quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Ficcionar o tempo que vivemos


De um jornal («Negócios»), perguntaram-me como ficcionaria, de forma breve, o momento que estamos a viver. Coloco abaixo a explicação que dei (trabalho do jornalista Filipe Pacheco, aqui).

Este é um tempo de grandes dificuldades, mas é mais do que isso: é um tempo que está cheio de gente perigosa. As dificuldades poderiam servir, aqui, na ficção, para vários registos, e não me espantaria que alguns autores escrevessem sobre elas, ou tendo-as como pano de fundo das suas histórias. Isso, aliás, num ou noutro caso, já tem vindo a acontecer, inclusive com nomes consagrados. Se fosse ficcionar este tempo, talvez eu optasse pela parte da gente perigosa. Mais do que pela das dificuldades, que essa estranha gente ainda por cima se afadiga a fazer crescer. Provavelmente optaria por um romance policial, com bandidos do género dos que aparecem nos romances de Robert Wilson, maldosos, nalguns casos particularmente cruéis, para quem as outras pessoas não valem absolutamente nada. Lembro-me de um bandido, da zona de Sevilha, cuja arma preferida era uma motosserra, curiosamente a mesma que aparece numa imagem de bandidos que circula na Internet com a cara de membros do governo; um deles tem uma motosserra, já os outros aparecem com armas diferentes, uma matraca, uma catana, um martelo, uma navalha, uma pistola e por aí adiante. Noutra altura talvez uma imagem assim me chocasse um pouco, mas agora, com o que nos tem aparecido por cá, nem por isso. Os bandidos daquela imagem parecem-me reais, verdadeiramente mal-intencionados, uns com ar ameaçador, outros com uns sorrisinhos de plástico, outros ainda não se percebe bem com que ar, mas de certeza que não estão a magicar nada de bom.
Eu teria no entanto de tomar em conta, ao ficcionar este tempo, um aspecto que tem sido importante na minha escrita. Grande parte das histórias passam-se no campo, e algumas delas têm mais animais do que gente. Há um livro, por exemplo, em que entram animais, quase todos inofensivos: um lagarto, uma borboleta, um ouriço-cacheiro, um texugo ou uma gineta (gato bravo), por exemplo. São esses e outros animais os protagonistas, a par de um menino de seis ou sete anos. Se estivesse escrever o livro agora, não sei se não me sentiria tentado a colocar um ou outro animal mais perigoso. Uma víbora, sobretudo uma da uma espécie a que chamam cornuda, particularmente letal. Ou um escorpião, animal que nos meus tempos de criança, no Algarve, me habituei a ouvir ser chamado de alclara. As víboras cornudas e o veneno das suas dentadas, e as alclaras das picadas capazes de causar uma dor de vinte e quatro horas – dois autênticos perigos.
Quando estou por Lisboa uso sapatos, mas quando fico a trabalhar por casa costumo andar de chinelos, os mesmos que uso pelos campos aqui das redondezas. Às vezes penso no perigo das víboras e das alclaras – penso sobretudo no das víboras. Talvez devesse usar chinelos em Lisboa e sapatos aqui pelos campos. Mas não, faço ao contrário. Há aqui um muro imenso, muito antigo, que aos pouco tenho vindo a libertar das silvas; e a arranjar, porque muitas das pedras foram caindo. Deve ter mais de cem anos, como muitas das árvores que rodeia. As silvas rasgam-me a pele, mesmo que use umas luvas e troque a T-shirt por uma camisa de manga comprida. Por isso regresso inevitavelmente do muro como se tivesse estado a participar numa luta de gatos. Mas isso não é o pior, não passa dos arranhões nos braços, nas mãos e às vezes no rosto. O pior é que debaixo de uma pedra pode de repente aparecer uma víbora, quem sabe se das cornudas. Ou uma alclara, que agora ouço sempre tratar por escorpião. Enfim, antes um escorpião do que uma víbora… De certeza que por este trabalho no muro um dia hei-de ter uma víbora cornuda nas minhas histórias. Mas nem seria preciso esse trabalho. O tempo que viemos também me faz pensar nas víboras. Até na cidade.

1 comentário:

António Souto disse...

Real e duplamente fantástico!