quarta-feira, 23 de novembro de 2011

António Souto – Crónica (42)


Sou até capaz de a trazer comigo pela mão e perder-me com ela pela baixa da cidade, este ano sem as luzinhas do costume e com as montras repletas de azedume no lugar de azevinho, e descermos ambos até ao Tejo e daí acenarmos ao Cristo Rei e implorar-lhe baixinho que lá de cima roube uma estrela e a lance aos espíritos cegos que nos dominam, para que lhes dê um pouco de luz e de discernimento.

Leopopotinices
Ainda hoje ela não tem a certeza do que aconteceu realmente naquela noite. A Leopoldina não é mulher para alimentar frivolidades, mas aquela noite ainda não lhe saiu completamente da ideia apesar de bem casada há mais de vinte anos e mãe de dois filhos varões que são uns amores de jovens, isto pelo menos é o que ela não se cansa de dizer sempre que a conversa, apesar de breve, roça a família, e eu acredito.
A princípio achei-lhe graça ao nome, tinha assim um não sei quê de misterioso que ia bem com a graça do corpo, um corpo de curvas nutridas, em equilíbrio perfeito, tudo sensual, tudo requerendo impressões digitais. Depois achei-lhe graça a toda ela e em três tempos aquilo evoluiu para o regalo do tapete e para o palrar de uma televisão tão abandonada como o periquito opalino da cozinha. A sala foi nessa circunstância um céu na terra. Leopoldina a única estrela polar. A noite, mágica. Um episódio.
A peripécia ficou por ali e a ausência foi longa. Até hoje. Hoje o dia em que ela achou não ter a certeza do que aconteceu naquela noite. Eu também não. Há noites assim. Mas uma coisa é a gente não ter a certeza do como, outra é a gente não se lembrar do quê. Bem entendido que não arrisquei confessar-lhe que durante estes últimos anos a rememorei regularmente quando, chegado Dezembro, me abastecia de natais num certo hipermercado. E que a comprei sempre com satisfação solidária só por lhe achar graça ao nome. A amizade não se esquece.
Mas este natal estou convencido de que o gesto não será o mesmo, e é bem possível que a ausência volva a ser longa e que aquele acaso celeste não suba mais à tona. Disto não falámos hoje. Também se calhar não nos encontraremos nos anos mais próximos, ou talvez só quando os seus dois filhos varões deixarem de ser uns amores, porque já então haverá netos, e as palavras, como diria o poeta, é possível que estejam já gastas de não terem tido uso.
Este natal, se me for fornecer dele a um certo hipermercado, o meu gesto solidário será agora para a Popota e não terei motivos para evocar mais ninguém, nem mesmo quem certa vez fez mágica uma noite e me criou incertezas.
(Começo a estar cansado de incertezas. Ou será que são as certezas que me cansam?) Sou até capaz de a trazer comigo pela mão e perder-me com ela pela baixa da cidade, este ano sem as luzinhas do costume e com as montras repletas de azedume no lugar de azevinho, e descermos ambos até ao Tejo e daí acenarmos ao Cristo Rei e implorar-lhe baixinho que lá de cima roube uma estrela e a lance aos espíritos cegos que nos dominam, para que lhes dê um pouco de luz e de discernimento. De certeza que a Popota não levará a mal o atrevimento.
E se levar, dá-lhe Popota, que este Natal é só diversão! Um episódio. A Leopoldina que o diga!

Crónica de Novembro de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41

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