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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Uma história

Maradona esteve brilhante


Chamemos-lhe, por exemplo, Gabriel García Márquez. Ou antes, chamemos-lhe Diego Armando Maradona, que provavelmente ainda é mais conhecido do que o escritor colombiano. É uma das personagens desta história, que aconteceu há alguns anos, em Portugal, durante o primeiro aniversário de uma livraria. Maradona – talvez devesse chamar-lhe García Márquez, já nem sei – estava convidado.
Foi no primeiro aniversário de uma livraria, durante um leilão de livros em que eu próprio dei ajuda. Fiz sugestões para a preparação do programa e também forneci alguns contactos, além, obviamente, de carregar umas boas caixas de livros. Um dia, na preparação da festa, tinha surgido a ideia de fazer o leilão. A ideia foi-se desenvolvendo e então tomou-se à decisão de o leilão ser de livros de viagens, com os próprios autores dos livros escolhidos a marcarem presença. Tudo iria acontecer no largo da câmara, junto à entrada da livraria, e esperava-se que acorressem umas centenas de pessoas.
Muitos dos escritores convidados aceitaram, e entre eles havia gente conhecida, como José Eduardo Agualusa, Miguel Sousa Tavares, Clara Pinto Correia, Robyn Davidson, José Megre, Manuel João Ramos, Miguelanxo Prado ou José Manuel Fajardo. Cada um teria um livro para ser leiloado, depois de dizer algumas palavras, como complemento do texto ou da ilustração que pelo próprio punho teria colocado numa das páginas em branco.
Claro que para fazer o leilão tinha de ser convidada uma pessoa importante, conhecida no meio, digamos assim, literário. Foi então que surgiu a ideia de convidar o tal Gabriel García Márquez de cá, ou antes, o tal Diego Armando Maradona, ou Mário Vargas Llosa, ou Eusébio da Silva Ferreira, enfim, o que se queira. Talvez Maradona seja o melhor. E foi mesmo convidado. As pessoas da livraria achavam que ele não ia aceitar, mas a verdade é que aceitou.
Cá o nosso Maradona aceitou. Bom, lá chegou o dia do aniversário, com várias iniciativas, até que ao fim da tarde ia começar o leilão. Os escritores que tinha confirmado a presença estavam todos, e tinham devolvido os livros com o texto, o desenho e o autógrafo. Os que só se tinham comprometido a devolver o livro também tinham cumprido. O largo da câmara estava cheio, confirmava-se mesmo a presença de centenas de pessoas. Eu tinha carregado muitas caixas de livros. Tudo corria bem, tirando o caso de Diego Armando Maradona. Não estava presente. Nem ia estar, apesar de ter o nome no programa, confirmado e reconfirmado. Tinha telefonado a dizer que um problema de última hora o impedia.
E então, para fazer o leilão, de repente as pessoas da livraria lembraram-se de mim. Foi desta forma que eu me vi no meio dos escritores, com um pequeno martelo para assinalar cada arrematação. Lembro-me de que havia um Benfica – Porto ao mesmo tempo e que dava na televisão. Se fosse o Sporting a jogar seria uma catástrofe, pensei, mas assim… Curiosamente, o jogo não tinha desmobilizado a assistência. Ainda pensei que poderiam ter vindo pelo Maradona, e depois pensei que ele próprio, o nosso Maradona, era capaz de estar ausente por causa do jogo. Daquele ou de outro qualquer.
Acho que fui escolhido por também ser escritor, embora os convidados fossem dos conhecidos e eu não. Lá me apresentaram, a dizer que era o substituto do leiloeiro Diego Armando Maradona, que também tinha publicado livros e essas coisas. Aí notei que pouca gente da assistência se importou, o que me levou a pensar que estavam mesmo interessados nos autores e nos livros a leilão. Confirmei-o depois, com os valores obtidos em cada martelada.
Lembro-me de que guardei os apontamentos que ia tomando, por isso posso ainda confirmar os valores. Estávamos nos últimos tempos do escudo. O livro de José Eduardo Agualusa, «Um Estranho em Goa», por exemplo, com o preço base de três mil e quinhentos escudos, foi vendido por vinte mil. O de José Manuel Fajardo, «Terra Prometida», que partiu de quatro mil e quinhentos, chegou aos vinte e um mil, o de José Megre, «Trinta Anos de Viagens», com uma base de sete mil e quinhentos escudos, atingiu vinte e cinco mil. Miguel Sousa Tavares (as crónicas de «Sul») ficou-se pelos dez mil, mas Manuel João Ramos («Histórias Etíopes») chegou aos doze e Miguelanxo Prado («Carta de Lisboa») aos quinze. Robyn Davidson («Lugares Desertos») chegou a dez mil e quinhentos escudos e Clara Pinto Correia atingiu os sete mil («The Big Easy»). Pelo meio, ainda foi leiloado um CD com músicas de Lula Pena, uma cantora portuguesa na altura radicada no Luxemburgo, que ia actuar a seguir. Ela não conseguiu conter o espanto quando viu o CD chegar a dezasseis mil e quinhentos escudos. E também foi leiloada uma foto do fotógrafo Vasco Cunha Monteiro, integrada numa exposição sobre uma viagem à Patagónia que estava patente na livraria (e o que é certo é que a foto chegou aos cinquenta e dois mil escudos). 
Tudo isto, principalmente para quem anda pelo mundo dos livros, parece muito dinheiro. Ainda por cima tratando-se de autores vivos e parte deles presentes no leilão e a fazerem intervenções. Foi uma surpresa para mim. E também para os autores participantes. José Eduardo Agualusa, antes de regressar ao hotel onde devia descansar um pouco para depois apanhar o avião de regresso a Berlim, onde então estava a viver, veio ter comigo e disse-me: «Pá, tu és mesmo bom!» Por momentos pensei que ele tinha algum dos meus livros e que se calhar andava com ideias de cravar-me um autógrafo, mas logo percebi o que ele queria dizer, ao ouvi-lo falar de novo: «Pá, tu vendeste um livro meu por vinte contos, um livro que nem chega aos três nas livrarias! Tu és mesmo bom!»
Ou seja, o leilão foi um sucesso. As pessoas quiseram falar com os escritores, e eu, com quem ninguém parecia querer falar, afastei-me da mesa e fui ver se era preciso ajudar nalguma coisa, talvez carregar umas caixas de livros se as pessoas já tivessem esgotado os das mesas onde iam fazendo as vendas – de livros, de comidas e de bebidas.
Passados uns dias, saiu no jornal da terra um trabalho sobre a festa. O leilão era o grande destaque. Fui logo ler o texto. Falava-se do projecto da livraria, mas sobretudo dos escritores, dos livros a leilão e dos valores atingidos (trocando alguns em relação ao que eu tinha colocado nos meus apontamentos). A meio da leitura, tive a esperança de que falassem de mim, que tinha sido apresentado para fazer o leilão em vez do grande Maradona. Mas nada. Fui avançando no texto, e nada, mesmo nada. Só a livraria, os livros, os escritores, e até a enorme assistência que tinha enchido o largo da câmara. Tentei colocar-me no meu lugar, pensando até que se falassem de mim como leiloeiro também poderiam dizer das minhas andanças a carregar caixas de livros. E também a dar uma ajuda na zona das mesas de venda de livros, de comidas e de bebidas. Ou seja, eu não tinha que estar a pensar aquelas coisas. Por isso avancei no texto. Mais pormenores dos escritores presentes, com alguma insistência em José Eduardo Agualusa e José Manuel Fajardo. Bem merecida, pelo menos era o que eu pensava. Gostava muito dos livros deles, e inclusive no leilão tinha falado um pouco de cada livro – «Um Estranho em Goa», que tinha lido num Verão, no Algarve, na praia, e a viagem escrita pelo espanhol, que tinha acabado uns tempos antes, depois de ter lido outro livro dele, pequenino, chamado «Carta do Fim do Mundo». De outros escritores no leilão eu também conhecia os livros, e por isso tinha falado deles, e nos casos em que não conhecia por aí além tinha-me refugiado em considerações mais genéricas, inclusive sobre o respectivo autor.
Eu pensava nisto a ler o texto do jornal, aproximava-me do fim e já me tinha esquecido do desejo de ver lá o meu nome a dizer que tinha sido o leiloeiro, ou se quisesse uma linguagem mais elaborada a dizer que tinha tido a meu cargo o leilão dos livros. Mas nada.
Até que a duas linhas do fim, de repente, um parágrafo acabava. E depois, a abrir o último, pequenino, dei com uma frase que me captou ainda mais a atenção. Comecei a ler devagar, tentando apanhar bem cada palavra: «Conduziu – o – leilão – de – forma – brilhante…» Por momentos pensei que mais do que aqueles escritores famosos, uns pelo facto de serem escritores, outros pelo facto de serem famosos de outras coisas e também terem escrito livros, por momentos pensei que no meio deles eu ia ser o grande destaque. Pensei que ia receber, talvez, o maior elogio da festa do primeiro aniversário da livraria. Em vez de avançar até ao fim da frase, decidi recuar, para lê-la toda de seguida, sem pausas. Voltei ao início do pequeno parágrafo e li: «Conduziu o leilão, de forma brilhante…» Já ia lançado a dizer o meu nome, mas não. No jornal o que escreviam era que quem tinha conduzido o leilão de forma brilhante tinha sido, já se vê, Diego Armando Maradona. O nosso Maradona. Como aliás vinha no programa.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A figueira

À entrada da década de 1980, as notícias dos grandes duelos mundiais de xadrez traziam quase sempre dois nomes associados, Anatoli Karpov e Victor Kortchnoi. Era à volta destes dois mestres soviéticos que tudo parecia girar. Mas um outro nome começava a emergir, também russo, parecido com Karpov mas mais comprido. Garry Kasparov, nascido em 1963 em Baku, capital do actual Arzebaijão (então uma das repúblicas da União Soviética), já se tornara notado no mundo do xadrez. Corajoso, irreverente, agressivo e perfeccionista, Kasparov desafiou Karpov, o campeão mundial, em 1984. A partida durou seis meses, tornando-se a mais longa na história do xadrez. Foi parada pelo presidente da federação internacional da modalidade, que ordenou que se disputasse uma nova partida. Em Novembro de 1985, Kasparov ganhou o denominado rematch contra Karpov e tornou-se campeão mundial. Tinha 22 anos e era o jogador mais novo a consegui-lo.
Passados mais de 20 anos, assisti a uma conferência de Kasparov, no Estoril. Pareceu-me com a mesma coragem, a mesma irreverência, até a mesma agressividade (sobretudo em relação a alguma coisa ou a alguém que a pudesse justificar; por exemplo, Vladimir Putin). Vi-o a falar para quadros de empresas, a falar de estratégias, de tácticas, de inovação, de tudo o que rodeia a tomada de decisão numa organização. Sem perder de vista o xadrez e os seus exemplos para o mundo da gestão, não se esqueceu da sua condição de activista político, comprometido, empenhado em que o seu país conhecesse uma mudança capaz de fazer com que por lá se pudesse respirar plenamente os ares da democracia. E também falou de gurus da gestão, como Peter Drucker; de empreendedores, como Elisha Graves Otis ou William Edward Boeing; e de Thomas Edison, de Winston Churchill, do inevitável Sun Tzu, de nomes grandes do xadrez, de John F. Kennedy e inclusive de Cristóvão Colombo.
Até que na parte final, com alguma surpresa, pelo menos para mim, falou de cinco portugueses. Cinco figuras de épocas tão diferentes como a dos descobrimentos, a da criminosa ditadura salazarista ou a actualidade. Considerou-os a todos notáveis: dois navegadores, Gil Eanes e Vasco da Gama; um militar que se destacou sobretudo como político, Humberto Delgado; um futebolista, Eusébio; e um escritor, José Saramago. O que recordo mais foi o que disse do Nobel português, para ilustrar um dos tópicos que abordou, o da inovação. Não o fez pela opção única de Saramago escrever com uma pontuação bem peculiar, marcada sobretudo pela frugalidade, que permite uma leitura ao ritmo da própria respiração. Fê-lo por algo que para ele também é propício à inovação, à capacidade de inovar: as dificuldades da vida, principalmente aquelas que são experimentadas em criança. Para isso, Kasparov recorreu mesmo a uma frase de Saramago: «As crianças crescem melhor à sombra do que ao sol.» Naquela altura, ouvindo o homem de Baku, lembrei-me de uma outra sombra, absolutamente fantástica, do criador de «Memorial do Convento», a de uma figueira junto da qual, nas tardes de Verão, o rapazito Saramago se deitava muitas vezes, para se proteger do calor. Lembrei-me disso. A mesma figueira que depois, a cada noite, o voltava a acolher; a ele, o rapazito Saramago, que embalado pelas histórias do avô via as estrelas por entre os ramos. Como escreve no discurso de Estocolmo… «No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…»
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sábado, 3 de janeiro de 2009

O dia em que eu nasci

Publiquei esta história em tempos aqui; chama-se «Pelo fim da manhã».
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Foi pelo fim da manhã; uma manhã de Fevereiro de 1968, enquanto decorria mais uma reunião do executivo da câmara, em Monchique. Vivia-se o tempo pachorrento do costume, numa terra oficialmente despreocupada com as guerras de África, salvo nas casas de quem nessas guerras tinha alguém. Por muitas que fossem, as casas, nelas sofria-se em silêncio com os tormentos da incerteza. A bem, ao que se dizia, da nação. Pouco antes do meio-dia, ainda com vários assuntos por discutir, alguém interrompeu a reunião e chamou o presidente de parte. Sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido, posto o que ele voltou para o lugar, mas só para avisar de que tinha de ir rapidamente para o hospital. Voltaria assim que pudesse, mas o mais certo era só se despachar depois do almoço.
Da câmara ao hospital a distância não era muita, cerca de um quilómetro. Dificilmente poderia ser mais, numa pequena vila de província do estado novo português, bem no interior do Algarve. Um estado com um ditador velho, sempre pacóvio, maldoso, cínico e decadente, ainda que longe de imaginar que mais mês menos mês haveria de se estampar com a própria cadeira. Acabou por acontecer em Setembro, de noite. Transportado numa limusina negra, pelo meio do trânsito desordenado de Lisboa, foi mandado parar pelo sinaleiro no Cais do Sodré. Ao lado do condutor ia um detestável figurão chamado Fernando Eduardo da Silva Pais, o director da PIDE, a polícia política do regime. Assim que o viu, o sinaleiro pareceu ficar sem voz.
– Avance! Avance! – terá ordenado Silva Pais.
E o motorista conduziu a alta velocidade para o Hospital de S. José, o primeiro poiso do estampado Salazar antes da convalescença na clínica da Cruz Vermelha, em Benfica. Haveria de morrer dois anos depois, pensando que continuava como presidente do conselho.
Em Monchique, a caminho do hospital onde ia nascer mais um bebé, naquele final de manhã de Fevereiro de 1968, o presidente da câmara também conduzia depressa. Mas ninguém lhe fez sinal para parar. Ia num Fiat, um carro dele, não do Estado, que ser presidente de câmara, nomeado pelo governador civil, ainda não dava para grandes luxos. Talvez alguns anos depois… O presidente ganhava a vida como médico, de manhã quase sempre no hospital, onde era o director, e à tarde em casa a dar consultas particulares. A presidência da câmara tinha-lhe sido entregue por se tratar de uma das figuras mais prestigiadas da terra.
Quando chegou ao hospital, estava na hora para o parto. Era para isso que o tinham chamado. Pouco passava do meio-dia. A mulher tinha chegado na noite anterior, indo logo para o quarto onde funcionava a maternidade. Ainda haveria de ficar mais três ou quatro dias no hospital, mas já num dos quartos particulares. O presidente da câmara por pouco não chegava a tempo, mas ainda fez o parto, com as enfermeiras a assistirem. Tudo acabou em bem por volta do meio-dia e meia e o presidente da câmara pôde ir dizer ao homem que aguardava à porta que tinha mais um menino. Só já depois da uma é que deixou o hospital.
Até essa altura, o presidente da câmara ficou a acompanhar o trabalho das enfermeiras com o bebé. Não sabia bem se ainda se justificava passar pela câmara, para a continuação da reunião do executivo. Os outros elementos, provavelmente, tinham aproveitado para almoçar. Se continuassem da parte da tarde e despachassem as coisas cedo, ainda poderia ir para casa a tempo de atender alguns doentes. Aquele parto tinha-lhe complicado a agenda, assim como as dos colegas na câmara. Mas no pachorrento tempo de 1968, ainda por cima na serra algarvia, a velocidade da vida não era muita. Tudo haveria de se arranjar.
O presidente da câmara, mesmo sem saber bem o que fazer, não dava mostras de estar preocupado. E o recém-nascido, no quarto, também não. Haveriam de passar muitos anos até ele começar a perceber certas coisas.
Terá sido algum bebé importante? Para originar tanta labuta, seria bem possível. Mas não. Pelo fim daquela manhã de Fevereiro de 1968, no hospital de Monchique, nasceu um bebé que depois haveria de ser registado com o nome de António. Era eu. Apenas eu.
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quarta-feira, 25 de junho de 2008

Mais animais…

Ainda mais um bocadinho do meu livro de histórias «Políticos, Esses Animais».

(…)
Num certo dia europeu sem carros, um responsável público bem colocado – colocado mesmo no sentido de ter sido colocado, entenda-se –, nesse dia, o tal responsável fez o habitual percurso entre a residência e a instituição que superiormente dirigia a pé. Quer dizer, pela opção de não carregar ainda mais nas vírgulas na frase anterior, importa clarificar as coisas, o senhor não dirigia a instituição a pé, embora também não a dirigisse exactamente de pé, pois geralmente até se apresentava um pouco curvado; ainda que, considerando que as grandes decisões vêm sempre de patamares mais arejados do que o seu (seu dele, responsável), não fosse difícil justificar tal deficiência, mesmo sem recorrer a um médico conhecido ou até assíduo frequentador da casa. O que o senhor fez a pé, ou melhor, fez a pé naquele dia europeu sem carros, foi o percurso da residência até ao gabinete. Colaborou, ou melhor, aderiu, sem que isso signifique que foi preciso desdobrar-se (o mais correcto, no caso dele, até seria dizer dobrar-se, coisa que implica menores esforços) em planeamentos, mobilizações e comunicados justificativos.
Bom, o que é certo é que o senhor aderiu ao dia sem carros por essas europas – e por estas do oeste, já agora – e lá se pôs a andar a pé. Aliás, por morar e «trabalhar» em zona interdita a automóveis (não dos oficiais, como o seu, mas usá-lo no referido dia seria provocação a mais para o povo), por causa disso teve mesmo que ser. De nada serviu a vantagem de não morar nos arrabaldes, onde, com dia sem trânsito ou não no centro da cidade, circular seria um teste complicado para o sistema nervoso, e também para o sistema de embraiagem da nova viatura – ainda que com a pertença ao Estado o arranjo só aos respectivos serviços interessasse, e mesmo isso com tendência para desaparecer, com as novas modas de agilização e, sobretudo, «desburrocatrização». E então o senhor bem colocado na hierarquia lá se meteu a fazer o percurso a pé, a palmilhar ruas e avenidas, para cima e para baixo, dado que logo por azar a cidade capital assenta em sete colinas. Às onze da manhã, quase uma hora depois de sair da residência, já transpirava por tudo quanto era poro. Poderia ter usado os transportes públicos – o metropolitano, os autocarros ou algum eléctrico dos dos turistas –, mas e depois, o que é que diriam de um quadro dirigente tão superior, ainda por cima da administração pública, a fazer aquelas figuras? Se fosse um ministro, vá que não vá, o sacrifício seria compensado com as câmaras das televisões a segui-lo por entre apertos, encontrões e amparos de assessores, e com as secretárias sempre atentas para as maquilhações (que não maquinações, que isso é coisa mais para as oposições). Agora ele, apenas dirigente, ou responsável, mesmo que superior, rodeado de povo por todos os lados, e sem ser em época de eleições, aquela em que o apoio a quem o nomeou fica sempre bem e até se recomenda… Fora disso, o mínimo que poderiam dizer era que se tratava de um sacrilégio.
(…)
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terça-feira, 24 de junho de 2008

Esses animais...

Um bocadinho do meu livro de histórias «Políticos, Esses Animais».

(...)
Uma vez, ainda nos primeiros tempos, fui mais cedo jantar, por isso demorei-me a fazer o percurso pela rua fora. Para minha grande surpresa, mais uma, cruzei-me com um político conhecido, António Guterres. Nessa altura ele não me parecia o tipo sorridente e bem-falante que acabaria por ser depois como primeiro-ministro. O que eu via na televisão, mesmo sendo a televisão de 1986, era um deputado em permanente guerra com tudo e com todos, quase ameaçando cuspir fogo pela boca a cada três palavras. Era a imagem que eu tinha de Guterres e que facilmente teria quem lhe visse as actuações em S. Bento. Nesse fim de tarde, porém, ao cruzar-me com ele, a caminho do jantar na cantina dos gatos, não me pareceu que fosse capaz de lançar chamas a partir das goelas. Caminhava pela rua fora, com passada curta e pachorrenta, provavelmente na direcção da sede do partido. Ia todo metido consigo próprio, com um sorrisinho mal disfarçado por baixo do bigode que ainda teimava em usar. Fiquei um bocado a pensar no que teria dado origem a tão grande metamorfose, mas depois disse para comigo que as coisas eram mesmo assim e apressei o passo em direcção à cantina, não fosse algum dos gatos ficar-me com o jantar.
(...)
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sexta-feira, 6 de junho de 2008

Dezasseis bocadinhos

Coloquei aqui onze bocadinhos de um dos dois livros de histórias que acabei de escrever (um bocadinho por cada história). Faço agora o mesmo para o segundo livro (dezasseis histórias).
1. Já o «pára-quedista», o «prestidigitador», a «amélia» e o «tachista», por exemplo, não costumam requerer acompanhamento, assim como estranhamente não o tiveram «barata tonta», «mosca morta», «picareta falante» e «adiantado mental». Pelo contrário, «deserdado», «dependente» e «desempregado» tiveram («deserdado da política», «político-dependente», «desempregado da política»). E «boy» não teve, ao contrário do que julgo deveria acontecer com «boi», como adiante referirei.
2. Ao lado do condutor ia um detestável figurão chamado Fernando Eduardo da Silva Pais, o director da PIDE, a polícia política do regime. Assim que o viu, o sinaleiro pareceu ficar sem voz. «Avance! Avance!», terá ordenado Silva Pais.
3. Um amigo meu, antigo Capitão de Abril e na altura da conferência a trabalhar como gestor numa grande empresa portuguesa, comentava comigo uns dias depois: «Aquele tipo, ministro ainda por cima, é o que lá na minha terra, ao pé de Leiria, se costuma chamar um burgesso!»
4. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
5. E ao mesmo tempo deu uma palmada no ombro da estrela, palmada essa também de concordância, sem saber que ia atingi-la precisamente no ponto mais fraco. Foi assim que o Júlio Isidro levantou voo.
6. A verdade é que o tal homem, o charlatão, jurou fazer do burro um brilhante orador, mas só ao fim de dez anos de aturados exercícios e também de alguma teoria, que fica sempre bem nos conteúdos programáticos, nem que seja só para fazer vista perante o rei.
7. Era o Mário Soares e eu por pouco não o atropelava, embora me tenha parecido que nem ele nem a rapariga se aperceberam da situação. Depois da pequena travagem que tive de fazer, meti a primeira e conduzi apressadamente até casa, porque ia dar um jogo do Sporting na televisão.
8. Nos meus tempos finais da faculdade, houve uma ocasião em que estive quase a receber um prémio das mãos de um secretário de Estado; calhou-me logo o Santana Lopes.
9. Quem vê o Drácula a conduzir as coisas daquela maneira, não pode deixar de se lembrar de figuras como Júlia Pinheiro, Jorge Gabriel, Herman José e outros que a seguir foram surgindo nos ecrãs das televisões portuguesas.
10. Entretanto as coisas evoluíram, com os fantasmas, principalmente o do gato bravo, a tornarem-se atracções turísticas (coisa que a autarquia encorajava).
11. «Lúcio!!», gritou a professora. «Faz-me um retrato físico e psicológico do gigante Adamastor!!» Eu pensei logo que ia haver confusão.
12. O assunto foi a discussão durante uma boa meia hora, e acabou por realizar-se mesmo uma nova votação. Aí, Saramago ficou a ver navios.
13. Disse, claro que disse, mas apesar dos meus esforços não consegui convencer o professor Carvalho Rodrigues da genuinidade da tasca do balde da serradura. Nem a ele, nem a uma pessoa que acabou por apanhar a conversa a meio. Essa pessoa até me disse que aquilo do «pitroil» não era por causa de estar escrito como se calhar a dona da tasca dizia, mas antes por causa da palavra inglesa «oil», que o mais certo era estar escrita no depósito do camião que fazia a entrega do petróleo.
14. Eu conhecia-o de vê-lo na televisão. Era um actor, ainda por cima um que ultimamente andava a aparecer nalgumas séries e em telenovelas. Como é que eu não me tinha lembrado antes? «É teu vizinho?», perguntei ao dono do Farrusco, que continuava entretido a segurar na trela, enquanto os dois animais se divertiam. Ele respondeu-me secamente, sem sequer olhar para mim. «Mora aí.»
15. «Você, que eu ouvi já só na parte final a falar tão apaixonadamente da língua portuguesa e da língua castelhana, diga-me, de que país é?» Respondi-lhe que era de Portugal. «Hum!... É de Portugal...», pareceu ela estranhar. E eu confirmei: «Sim, sou de cá.»
16. Também a opção pelo cavalo não haveria de ser a melhor e o popularucho burro na volta ainda propiciava anedotas e até escárnios (além dos sempre inconvenientes zurros), apesar de ele próprio, o senhor, não o burro, já em tempos ter dado o seu aplauso a uma entrada na cidade de um burro em competição com um Ferrari.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Onze bocadinhos

Terminei recentemente dois livros de histórias. Coloco a seguir onze bocadinhos de um deles (um bocadinho por cada história).
1. A moderadora, uma escritora mais velha do que nós e com ar entediado, a certa altura tinha-se lembrado de perguntar aos «escritores para o futuro» se se imaginavam, nesse futuro, a escrever os próprios livros em inglês.
2.
Poderia ter-me lembrado de Américo Tomás, o almirante que na ditadura lambia as botas a Salazar e depois também um bocado a Marcello Caetano, ou do arquitecto Tomás Taveira, ou talvez até de São Tomás de Aquino, mas não, lembrei-me do velho livro.
3.
Durante um debate numa sala de um hotel da Avenida da Liberdade, em Lisboa, o jurista Fernando Seara, bem conhecido nos meios desportivos, afirmou que a questão do novo treinador do Sporting, que parecia envolta em grandes mistérios, afinal não tinha nada de misterioso.
4.
Onde é que já se tinha visto uma coisa assim, um barrete verde, vermelho e amarelo e com o escudo nacional com as cinco chagas de Cristo numa pessoa de fato e gravata, ainda por cima ministro da nação?
5.
Mas na manhã do jogo, como que esquecendo-me do que anos antes tinha acontecido, levado por um estranho instinto de imitação, fiz asneira. Comprei um cachecol.
6. A ele tudo parecia tolerar-se; afinal, Cadete era «o capitão Jorge Cadete», não era nem o Capitão América, nem o Capitão Nemo, nem o Capitão Tormenta, nem sequer o Capitão Roby. Era o ponta-de-lança da equipa, ainda por cima bem diferente de um qualquer tony-sealy
inglês, ou até do polaco Juskowiak, a que muitos preferiam chamar Juskofiasco.
7.
Terá sido Guterres que deu azar ao Sporting? Ou terá sido o Sporting, e quem sabe até o próprio Real Madrid, terão sido os dois clubes a dar azar a Guterres? A verdade é que nunca cheguei a uma conclusão.
8.
Devia ser nalguma cave, foi o que pensei, ou então nalgum descampado urbano onde a rede não chegasse. Quem sabe poderia haver ali no meio do casario a cair uma planície municipal à espera de alguém, eventualmente de Braga, que lhe pusesse as unhas sem o vereador Sá Fernandes dar por isso…
9.
Por exemplo, o daquele jornalista que arranjou gravações de um seleccionador nacional de futebol a dizer com a maior das naturalidades que o que era preciso era matar dois ou três fulanos.
10.
Fui ouvindo o que ele contava, as histórias de Madjer, umas que eu conhecia, outras que nem imaginava, até que a certa altura não me contive e interrompi-o.
11. Haveria de ser uma bela cerimónia, a da entrega do Grande Prémio do Romance e da Novela ao futebol português, de certeza representado ainda por Gilberto Madail...