ou seja, o leilão foi um sucesso. As pessoas quiseram falar com os escritores, e eu, com quem ninguém parecia querer falar, afastei-me da mesa e fui ver se era preciso ajudar nalguma coisa, talvez carregar umas caixas de livros se as pessoas já tivessem esgotado os das mesas onde iam fazendo as vendas – de livros, de comidas e de bebidas.
Passados uns dias, saiu no jornal da terra um trabalho sobre a festa. O leilão era o grande destaque. Fui logo ler o texto. Falava-se do projecto da livraria, mas sobretudo dos escritores, dos livros a leilão e dos valores atingidos (trocando alguns em relação ao que eu tinha colocado nos meus apontamentos). A meio da leitura, tive a esperança de que falassem de mim, que tinha sido apresentado para fazer o leilão em vez do grande Maradona. Mas nada. Fui avançando no texto, e nada, mesmo nada. Só a livraria, os livros, os escritores, e até a enorme assistência que tinha enchido o largo da câmara. Tentei colocar-me no meu lugar, pensando até que se falassem de mim como leiloeiro também poderiam dizer das minhas andanças a carregar caixas de livros. E também a dar uma ajuda na zona das mesas de venda de livros, de comidas e de bebidas. Ou seja, eu não tinha que estar a pensar aquelas coisas. Por isso avancei no texto. Mais pormenores dos escritores presentes, com alguma insistência em José Eduardo Agualusa e José Manuel Fajardo. Bem merecida, pelo menos era o que eu pensava. Gostava muito dos livros deles, e inclusive no leilão tinha falado um pouco de cada livro – «Um Estranho em Goa», que tinha lido num Verão, no Algarve, na praia, e a viagem escrita pelo espanhol, que tinha acabado uns tempos antes, depois de ter lido outro livro dele, pequenino, chamado «Carta do Fim do Mundo». De outros escritores no leilão eu também conhecia os livros, e por isso tinha falado deles, e nos casos em que não conhecia por aí além tinha-me refugiado em considerações mais genéricas, inclusive sobre o respectivo autor.
Eu pensava nisto a ler o texto do jornal, aproximava-me do fim e já me tinha esquecido do desejo de ver lá o meu nome a dizer que tinha sido o leiloeiro, ou se quisesse uma linguagem mais elaborada a dizer que tinha tido a meu cargo o leilão dos livros. Mas nada.
Até que a duas linhas do fim, de repente, um parágrafo acabava. E depois, a abrir o último, pequenino, dei com uma frase que me captou ainda mais a atenção. Comecei a ler devagar, tentando apanhar bem cada palavra: «Conduziu – o – leilão – de – forma – brilhante…» Por momentos pensei que mais do que aqueles escritores famosos, uns pelo facto de serem escritores, outros pelo facto de serem famosos de outras coisas e também terem escrito livros, por momentos pensei que no meio deles eu ia ser o grande destaque. Pensei que ia receber, talvez, o maior elogio da festa do primeiro aniversário da livraria. Em vez de avançar até ao fim da frase, decidi recuar, para lê-la toda de seguida, sem pausas. Voltei ao início do pequeno parágrafo e li: «Conduziu o leilão, de forma brilhante…» Já ia lançado a dizer o meu nome, mas não. No jornal o que escreviam era que quem tinha conduzido o leilão de forma brilhante tinha sido, já se vê, Diego Armando Maradona. O nosso Maradona. Como aliás vinha no programa.
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
António Souto – Crónica (50)
As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.
Que importa que Portugal arda?
Portugal arde. Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos.
Era eu criança e já o país ardia, como sempre deve ter ardido, de norte a sul e do litoral ao interior, e ao calor do estio juntava-se a quentura abrasadora das chamas.
Lá em casa falava-se do mato dos pinhais ao abandono que não parava de crescer e que já ninguém queria cortar, estava tudo rico, e era por via disso que o meu avô ia todos os anos com trabalhadores a dias apanhar carros e carros dele, bem cedinho para evitar o sol que tornava o tojo mais duro e maior o esforço de o aparar, carros de vacas que o traziam, por haver um único tractor na aldeia e ficar caro o transporte, e logo que descarregado em casa ia uma parte para o caminho argiloso e rebaixado do pátio e a outra para os currais, para a cama do gado.
Naquelas ocasiões em que as labaredas se avultavam e intimidavam, o sino tocava a rebate, e antes mesmo da chegada dos voluntários organizados, a gente da aldeia acorria desorientada e, pelo monte acima, galgava a escuridão (porque de noite a urgência e o pânico eram mais inflamados) norteada pelo cheiro a eucalipto queimado e pelos lampejos no céu estrelado antes de encoberto pelo fumo. E chegados todos ao inferno, cada um a seu modo ajudava a vencer o fogo, com uma enxada ou um engaço, com uma forquilha ou uma engaceta, com ramos verdes esgaçados à sorte ou com berros e impropérios de encorajamento. No final, pela madrugada, os corpos soçobrados de suor e cinza, os olhos ardentes e a respiração abafada, o fascínio de um incêndio debelado.
Lá em casa, naquelas ocasiões, o dia seguinte era um dia amargo e de poucas palavras. No ar, um bafo a desolação.
Hoje já ninguém apanha o mato por este já não ser de ninguém, e já não há quem toque os sinos a rebate nem quem saiba o que isso seja, que os tempos são outros. Mas há ainda chamas que continuam avançando, como antes avançavam, porque o chão tem que arder quando o vento sopra de feição. E há o eco sumido dos melros e das pegas pelos ramos altos dos pinheiros e o rosmaninho rasando as raízes. E há gestos que se repetem quando o castigo se acerca e o desespero alastra (temos de ser uns para os outros, solidários, como agora se apregoa). E há silêncios asfixiados tão como os de sempre quando as muitas lágrimas se esvaecem no rescaldo do flagelo.
Mas hoje o incêndio é só um incêndio, vistoso e desinteressante. Mais pinheiro menos pinheiro, mais eucalipto menos eucalipto, mais casa menos casa, mais vida menos vida. É verdade que a reportagem impressiona, o enquadramento é meticuloso, o plano de pormenor, mas o fogo tem menos magia, e na nossa casa, onde não lavrou, o dia seguinte é só mais um dia seguinte, o espectáculo dura o tempo costumado da notícia.
As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.
Quanto ao mais, que importa que Portugal arda? Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos. E nós com ele, aclimatados.
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