Refundam-se, portanto, todos os
programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os
relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias
e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida.
No refundar está a virtude
Os
portugueses têm experimentado, nos últimos meses, o pior de uma receita de
austeridade, um tratamento que, a avaliar pelos resultados, tem piorado a
doença e agravado o estado dos enfermos. Estamos doentes, estamos mal e
tendemos a estiolar.
A
solução está, por enquanto, em peregrinar. Da Praça de Espanha a Fátima,
passando pela Assembleia da República, que é onde mora a nação inteira,
marcha-se por causas, devoções e muita, muita fé. Protestos e luta com
intervenção musical e, à mistura, o soar de vozes e motes de Abril.
De
um enorme aumento de impostos, havido, passa-se para um aumento significativo
de impostos a haver. Maturidade, seriedade e competência saem como arrotos da
boca da governação. Culpa-se o estado social de viver acima das suas
possibilidades, constata-se inauditamente que os impostos dos contribuintes
estão abaixo do requerido, conclui-se por um ajustamento imprescindível dos
pratos da balança.
Bem
doutrinam entendidos de diferentes quadrantes para o perigo do desaire, bem
apostolam os ex-presidentes da república que da resignação à indignação vai um
curto passinho, ou que é chegada a hora de acabar com esta governança, ou que a
democracia pode rebentar, que nada, nada mesmo parece demover a brigada de
iluminados das suas convicções altruístas que a todo o custo teimam em levar à
letra, de forma desirmanada, os versos de Camões – «Não tornes por detrás, pois
é fraqueza/ Desistir-se da cousa começada». Só que a coisa começou torta, tem
crescido retorcida e exibe-se derreada.
E
assim, paulatinamente, regressamos da pior maneira às profundezas da nossa
civilização, como ao inferno, que é onde ardem já os gregos, como em ruínas. E
quando o impasse surge, nítido e incontestável, inventam-se eufemismos de rara
espécie e clama-se por «uma espécie de refundação». Ah, malditas palavras, que
tanto são uma coisa como são outra, que tanto são como não são… Se ao menos
isto fosse uma espécie de magazine para desenfado, mas não, isto é demasiado
sério para poder sequer ser entendido como rasgo de humor negro. E o presidente
que é, ninguém o sabe, embora ande por aí, facebookando, deixando que outros se
alvorocem e dêem sentido aos vazios.
«– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!/ Ó fraudulento gosto, que se atiça/ C'uma aura
popular, que honra se chama!/ Que castigo tamanho e que justiça/ Fazes no peito
vão que muito te ama!/ Que mortes, que perigos, que tormentas,/ Que crueldades
neles experimentas!» Outra vez Camões, mas daquele que poucos lêem. Porque se
todos o tivessem lido, e com ele aprendido os vícios acusados, não estaríamos
no estorvo em que estamos e sem porto à vista. Mas não, para muitos, nem no
tempo certo nem noutro qualquer se colheram ou colherão os ensinamentos
fundadores do ser-se. Do ser cidadão. Para muitos, definitivamente, nem com
programa de ajustamento em novas oportunidades.
Refundam-se, portanto, todos os
programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os
relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias
e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida.
Refunde-se tudo, porque
é na refundação que está doravante a virtude!
2 comentários:
Refundar é um ato violento. No fundo, o que o Governo deseja é violência, pois a História ensina que do caos jorra a luz!
"Refundar" será "voltar a fundar" ou "continuar a afundar"????
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