Por falar em apardalado, deixo-me levar nas asas do
adjectivo para o quintal e para a quinta e para os campos próximos da minha
infância onde, com uma atiradeira (uma fisga, para os putos da cidade), o meu
irmão e eu caçávamos uns pardais-ladrões…
Em abono da verdade
Um dia destes, de regresso às crónicas de Lobo Antunes,
deliciei-me com uma antiga, uma que levou em cima com o título «Crónica escrita
depois de ter bebido dois copos de vinho tinto ao almoço». Uma crónica a valer
e a condizer com a profusão do enredo, rio sinuoso que não avista nunca a foz,
que a crónica tem destas alforrias.
(Convém sublinhar que me regalo sempre com as crónicas de
Lobo Antunes, com as primeiras, mais de memórias, com as outras que a seguir
são mais de noite nostálgica, com as mais recentes que vão aportando,
fotográficas e precisas, e trazem dentro o verdadeiro «sentido íntimo das
coisas». Enfim, com todas me contento.)
Mas com esta antiga muito em particular. Porque esta me fez
exactamente pensar, pelo desvario, na insânia etilizada que nos invadiu neste
treze de Outubro. O sol não cirandou, baixou literalmente ao horizonte e
desapareceu, e com ele se sumiram os horizontes de quem ainda acreditava em
milagres. Afinal de contas, um prodígio bem ao jeito de uma crónica de uma
morte lenta que levará à agonia milhares ou milhões de criaturas, gente séria,
cidadãos deste tempo e de tempos vindouros, que o flagelo veio para perdurar.
E há nisto ironia, num destempero que vem de longe, que
atravessou séculos, justificou mitos e nos mantém bichos da terra suspensos
numa chama toldada que só «a mão do vento» poderá erguer. Poderá?
Porque manda quem pode e obedece quem deve, e toda a gente
sabe que é sempre o povo quem deve, o povo todo, não vale a pena o povo
lamentar-se (nem lamentar-se o povo), nem esmorecer, nem deprimir, mas dar-se
por feliz por ter um país em crise. Um país em crise que pode finalmente
desobrigar-se de subsídios de férias e de subsídios de Natal, benefícios
completamente desajustados de um calendário de doze meses. Se alguém quisesse
que o ano civil tivesse catorze meses a sério teria inventado mais dois nomes a
sério para os excedentes, o que não foi o caso. Sempre aprendemos em casa e na
escola que o ano vai de Janeiro a Dezembro, e ponto final.
Só que quem pode parece não querer poder a valer, que isto
no meu humilde entendimento ou se faz tudo a eito ou fica um travo na boca que
arrelia. Bem sei que quem manda não precisa de sugestões alheias, mas não seria
mais sensato acabar-se igualmente com as férias e o Natal? É que a fazer fé (e
em questões de fé até nem somos maus) no ditado de que quem não tem dinheiro
não tem vícios, de uma assentada se abatia mais dois coelhos, e com singeleza
se limpava do mapa as férias, agora desnecessárias, e se mandava o Natal de
Dezembro às urtigas. De resto, já quase ninguém dá valor às prendas avaras das
lojas dos trezentos, isto por um lado, e por outro, que piada tem haver Natal
sem iluminação nas ruas ou Natal com bolos-reis sem brinde?
É claro que o povo, o povo todo, é capaz de demorar algum
tempo a habituar-se à ideia, e até é capaz de ficar um bocadinho apardalado,
mas a crise também não tem pressa e as tristezas, como é público, nunca pagaram
dívidas, muito menos as nossas.
Por falar em apardalado, deixo-me levar nas asas do
adjectivo para o quintal e para a quinta e para os campos próximos da minha
infância onde, com uma atiradeira (uma fisga, para os putos da cidade), o meu
irmão e eu caçávamos uns pardais-ladrões que depois, com a cumplicidade da
minha avó, assávamos na lareira ou fritávamos no fogão a gás em momentos de
gula e de festa.
Saliente-se, em abono da verdade, que na altura não havia
dois copos de vinho tinto a acompanhar. Como agora não há, que me mantenho
abstémio, mas é como se.
1 comentário:
Andamos apardalados, porquê? Os pardais que eu conheço são muito mais manhosos do que os coelhos.
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