E de novo Eça e Ramalho, em coro: «Vamos rir pois. O riso é um castigo; o riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. Na política constitucional o riso é uma opinião.» É este o meu riso de hoje, só para não chorar…
.
O meu riso de hoje
Camilo Castelo Branco era um escritor do seu tempo, de alma e coração, mas atento, e não só de amores perdidos e de amores achados deu forma à criação, mas igualmente de muitas outras coisas do estômago e da cabeça. Sabia ele do que falava, e sabia também quanto urgia ouvir e mudar na sociedade do seu tempo.
Lembrei-me dele por mor de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado das terras de Miranda, que, eleito deputado, abala convicto para Lisboa. Defensor dos bons modos e dos bons costumes, começa por criticar os gastos supérfluos da nação, os vícios da capital e mais as mentes brilhantes que, aqui chegadas, dignas procuradoras da plebe, cedo se deixam inebriar e de deslumbramento se olvidam das suas origens e dos seus deveres. Mas o peso da urbe fala mais forte, o luxo e a notoriedade castram a singeleza e a honestidade da gente provinciana, e o ilustre parlamentar aos poucos cede e se torna igual aos demais, no trajar por fora como por dentro.
E por arrasto vem o Eça, e com ele Ramalho Ortigão, e as «Farpas» de ambos, como estas: «O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder, a burguesia… explora. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.»
E por que razão há-de vir isto assim à crónica, nem eu sei bem, ou talvez o saiba e me não apeteça dizê-lo por palavras de minha lavra. Porque outros o disseram e dizem melhor, ou porque assim se pode dizer o que se reclama mas com o prazer acrescido da memória. Da memória que me traz de supetão o lema do porco Napoleão – «Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.» – ou a longa «Parábola das tristes décadas» do Baptista Bastos de que aqui, por economia, transcrevo lascas: «Há trinta e cinco anos que vocês nos manipulam, nos dominam, nos mentem, nos omitem, nos desprezam./ Há trinta e cinco anos que nos roubam, não só os bens imediatos de que carecemos, como a esperança que alimenta as almas e favorece os sonhos./ (…)/ Há trinta e cinco anos que criam legiões e legiões de desempregados, de desesperados, de açoitados pelo azorrague da vossa indignidade./ (…)/ Há trinta e cinco anos que embalam as dores de duas gerações de jovens, e atiram-nos para as drogas, para o álcool, para uma existência sem rumo, sem direcção e sem sentido./ (…)/ Há trinta e cinco anos que se alternam no mando, e o mando é a distribuição de benesses, prebendas, privilégios entre vocês./ (…)/ Há trinta e cinco anos que vocês são sempre os mesmos, embora com rostos diferentes./ (…)/ Há trinta e cinco anos que, com minúcia e zelo, construíram um país só para vocês./ Há trinta e cinco anos que moldaram a exclusão social, que esculpiram as várias faces da miséria e, agora, sem recato e sem pejo, um de vocês faz o discurso da indignação./ (…)/ Há trinta e cinco anos que asfixiam o pensamento construtivo; que liquidaram as referências norteadoras; que escarneceram da nossa pessoal identidade; que a vossa ascensão não corresponde ao vosso mérito; que ignoram a conciliação entre semelhança e diferença; que condenam a norma imperativa do equilíbrio social./ Riam-se, riam-se. Vocês são uma gente que não presta para nada; que não vale nada./ Malditos sejam!»
E de novo Eça e Ramalho, em coro: «Vamos rir pois. O riso é um castigo; o riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. Na política constitucional o riso é uma opinião.»
É este o meu riso de hoje, só para não chorar…
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Crónica de Fevereiro de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32.
O meu riso de hoje
Camilo Castelo Branco era um escritor do seu tempo, de alma e coração, mas atento, e não só de amores perdidos e de amores achados deu forma à criação, mas igualmente de muitas outras coisas do estômago e da cabeça. Sabia ele do que falava, e sabia também quanto urgia ouvir e mudar na sociedade do seu tempo.
Lembrei-me dele por mor de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado das terras de Miranda, que, eleito deputado, abala convicto para Lisboa. Defensor dos bons modos e dos bons costumes, começa por criticar os gastos supérfluos da nação, os vícios da capital e mais as mentes brilhantes que, aqui chegadas, dignas procuradoras da plebe, cedo se deixam inebriar e de deslumbramento se olvidam das suas origens e dos seus deveres. Mas o peso da urbe fala mais forte, o luxo e a notoriedade castram a singeleza e a honestidade da gente provinciana, e o ilustre parlamentar aos poucos cede e se torna igual aos demais, no trajar por fora como por dentro.
E por arrasto vem o Eça, e com ele Ramalho Ortigão, e as «Farpas» de ambos, como estas: «O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder, a burguesia… explora. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.»
E por que razão há-de vir isto assim à crónica, nem eu sei bem, ou talvez o saiba e me não apeteça dizê-lo por palavras de minha lavra. Porque outros o disseram e dizem melhor, ou porque assim se pode dizer o que se reclama mas com o prazer acrescido da memória. Da memória que me traz de supetão o lema do porco Napoleão – «Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.» – ou a longa «Parábola das tristes décadas» do Baptista Bastos de que aqui, por economia, transcrevo lascas: «Há trinta e cinco anos que vocês nos manipulam, nos dominam, nos mentem, nos omitem, nos desprezam./ Há trinta e cinco anos que nos roubam, não só os bens imediatos de que carecemos, como a esperança que alimenta as almas e favorece os sonhos./ (…)/ Há trinta e cinco anos que criam legiões e legiões de desempregados, de desesperados, de açoitados pelo azorrague da vossa indignidade./ (…)/ Há trinta e cinco anos que embalam as dores de duas gerações de jovens, e atiram-nos para as drogas, para o álcool, para uma existência sem rumo, sem direcção e sem sentido./ (…)/ Há trinta e cinco anos que se alternam no mando, e o mando é a distribuição de benesses, prebendas, privilégios entre vocês./ (…)/ Há trinta e cinco anos que vocês são sempre os mesmos, embora com rostos diferentes./ (…)/ Há trinta e cinco anos que, com minúcia e zelo, construíram um país só para vocês./ Há trinta e cinco anos que moldaram a exclusão social, que esculpiram as várias faces da miséria e, agora, sem recato e sem pejo, um de vocês faz o discurso da indignação./ (…)/ Há trinta e cinco anos que asfixiam o pensamento construtivo; que liquidaram as referências norteadoras; que escarneceram da nossa pessoal identidade; que a vossa ascensão não corresponde ao vosso mérito; que ignoram a conciliação entre semelhança e diferença; que condenam a norma imperativa do equilíbrio social./ Riam-se, riam-se. Vocês são uma gente que não presta para nada; que não vale nada./ Malditos sejam!»
E de novo Eça e Ramalho, em coro: «Vamos rir pois. O riso é um castigo; o riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. Na política constitucional o riso é uma opinião.»
É este o meu riso de hoje, só para não chorar…
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Crónica de Fevereiro de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32.
1 comentário:
Querido Souto,
obrigada por + 1 crónica, q como sempre me delicia, obrigada pela tua arte escrita.
Bjs
Manela (CH)
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