Parece que havia diante dele, numa mesinha de ocasião, uma biografia com o seu boneco na capa e um título de arrasar: Paulo Futre – «El Portugués». E no ar, claro, no ar havia um leve sotaque espanholado e um ambiente de fusão transpirando negócio. Parece que havia, porque não a cheguei a topar. Como diria Mia Couto (que não por acaso também lá estava), passei em sua renteza e desamparei a loja.
Desmotivações
No último dia da feira do livro, fui finalmente à feira do livro. Em Lisboa. A feira foi no Parque Eduardo VII, e foi lá que lá fui, como à festa. Uma tarde simpática, um calor suportável, uma vista de postal ilustrado com Tejo ao fundo e alguma animação.
Por quê só no último dia? Calhou, ou melhor, fui adiando. Não é que não tivesse motivação suficiente para lá ir antes, como é hábito meu, pelo menos uma vez ao lançar dos foguetes, outra lá mais para o meio, para o arraial, e outra no fim, para o apanhar das canas; mas desta vez desleixei-me, que é como quem diz, disfarcei com o facto de no último dia haver por lá amigos escritores e muitos outros, muitos outros escritores que não sendo amigos sempre ficam bem no retrato. Tão como fora dele.
Havia por lá muitos, só no espaço Leya era aos punhados, uns muito famosos, outros assim-assim, outros anónimos mas já com tiques de estrelato a sair-lhes com discrição pelo canto dos olhos. E livros, então, às toneladas, quase aos pontapés.
Por falar em pontapés, estava lá o Futre a fazer jus à publicidade, de óculos escuros para dar pinta de celebridade, com uma fila de fãs de fazer inveja aos escreventes todos, e todos juntos. E sempre que saía um livro lá saía uma fotografia. Ele era sorrisos e abraços e beijinhos e poses de camisa arregaçada e fio de ouro ao pescoço com dois amuletos, que a gente sabe como são os internacionais a sério e que se levam a sério. Parece que havia diante dele, numa mesinha de ocasião, uma biografia com o seu boneco na capa e um título de arrasar: Paulo Futre – «El Portugués». E no ar, claro, no ar havia um leve sotaque espanholado e um ambiente de fusão transpirando negócio. Parece que havia, porque não a cheguei a topar. Como diria Mia Couto (que não por acaso também lá estava), passei em sua renteza e desamparei a loja.
Voltemos aos amigos. No centro da romaria, um abraço sentido ao Urbano Tavares Rodrigues, fidalgo das letras e dos afectos, senhor de uma incomensurável abnegação; no lado oposto, mais amainado, um encontro prometido com o António Manuel Venda, escritor de lugares e de vagares, e com ele uns minutos de conversa para rematar a tarde.
Se gostei da feira? Gostei, mas esqueci-me, pela primeira vez, de comprar um livro para mim. Mas também pela primeira vez, creio que pela primeira vez, a fartura que comi à saída, porque motivado, não me causou azia.
Azia que, para falar verdade, é o que muita criatura tem na cabeça quando a razão lhe desce para o estômago. Isto sou eu a lembrar-me agora, como quem foge com o rabo à seringa (digo, à feira), da derrota do Benfica frente ao Braga e do Jorge Jesus, numa espécie de acto de contrição, a desabafar que os seus jogadores precisavam de motivação. De motivação, disse ele. Pelos vistos, não há nada pior de que um plantel de luxo, bem pago e com mordomias desmotivado atrás de uma bola.
Lérias, pois então, dêem-lhes farturas, só farturas, boas e motivadas farturas, e no intervalo delas dêem-lhes livros, muitos livros sobre auto-estima e motivação, e se não souberem ler não faz mal, far-lhes-á bem passearem-se com eles, os livros, debaixo do braço, como quem aspira a novas oportunidades, que o que é preciso é mesmo um pretexto.
Afinal, que motivação têm os tornados na América ou um vulcão qualquer, como um impronunciável Grimsvotn, para as bandas da Islândia? Nenhuma, e no entanto…
E no entanto acabei por ir à feira do livro no último dia da feira do livro.
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