sábado, 3 de janeiro de 2009

O dia em que eu nasci

Publiquei esta história em tempos aqui; chama-se «Pelo fim da manhã».
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Foi pelo fim da manhã; uma manhã de Fevereiro de 1968, enquanto decorria mais uma reunião do executivo da câmara, em Monchique. Vivia-se o tempo pachorrento do costume, numa terra oficialmente despreocupada com as guerras de África, salvo nas casas de quem nessas guerras tinha alguém. Por muitas que fossem, as casas, nelas sofria-se em silêncio com os tormentos da incerteza. A bem, ao que se dizia, da nação. Pouco antes do meio-dia, ainda com vários assuntos por discutir, alguém interrompeu a reunião e chamou o presidente de parte. Sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido, posto o que ele voltou para o lugar, mas só para avisar de que tinha de ir rapidamente para o hospital. Voltaria assim que pudesse, mas o mais certo era só se despachar depois do almoço.
Da câmara ao hospital a distância não era muita, cerca de um quilómetro. Dificilmente poderia ser mais, numa pequena vila de província do estado novo português, bem no interior do Algarve. Um estado com um ditador velho, sempre pacóvio, maldoso, cínico e decadente, ainda que longe de imaginar que mais mês menos mês haveria de se estampar com a própria cadeira. Acabou por acontecer em Setembro, de noite. Transportado numa limusina negra, pelo meio do trânsito desordenado de Lisboa, foi mandado parar pelo sinaleiro no Cais do Sodré. Ao lado do condutor ia um detestável figurão chamado Fernando Eduardo da Silva Pais, o director da PIDE, a polícia política do regime. Assim que o viu, o sinaleiro pareceu ficar sem voz.
– Avance! Avance! – terá ordenado Silva Pais.
E o motorista conduziu a alta velocidade para o Hospital de S. José, o primeiro poiso do estampado Salazar antes da convalescença na clínica da Cruz Vermelha, em Benfica. Haveria de morrer dois anos depois, pensando que continuava como presidente do conselho.
Em Monchique, a caminho do hospital onde ia nascer mais um bebé, naquele final de manhã de Fevereiro de 1968, o presidente da câmara também conduzia depressa. Mas ninguém lhe fez sinal para parar. Ia num Fiat, um carro dele, não do Estado, que ser presidente de câmara, nomeado pelo governador civil, ainda não dava para grandes luxos. Talvez alguns anos depois… O presidente ganhava a vida como médico, de manhã quase sempre no hospital, onde era o director, e à tarde em casa a dar consultas particulares. A presidência da câmara tinha-lhe sido entregue por se tratar de uma das figuras mais prestigiadas da terra.
Quando chegou ao hospital, estava na hora para o parto. Era para isso que o tinham chamado. Pouco passava do meio-dia. A mulher tinha chegado na noite anterior, indo logo para o quarto onde funcionava a maternidade. Ainda haveria de ficar mais três ou quatro dias no hospital, mas já num dos quartos particulares. O presidente da câmara por pouco não chegava a tempo, mas ainda fez o parto, com as enfermeiras a assistirem. Tudo acabou em bem por volta do meio-dia e meia e o presidente da câmara pôde ir dizer ao homem que aguardava à porta que tinha mais um menino. Só já depois da uma é que deixou o hospital.
Até essa altura, o presidente da câmara ficou a acompanhar o trabalho das enfermeiras com o bebé. Não sabia bem se ainda se justificava passar pela câmara, para a continuação da reunião do executivo. Os outros elementos, provavelmente, tinham aproveitado para almoçar. Se continuassem da parte da tarde e despachassem as coisas cedo, ainda poderia ir para casa a tempo de atender alguns doentes. Aquele parto tinha-lhe complicado a agenda, assim como as dos colegas na câmara. Mas no pachorrento tempo de 1968, ainda por cima na serra algarvia, a velocidade da vida não era muita. Tudo haveria de se arranjar.
O presidente da câmara, mesmo sem saber bem o que fazer, não dava mostras de estar preocupado. E o recém-nascido, no quarto, também não. Haveriam de passar muitos anos até ele começar a perceber certas coisas.
Terá sido algum bebé importante? Para originar tanta labuta, seria bem possível. Mas não. Pelo fim daquela manhã de Fevereiro de 1968, no hospital de Monchique, nasceu um bebé que depois haveria de ser registado com o nome de António. Era eu. Apenas eu.
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2 comentários:

Sonhador disse...

Bonita história e com um final tão feliz. Ainda por cima verdadeira. Sinceramente gostei. Nesse tempo ainda havia o hospital em Monchique. Nos tempos mais recuados teria sido em casa com uma parteira improvisada. Hoje nem em casa nem no hospital de Monchique. Somente no hospital de Portimão ou a caminho do mesmo, na ambulância dos bombeiros.

Anónimo disse...

Que História Deliciosa !
Teresa