Sporting 1 (Carlos Paredes), Huelva 1, na apresentação da equipa (que já se tinha apresentado há uns dias, mas enfim...). Fiquei preocupado. O Benfica este ano dá a ideia de que não tem remédio (com Fernando Santos a continuar, também já era para ir desconfiando) e o Porto parece-me ainda com tudo muito confuso. Poderia ser uma boa oportunidade para o Sporting… Mas a equipa está como que adormecida e o que se ouve mais é lamentos pela saída de um jogador tão mau como Caneira (antes chorar a saída de Nani). Curiosamente, neste jogo, comentava-se que Polga tinha de estar sempre perto de Ronny, por este ser demasiado fraco a defender. Grande ajuda para Ronny (que sabe jogar futebol), a presença de Polga sempre disponível para alguma entrada à maluca ou para um pontapé no ar… Mas o melhor é esquecer Polga, porque de certeza que vai jogar sempre e ainda por cima como vedeta e sub-capitão (onde pode chegar a imaginação humana…). A ideia que fica é que este ano vai ter de ser a mesma equipa do ano passado a jogar, com algumas excepções, porque os reforços não parecem capazes de melhor. Ou seja, um deles para o lugar de Nani, um para o de Caneira (se não for Ronny), o que é um bênção, e outro para o de Ricardo (bênção número dois). Por guarda-redes, fiquei preocupado com aquela saída tresloucada de Rui Patrício que deu a grande penalidade ao Huelva (não sei se não me terei enganado quando na época passada mostrei esperanças de que estivesse ali um guarda-redes de futuro). E tive pena de ver Carlos Martins a defrontar o Sporting (talvez um líder a sério conseguisse tirar dele o grande futebol que já demonstrou). Últimas palavras para Liedson: é mesmo o grande jogador do Sporting.
segunda-feira, 30 de julho de 2007
Frases mal ditas - 6
«A democracia faz-se também e sobretudo da capacidade de dizer não, da capacidade de dizer não ao autoritarismo, a qualquer espécie de tentativa de controlo político-partidário sobre a administração pública, sobre a sociedade civil, sobre a comunicação social livre ou sobre a vida de cada um de nós.»
Augusto Santos Silva, ministro dos Assuntos Parlamentares, 29.07.07
Nota: A frase até poderia ser bem dita. Mas como levá-la a sério dita por esta personagem, perdão, por esta personalidade?
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domingo, 29 de julho de 2007
Os meus diálogos – 3
(…)
Nunca, durante anos a fio, a GNR conseguiu nada de jeito com a velha Luzia dos Engreneiros. Por mais que os guardas a chamassem à razão, por mais que tentassem fazer-lhe ver o caminho certo, ela nem lhes ligava. Ia com eles para o posto, sempre a lançar-lhes os esconjuros do costume, só que em menos de meia-dúzia de dias estava de volta e pronta para novos cometimentos. Até que eles se cansaram.
- Como é que a velha Luzia dos Engreneiros nunca transformou nenhum guarda num burro, isso é que eu nunca hei-de perceber.
- Olhe, se calhar até era um bem de caridade aqui para a gente.
- O quê?! Um guarda a menos?!
- Não, um burro a mais.
Os problemas começaram há muito tempo, quando a acusaram pela primeira vez de bruxarias. Eu ainda não era nascido nessa altura, e ela mesmo assim já era velha. Já andava de corpo curvado e toda vestida de preto, e também com o nariz postiço que trazia os óculos incluídos. Parece até que depois de lhe terem chegado as rugas maiores e os cabelos brancos se deixou ficar no mesmo estado de velhice, provavelmente à espera do fim do mundo que de vez em quando alguém se encarregava de lhe anunciar, mesmo sem citar a fonte. Tanto que não foi o passar dos anos que a impediu de dar a grande lição que deu ao Mau Serviço, nem a impede ainda agora de ir pescar para cima da rocha que fica perto da falésia de onde eu, carinho, consigo ver-te. Tão-pouco a impede de fazer frente ao fantasma do lagarto das Cimalhas, sempre que ele se mete a subir às árvores que nem um maluco só para caçar pássaros.
- Na altura em que a acusaram, menino, e mesmo depois, as coisas nunca ficaram lá muito claras. O meu pai, que é quem se lembra bem disso, conta que houve uma vizinha da velha Luzia dos Engreneiros que um dia disse que ela era bruxa.
- Disse por aí, ou apresentou queixa?
- As duas coisas, menino, as duas coisas. Disse a toda a gente e apresentou queixa no posto da GNR. Assim sem mais nem menos, queixou-se de que lhe tinha nascido um filho sem nariz. Para que não houvesse dúvidas, fez prova provada com o pobre bebé.
- Não me diga?!
- Digo! Digo! E o que é certo é que ninguém lhe tirava da ideia que a causa de tudo tinha sido uma infusão que a velha Luzia dos Engreneiros lhe tinha dado para evitar as dores de parto. Já no julgamento, uma testemunha disse que tudo não passou de uma vingança da velha Luzia dos Engreneiros, e isso por uma vez o pai, pelo menos aquele que toda a gente tinha ideia que era o pai do recém-nascido, por uma vez o pai, dizia eu cá ao menino, se ter saído com umas piadas a respeito do nariz que a explosão tinha levado.
- O nariz da velha Luzia dos Engreneiros?!
- Sim, menino, o nariz que ela perdeu quando lhe explodiu um cozido na cara! Mas como eu cá lhe ia contando, foi nas palavras dessa testemunha que o juiz pôs fé. E acabou por condenar a ré a seis meses de pena suspensa, e isso, segundo afirmou, porque as provas não eram lá muito fortes.
No final da audiência, quando já toda a gente se preparava para abandonar a sala do tribunal de Monchique, o juiz ainda perguntou à velha Luzia dos Engreneiros se ela tinha alguma declaração a fazer. E a velha Luzia dos Engreneiros disse-lhe:
- Vá à merda, senhor doutor juiz!
Desse crime é que não se safou. Mas como o juiz até nem era má pessoa, pelo menos segundo algumas opiniões, condenou-a só a vinte dias de prisão, remíveis a uma determinada quantia diária. Só que a velha Luzia dos Engreneiros, além de não ter nariz...
- A velha Luzia dos Engreneiros tinha nariz, e isso é uma coisa que é preciso deixar bem clara. Só que era um nariz postiço, dos de carnaval.
... além de não ter nariz, não tinha dinheiro para pagar, e assim acabou mesmo por ir bater com os ossos na prisão.
- Foi algemada para o posto, o raio da velha.
- Algemada?!
- Algemada e com um guarda de cada lado, que fica sempre bem. Mas ao fim de quatro ou cinco dias parece que se fartou daquilo. Dizia o carcereiro...
- O que sucedeu ao Leopardo?!
- Exactamente, o que veio depois desse labrego. Dizia ele, antes de morrer, que a velha Luzia dos Engreneiros não gostava muito de lá estar, e que foi por isso que fugiu. Os guardas ainda se meteram à procura da amaldiçoada durante uns tempos, mas era melhor terem ficado quietos, porque não serviu de nada.
- Assim, pelo que me está a dizer, deduzo que ela não cumpriu a pena toda?!
- Quer dizer, não cumpriu nessa altura, menino. Depois, umas semanas depois, quando voltou a dar as caras por Foz de Zimbrais, os guardas apanharam-na outra vez e levaram-na para uma das celas do posto. Com a concordância do juiz, lá voltaram a arranjar a papelada toda, mesmo desde o princípio, e pronto, ficaram as coisas decididas. A velha Luzia dos Engreneiros teve de conformar-se com a determinação do destino, que era cumprir o resto da pena.
- Sim?!
- Sim, menino, e a coisa ainda chegava para aí a uns quinze dias, mesmo sem ter agravamentos por causa da fuga.
- ...
- Mas o que é certo, menino, é que a velha Luzia dos Engreneiros saiu ainda antes de completar uma semana, por bom comportamento.
(…)
Nunca, durante anos a fio, a GNR conseguiu nada de jeito com a velha Luzia dos Engreneiros. Por mais que os guardas a chamassem à razão, por mais que tentassem fazer-lhe ver o caminho certo, ela nem lhes ligava. Ia com eles para o posto, sempre a lançar-lhes os esconjuros do costume, só que em menos de meia-dúzia de dias estava de volta e pronta para novos cometimentos. Até que eles se cansaram.
- Como é que a velha Luzia dos Engreneiros nunca transformou nenhum guarda num burro, isso é que eu nunca hei-de perceber.
- Olhe, se calhar até era um bem de caridade aqui para a gente.
- O quê?! Um guarda a menos?!
- Não, um burro a mais.
Os problemas começaram há muito tempo, quando a acusaram pela primeira vez de bruxarias. Eu ainda não era nascido nessa altura, e ela mesmo assim já era velha. Já andava de corpo curvado e toda vestida de preto, e também com o nariz postiço que trazia os óculos incluídos. Parece até que depois de lhe terem chegado as rugas maiores e os cabelos brancos se deixou ficar no mesmo estado de velhice, provavelmente à espera do fim do mundo que de vez em quando alguém se encarregava de lhe anunciar, mesmo sem citar a fonte. Tanto que não foi o passar dos anos que a impediu de dar a grande lição que deu ao Mau Serviço, nem a impede ainda agora de ir pescar para cima da rocha que fica perto da falésia de onde eu, carinho, consigo ver-te. Tão-pouco a impede de fazer frente ao fantasma do lagarto das Cimalhas, sempre que ele se mete a subir às árvores que nem um maluco só para caçar pássaros.
- Na altura em que a acusaram, menino, e mesmo depois, as coisas nunca ficaram lá muito claras. O meu pai, que é quem se lembra bem disso, conta que houve uma vizinha da velha Luzia dos Engreneiros que um dia disse que ela era bruxa.
- Disse por aí, ou apresentou queixa?
- As duas coisas, menino, as duas coisas. Disse a toda a gente e apresentou queixa no posto da GNR. Assim sem mais nem menos, queixou-se de que lhe tinha nascido um filho sem nariz. Para que não houvesse dúvidas, fez prova provada com o pobre bebé.
- Não me diga?!
- Digo! Digo! E o que é certo é que ninguém lhe tirava da ideia que a causa de tudo tinha sido uma infusão que a velha Luzia dos Engreneiros lhe tinha dado para evitar as dores de parto. Já no julgamento, uma testemunha disse que tudo não passou de uma vingança da velha Luzia dos Engreneiros, e isso por uma vez o pai, pelo menos aquele que toda a gente tinha ideia que era o pai do recém-nascido, por uma vez o pai, dizia eu cá ao menino, se ter saído com umas piadas a respeito do nariz que a explosão tinha levado.
- O nariz da velha Luzia dos Engreneiros?!
- Sim, menino, o nariz que ela perdeu quando lhe explodiu um cozido na cara! Mas como eu cá lhe ia contando, foi nas palavras dessa testemunha que o juiz pôs fé. E acabou por condenar a ré a seis meses de pena suspensa, e isso, segundo afirmou, porque as provas não eram lá muito fortes.
No final da audiência, quando já toda a gente se preparava para abandonar a sala do tribunal de Monchique, o juiz ainda perguntou à velha Luzia dos Engreneiros se ela tinha alguma declaração a fazer. E a velha Luzia dos Engreneiros disse-lhe:
- Vá à merda, senhor doutor juiz!
Desse crime é que não se safou. Mas como o juiz até nem era má pessoa, pelo menos segundo algumas opiniões, condenou-a só a vinte dias de prisão, remíveis a uma determinada quantia diária. Só que a velha Luzia dos Engreneiros, além de não ter nariz...
- A velha Luzia dos Engreneiros tinha nariz, e isso é uma coisa que é preciso deixar bem clara. Só que era um nariz postiço, dos de carnaval.
... além de não ter nariz, não tinha dinheiro para pagar, e assim acabou mesmo por ir bater com os ossos na prisão.
- Foi algemada para o posto, o raio da velha.
- Algemada?!
- Algemada e com um guarda de cada lado, que fica sempre bem. Mas ao fim de quatro ou cinco dias parece que se fartou daquilo. Dizia o carcereiro...
- O que sucedeu ao Leopardo?!
- Exactamente, o que veio depois desse labrego. Dizia ele, antes de morrer, que a velha Luzia dos Engreneiros não gostava muito de lá estar, e que foi por isso que fugiu. Os guardas ainda se meteram à procura da amaldiçoada durante uns tempos, mas era melhor terem ficado quietos, porque não serviu de nada.
- Assim, pelo que me está a dizer, deduzo que ela não cumpriu a pena toda?!
- Quer dizer, não cumpriu nessa altura, menino. Depois, umas semanas depois, quando voltou a dar as caras por Foz de Zimbrais, os guardas apanharam-na outra vez e levaram-na para uma das celas do posto. Com a concordância do juiz, lá voltaram a arranjar a papelada toda, mesmo desde o princípio, e pronto, ficaram as coisas decididas. A velha Luzia dos Engreneiros teve de conformar-se com a determinação do destino, que era cumprir o resto da pena.
- Sim?!
- Sim, menino, e a coisa ainda chegava para aí a uns quinze dias, mesmo sem ter agravamentos por causa da fuga.
- ...
- Mas o que é certo, menino, é que a velha Luzia dos Engreneiros saiu ainda antes de completar uma semana, por bom comportamento.
(…)
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Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações
Ainda aquela coisa da união com Espanha
Estranho, muito estranho, o editorial de José António Saraiva no «Sol», este Sábado. Ainda o caso Saramago e da sua despropositada Ibéria. Saraiva, pelo que percebi, tem uma posição contrária, ou pelo menos defende que a nossa independência depende apenas de nós, da nossa vontade (ainda bem que não é da de Saramago). Há uns tempos, ainda no «Expresso», o arquitecto foi um dos «pioneiros» desta ideia manhosa da união com Espanha, mas felizmente agora parece que a coisa lhe passou. Terá mudado mesmo de opinião com a passagem de um semanário para outro?
Curiosamente, no mesmo dia, num dos cadernos do «Expresso», Francisco Belard faz uma revelação. Nos anos 80 do século passado, Saramago, nos bastidores de um encontro de escritores ibéricos – em que parece que os escritores o que mais fizeram foi andar às turras –, terá dito que «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». Se não estava apenas a declamar provérbios, não deixa de ter a sua piada.
Curiosamente, no mesmo dia, num dos cadernos do «Expresso», Francisco Belard faz uma revelação. Nos anos 80 do século passado, Saramago, nos bastidores de um encontro de escritores ibéricos – em que parece que os escritores o que mais fizeram foi andar às turras –, terá dito que «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». Se não estava apenas a declamar provérbios, não deixa de ter a sua piada.
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sábado, 28 de julho de 2007
Ora vamos lá então
Ora vamos lá então ao futebol, ou melhor, ao Sporting. Primeiro, os três jogos que a equipa já leva disputados na preparação da época, o inicial que quase nem jogo foi, mas enfim, o de Albufeira com o Guimarães para um troféu cujo nome nem sequer retive e aquele em casa com o Lille.
- Sporting 2 (Derlei e Liedson), Sintrense 1 – 14.07
- Guimarães 0 Sporting 0 (derrota nas grande penalidades) – 18.07
- Sporting 3 (Liedson 2 e Vukcevic), Lille 0 – 21.07
As coisas estão um pouco diferentes. Algumas saídas, algumas entradas, mas só com o decorrer dos jogos se poderá perceber uma tendência. De qualquer forma, duas ideias positivas ficam: primeira, alguns dos novos jogadores parecem ter potencialidades (o novo central brasileiro com nome de jogador de cartas dos livros de cowboys e três dos quatro jogadores de leste – Purovic é que não me parece ser grande espingarda); segunda, dos quatro jogadores-problema do Sporting saíram logo três (o imprevisível Ricardo, o medíocre Custódio e o quase inclassificável Caneira, ficando apenas Polga, que apesar de ter uma relação difícil, para não dizer impossível, com a bola, apesar disso é esforçado).
É daqui que partimos, e esta noite é a apresentação da equipa com os espanhóis do Recreativo de Huelva; a ver se desse jogo já dá para ter mais algumas ideias.
- Sporting 2 (Derlei e Liedson), Sintrense 1 – 14.07
- Guimarães 0 Sporting 0 (derrota nas grande penalidades) – 18.07
- Sporting 3 (Liedson 2 e Vukcevic), Lille 0 – 21.07
As coisas estão um pouco diferentes. Algumas saídas, algumas entradas, mas só com o decorrer dos jogos se poderá perceber uma tendência. De qualquer forma, duas ideias positivas ficam: primeira, alguns dos novos jogadores parecem ter potencialidades (o novo central brasileiro com nome de jogador de cartas dos livros de cowboys e três dos quatro jogadores de leste – Purovic é que não me parece ser grande espingarda); segunda, dos quatro jogadores-problema do Sporting saíram logo três (o imprevisível Ricardo, o medíocre Custódio e o quase inclassificável Caneira, ficando apenas Polga, que apesar de ter uma relação difícil, para não dizer impossível, com a bola, apesar disso é esforçado).
É daqui que partimos, e esta noite é a apresentação da equipa com os espanhóis do Recreativo de Huelva; a ver se desse jogo já dá para ter mais algumas ideias.
quinta-feira, 26 de julho de 2007
terça-feira, 24 de julho de 2007
Antes de recomeçar a escrever sobre futebol
Com a nova época futebolística já em preparação, e antes de recomeçar a escrever sobre futebol – sobre o Sporting, já se vê –, deixo aqui um texto que escrevi há uns anos (em 2001, também em princípio de época, e agora corrigido) sobre um pequeno livro de Camilo José Cela chamado «Onze Contos de Futebol». Leitura muito, mas mesmo muito recomendável.
Textos sobre livros – 33
«Onze Contos de Futebol», de Camilo José Cela (Edições ASA, 74 pp., primeira edição portuguesa em 1994)
Cela e o joga da bola
Agora que estamos em começo de época de futebol, talvez seja a altura ideal para apresentar um livro sobre o tema. Para não diminuir o jogo da bola, trazendo aqui um qualquer desconhecido, escolhi «Onze Contos de Futebol», obra de um génio que até teve direito a Nobel da Literatura.
Camilo José Cela escreveu «Onze Contos de Futebol» em 1963, quando o futebol era bem diferente do de agora. De qualquer forma, estes pequenos contos não estão colados a nenhuma época em especial. São verdadeiramente intemporais.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, na localidade de Iria Flávia, em 1916. O pai era espanhol e a mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia. Não foi propriamente um romancista, mais do que isso, muito mais, foi um escritor, dono de uma obra multifacetada, onde se destacam os contos e os livros de viagens. E também os romances, obviamente, romances que em muitos casos acabam por ser emaranhados de histórias e mais histórias, surgidas em catadupa; histórias da Galiza e do seu mundo fantástico, da Galiza fantástica de Cela.
Nestes «contos de futebol», Cela não conta simples histórias do pontapé na bola. O que neles se pode encontrar é de novo um certo mundo de fascínio do grande escritor galego, com personagens mirabolantes e situações inusitadas. Como exemplo, deixo o início de uma das histórias, que levou o título «Como um cão no entrudo».
O ofício de cão é um mau ofício, um ofício sem meio termo: pelos vistos entre os cães não há classe média, mas sim áurea aristocracia e sebenta e faminta vulgaridade.Uns cães vivem como duques e comem peitinhos de frango e bebem leite, e outros, pelo contrário, farejam nos matadouros, levam pauladas e, quando chega o carnaval, até voam pelos ares, com o espinhaço partido em dois. Os cães, pelo entrudo, são pintados às riscas para maior e mais cauteloso escárnio do próprio e regozijo dos outros, e assim, quando vão pelos ares, as pessoas dizem: «Parecem borboletas!», e divertem-se honestamente e sem fazer mal a ninguém (o cão não conta, pois para isso é cão e não vereador, ou proprietário de uma loja de souvenirs).
A Blas Tronchón, Harinita, quando o jogo acabou, puseram-no no meio da manta e começaram a atirá-lo ao ar e a divertir-se com ele, como fazem aos cães no entrudo. A cena foi de muita graça e crueldade, e o público, enquanto moíam os ossos a Blas Tranchón, Harinita, divertiu-se com uma circunspecção muito recatada.
– Que não tivesse falhado o penalti, não é verdade?
– Pois claro, é como eu costumo dizer: que não tivesse falhado o penalti. Assim vai aprender a afinar a pontaria!
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A Padeira – IV, V e VI
Desta vez, três capítulos (IV, V e VI) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota
»»» Cap. IV
Quem não estava com paciência para grandes esperas era Brites. Queria tornar-se independente. E assim, depois que lhe morreram os pais, depois de os ter infernizado anos a fio, meteu-se a fazer vida de feirante. Desfez-se de todos os haveres da herança e passou a andar de feira em feira pelo Algarve e pelo Alentejo.
- Raios a partam!!
Em pouco tempo ganhou fama, uma fama do tamanho nem as pessoas sabiam bem de quê.
- Se calhar, não há coisa suficientemente grande para a comparação.
- Pois, se calhar.
E assim, com vinte e seis anos no corpo, já era mais temida pelas terras onde andava do que qualquer outro feirante. Com o pau, à mão, às vezes até a poder de espada, Brites não perdia nunca a oportunidade de se meter numa boa luta. E se acontecia que algum adversário saísse sem grandes marcas no corpo era só porque fugia logo a seguir aos primeiros murros. Porque os que iam até ao fim, os mais parvos, nunca deixavam o terreno da luta pelo seu próprio pé.
- A Brites, a feirante do Algarve, é mesmo do piorio!
- Sim, metam-se com ela e depois digam que a gente não avisou!
»»» Cap. V
Mas nem todos ligavam aos avisos. Tanto que se deu o caso de um alentejano, ainda novo e soldado de profissão, querer conhecer Brites pessoalmente. Também ele estava atraído pela fama da feirante. E quando a viu, nem o Diabo se calhar seria capaz de adivinhar por quê, o que teria feito tal milagre acontecer, enamorou-se.
- Com tantas mulheres aí à cata de homem, vai-lhe logo pender o coração para aquele javali!
- Amigo, isto quem feio ama bonito lhe parece.
- Não, cá para mim o alentejano não bate é lá muito bem do juízo. Se calhar ficou assim depois das batalhas em que andou.
Brites não sabia nada de coisas de sentimentos. Nem queria sequer ouvir falar disso. Tanto que assim que o alentejano lhe tentou fazer a corte, sem perder tempo lançou-lhe um desafio.
- Está bem! Caso contigo, mas só depois de ganhares um combate!
- Contra quem?! - Perguntou o alentejano.
- Contra mim! - Gritou Brites, já impaciente para começar a zaragata.
E o alentejano aceitou.
- Pobre desgraçado!
- Bem, é o amor, o tal que move montanhas.
Os pormenores não demoraram muito a acertar. Arranjaram-se as testemunhas e estabeleceram-se as regras, e depois foram escolhidas as armas.
- Eu quero o pau! - Gritou Brites.
A feirante parecia cada vez mais impaciente.
- As mulheres, quando se trata destas lutas, escolhem sempre o pau.
- Tirando as esquisitas.
- Sim, tirando as esquisitas.
O alentejano voltou a aceitar, cada vez mais enamorado. Só que daí a pouco jazia morto aos pés de Brites, com a cabeça feita num bolo. Ninguém tinha percebido era se a feirante ao fazer o desafio estava a ironizar, ou se realmente tinha pensado que podia desposar um morto. Mas também ninguém se atrevia a perguntar-lhe.
- Estimamos muito a vida.
»»» Cap. VI
Brites acabou por ver a gravidade do seu acto, e o que iria penar se a lei lhe caísse em cima com as suas enormes manápulas. E por isso não perdeu tempo. Arrumou os poucos haveres e meteu-se de volta ao Algarve com a trouxa às costas. Talvez desse o salto para o Castela, ou então outras ideias lhe haveriam de surgir.
- Brites voltou!
Depressa chegou a Faro, mas não ligou muito aos laços de nascimento. À custa de muita argumentação, meteu-se num barco que se ia fazer pelo Mediterrâneo a fora e deixou-se levar pela esperança de encontrar algum porto de bom abrigo.
- Já embarcou para se ir embora de Portugal.
- E sabe-se lá para onde aquilo vai!
- Gritem aí ao capitão qual é o destino!
- Qual é o destino?!
- Força a ver se ele ouve!
- Qual é o destino?!!!
- Qual quê! Já lá vai o barco e o cabrão não disse nada.
- Pois não...
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota
»»» Cap. IV
Quem não estava com paciência para grandes esperas era Brites. Queria tornar-se independente. E assim, depois que lhe morreram os pais, depois de os ter infernizado anos a fio, meteu-se a fazer vida de feirante. Desfez-se de todos os haveres da herança e passou a andar de feira em feira pelo Algarve e pelo Alentejo.
- Raios a partam!!
Em pouco tempo ganhou fama, uma fama do tamanho nem as pessoas sabiam bem de quê.
- Se calhar, não há coisa suficientemente grande para a comparação.
- Pois, se calhar.
E assim, com vinte e seis anos no corpo, já era mais temida pelas terras onde andava do que qualquer outro feirante. Com o pau, à mão, às vezes até a poder de espada, Brites não perdia nunca a oportunidade de se meter numa boa luta. E se acontecia que algum adversário saísse sem grandes marcas no corpo era só porque fugia logo a seguir aos primeiros murros. Porque os que iam até ao fim, os mais parvos, nunca deixavam o terreno da luta pelo seu próprio pé.
- A Brites, a feirante do Algarve, é mesmo do piorio!
- Sim, metam-se com ela e depois digam que a gente não avisou!
»»» Cap. V
Mas nem todos ligavam aos avisos. Tanto que se deu o caso de um alentejano, ainda novo e soldado de profissão, querer conhecer Brites pessoalmente. Também ele estava atraído pela fama da feirante. E quando a viu, nem o Diabo se calhar seria capaz de adivinhar por quê, o que teria feito tal milagre acontecer, enamorou-se.
- Com tantas mulheres aí à cata de homem, vai-lhe logo pender o coração para aquele javali!
- Amigo, isto quem feio ama bonito lhe parece.
- Não, cá para mim o alentejano não bate é lá muito bem do juízo. Se calhar ficou assim depois das batalhas em que andou.
Brites não sabia nada de coisas de sentimentos. Nem queria sequer ouvir falar disso. Tanto que assim que o alentejano lhe tentou fazer a corte, sem perder tempo lançou-lhe um desafio.
- Está bem! Caso contigo, mas só depois de ganhares um combate!
- Contra quem?! - Perguntou o alentejano.
- Contra mim! - Gritou Brites, já impaciente para começar a zaragata.
E o alentejano aceitou.
- Pobre desgraçado!
- Bem, é o amor, o tal que move montanhas.
Os pormenores não demoraram muito a acertar. Arranjaram-se as testemunhas e estabeleceram-se as regras, e depois foram escolhidas as armas.
- Eu quero o pau! - Gritou Brites.
A feirante parecia cada vez mais impaciente.
- As mulheres, quando se trata destas lutas, escolhem sempre o pau.
- Tirando as esquisitas.
- Sim, tirando as esquisitas.
O alentejano voltou a aceitar, cada vez mais enamorado. Só que daí a pouco jazia morto aos pés de Brites, com a cabeça feita num bolo. Ninguém tinha percebido era se a feirante ao fazer o desafio estava a ironizar, ou se realmente tinha pensado que podia desposar um morto. Mas também ninguém se atrevia a perguntar-lhe.
- Estimamos muito a vida.
»»» Cap. VI
Brites acabou por ver a gravidade do seu acto, e o que iria penar se a lei lhe caísse em cima com as suas enormes manápulas. E por isso não perdeu tempo. Arrumou os poucos haveres e meteu-se de volta ao Algarve com a trouxa às costas. Talvez desse o salto para o Castela, ou então outras ideias lhe haveriam de surgir.
- Brites voltou!
Depressa chegou a Faro, mas não ligou muito aos laços de nascimento. À custa de muita argumentação, meteu-se num barco que se ia fazer pelo Mediterrâneo a fora e deixou-se levar pela esperança de encontrar algum porto de bom abrigo.
- Já embarcou para se ir embora de Portugal.
- E sabe-se lá para onde aquilo vai!
- Gritem aí ao capitão qual é o destino!
- Qual é o destino?!
- Força a ver se ele ouve!
- Qual é o destino?!!!
- Qual quê! Já lá vai o barco e o cabrão não disse nada.
- Pois não...
Alarve season (perdão, silly season)
Copiei esta foto do blog de Pacheco Pereira (foi colocada no dia 23). A legenda é «Allgarve, hoje». Por baixo está outra foto, de uma vaca (a legenda é «Uma vaca, hoje»). Pelos vistos, o insulto de Manuel Pinho – e do seu grupo de especialistas (?) em promoção turística – à minha terra está mesmo a pegar. Nem que seja para anedotas.
Começos prometedores - 4
«No meu bairro havia um bígamo. Soube-o por um colega, que um dia, ao sairmos da escola, apontando para um indivíduo escanzelado, com barba de dois dias, disse:
– Aquele homem é bígamo.»
– Aquele homem é bígamo.»
Início do conto «O Bígamo», do livro «Contos de Adúlteros Desorientados», de Juan José Millás, 2003 (edição portuguesa – Temas e Debates, 2006)
segunda-feira, 23 de julho de 2007
Margarida Vila-Nova
Este post não é sobre a rapariga aqui do lado, mas ela também entra. Assim, ficou logo no título, e com direito a foto e tudo.
Bom, ontem à noite estive na Feira do Livro de Vilamoura. Foi das nove e meia à meia-noite e meia. Uma mesa de livros e uma cadeira, exactamente a mesma cadeira (segundo me confidenciaram com alguma pompa) em que na noite anterior tinha estado sentada a minha nova colega escritora Margarida Vila-Nova. Parece que muita gente aparecia com uns caderninhos, ou umas folhas, para ver se ela autografava, mas ela, esperta, só dava autógrafos nos próprios livros. Eu também só dei autógrafos nos livros, mas se me tivessem aparecido com algum papel, ou algum caderno, na volta lá dava na mesma (embora a hipótese de aparecer alguém com tal pedido fosse, com algum favor, uma num milhão).
Durante aquelas três horas, houve visitantes da feira que me fizeram perguntas, várias perguntas. Deixo aqui algumas de que me lembro:
- Consegue viver da escrita?
- Estou a pensar levar este livro, o que é que acha? (um senhor mostrando-me o romance de Mario Vargas Llosa «Travessuras da Menina Má»)
- Você é de onde?
- Já saiu o novo livro do autor de «A Sombra do Vento»?
- Por quê Montemor no seu último livro?
- Tem o «Foi Assim» da Zita Seabra?
- Vêm cá mais escritores?
- O que vale é que cá dentro não está fresco como lá fora, não é?
- Isto na capa deste seu livro é a Alcárcova, em Évora, não é?
- Acha que leve? (uma rapariga segurando o meu livro de contos «O Amor por entre os Dedos»)
- Vinha buscar um livro que vi ontem nesta mesa; por acaso não sabe onde está?
- Pago a si?
- Vi lá na entrada um livro chamado «O Afinador de Pianos» de Cristina Norton; não é o do Richard Zimmler?
- Onde é que estão os Calvins?
- Isto no Algarve agora é um horror, não é?
- Você volta amanhã à noite?
- Acha que agora se lê mais em Portugal?
- Pago aqui ou à saída?
- Posso-lhe pedir que assine?
- Já jantou?
Bom, ontem à noite estive na Feira do Livro de Vilamoura. Foi das nove e meia à meia-noite e meia. Uma mesa de livros e uma cadeira, exactamente a mesma cadeira (segundo me confidenciaram com alguma pompa) em que na noite anterior tinha estado sentada a minha nova colega escritora Margarida Vila-Nova. Parece que muita gente aparecia com uns caderninhos, ou umas folhas, para ver se ela autografava, mas ela, esperta, só dava autógrafos nos próprios livros. Eu também só dei autógrafos nos livros, mas se me tivessem aparecido com algum papel, ou algum caderno, na volta lá dava na mesma (embora a hipótese de aparecer alguém com tal pedido fosse, com algum favor, uma num milhão).
Durante aquelas três horas, houve visitantes da feira que me fizeram perguntas, várias perguntas. Deixo aqui algumas de que me lembro:
- Consegue viver da escrita?
- Estou a pensar levar este livro, o que é que acha? (um senhor mostrando-me o romance de Mario Vargas Llosa «Travessuras da Menina Má»)
- Você é de onde?
- Já saiu o novo livro do autor de «A Sombra do Vento»?
- Por quê Montemor no seu último livro?
- Tem o «Foi Assim» da Zita Seabra?
- Vêm cá mais escritores?
- O que vale é que cá dentro não está fresco como lá fora, não é?
- Isto na capa deste seu livro é a Alcárcova, em Évora, não é?
- Acha que leve? (uma rapariga segurando o meu livro de contos «O Amor por entre os Dedos»)
- Vinha buscar um livro que vi ontem nesta mesa; por acaso não sabe onde está?
- Pago a si?
- Vi lá na entrada um livro chamado «O Afinador de Pianos» de Cristina Norton; não é o do Richard Zimmler?
- Onde é que estão os Calvins?
- Isto no Algarve agora é um horror, não é?
- Você volta amanhã à noite?
- Acha que agora se lê mais em Portugal?
- Pago aqui ou à saída?
- Posso-lhe pedir que assine?
- Já jantou?
domingo, 22 de julho de 2007
Lixo
O «Sol», o jornal, trazia este Sábado dentro do saco um calhamaço extra, quase do tamanho do caderno principal. Era mais uma coisa do «Allgarve», uma das muitas com que Manuel Pinho (e o seu grupo de propaganda) resolveu insultar a minha terra. Mais uma vez, mandei aquela porcaria para o lixo, logo a seguir a ter comprado o jornal. Pus no contentor do papel; ainda estive para mandar para um dos do lixo – digamos assim – comum, mas acabei por mandar para o contentor do papel (sempre pode ser reciclado). Com o calhamaço dava a ideia de que pretendiam promover uma série de acontecimentos que neste Verão decorrem no Algarve. Cultura, espectáculos e por aí adiante. Até a ministra da Cultura aparecia a ocupar umas páginas, tal como Pinho e também o presidente de uma entidade que acho que se chama Turismo de Portugal. Não sei se também estes três são acontecimentos previstos, pois apenas folheei aquilo antes de mandar para o lixo. Mas não devem ser. Aliás, se o calhamaço é de promoção, por que não promoverem-se igualmente a eles próprios? Onde cabe o insultuoso «Allgarve», cabe decerto também qualquer alarve.
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Sobre a censura
Das coisas que retive da última presença de Sócrates no parlamento, a que destaco é uma das suas muitas reacções enfurecidas, precisamente aquela em que a propósito das acusações que lhe fazem (e com razão) de que tem promovido no país um ambiente que lembra outros tempos, anteriores a 1974, lembrou a Marques Mendes que ele fez parte do governo que censurou um romance do Nobel (agora ibérico) Saramago, «O Evangelho Segundo Jesus Cristo». Sócrates esteve bem na lembrança, porque aquilo que referiu foi um acto vergonhoso de gente que também mostra alguma dificuldade em conviver em ambiente democrático. Devia era de voltar a referir o assunto numa das suas próximas visitas ao Palácio de Belém, quando lá se for encontrar precisamente com o homem que chefiava o governo dos tempos da censura do tal romance.
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sexta-feira, 20 de julho de 2007
Sessão de autógrafos – Vilamoura
Este Sábado, 21 (entre as 21h30 e as 24h00), sessão de autógrafos na Feira do Livro de Vilamoura, no Algarve. Espero não dar de caras com nenhum cartaz daquele idiota do «Allgarve». Os livros são o conjunto de contos de «O Amor por entre os Dedos» e o romance «O que Entra nos Livros».
Dois excertos algarvios, ou quase…
«Foi aí que a notícia correu mesmo o mundo. A pequena cidade de Portimão, pequena e pacata, porque o Verão e os turistas já tinham abalado, estava coberta por uma nuvem negra de pássaros.» (de «O Amor por entre os Dedos»)
«Já era o Alentejo próximo da serra algarvia, com uns montes de vez em quando, antes dos montes mesmo a sério da Serra de Monchique; aqueles montes que a par com os da Serra do Caldeirão pareciam querer proteger o Algarve de alguma doença que a planície lhe pudesse pegar.» (de «O que Entra nos Livros»)
Dois excertos algarvios, ou quase…
«Foi aí que a notícia correu mesmo o mundo. A pequena cidade de Portimão, pequena e pacata, porque o Verão e os turistas já tinham abalado, estava coberta por uma nuvem negra de pássaros.» (de «O Amor por entre os Dedos»)
«Já era o Alentejo próximo da serra algarvia, com uns montes de vez em quando, antes dos montes mesmo a sério da Serra de Monchique; aqueles montes que a par com os da Serra do Caldeirão pareciam querer proteger o Algarve de alguma doença que a planície lhe pudesse pegar.» (de «O que Entra nos Livros»)
quarta-feira, 18 de julho de 2007
Saramiago
Isto merece ser lido.
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Textos sobre livros - 32
«Memórias de um Anão Gnóstico», de David Madsen (Temas e Debates, 301 pp.)
O pequeno grande narrador
Peppe, um anão corcunda que a certa altura diz de si próprio estar «aprisionado numa jaula de carne, ossos e cuspo», conta a sua vida na Itália renascentista ao longo de três centenas de páginas. Mais que fossem...
O sítio onde Peppe nasceu, em Roma, era «pouco mais do que um casebre», numa zona da qual diziam ter os moradores «o diabo em pessoa». Peppe pensava o mesmo: «são teimosos, grosseiros, de uma independência feroz, uns verdadeiros chacais (...) Deram-me pontapés, atiraram-me com lixo, abusaram de mim, fui espancado quase diariamente.»
Talvez tenha sido uma vida assim começada a levar à comparação de «Memórias de um Anão Gnóstico» com o célebre «O Perfume», de Patrick Süskind, mas a verdade é que o romance de David Madsen (pseudónimo de um filósofo e teólogo nascido em Londres e a viver em Copenhaga), se em peripécias não lhe fica atrás, é incomparavelmente mais bem escrito. A vida de Peppe, desde o casebre até à corte papal, é um manancial de episódios que metem religião, sexo, corrupção, violência, vícios, artes e espertezas mais ou menos saloias, num mundo que mistura as maiores misérias com as mais incríveis formas de opulência.
Aos 13 anos, numa igreja, Peppe conhece Laura. «Os traços pálidos e tranquilos de uma jovem madona estavam enquadrados por uma cabeleira oval que tinha toda a delicadeza de ouro em fios.» É ela que vai transformar a vida daquele jovem anão ignorante. «Durante duas horas, uma noite por semana, sentava-me ao lado de Lady Laura, na biblioteca do seu palazzo, enquanto ela me ensinava pacientemente os pontos essenciais da gramática, da pronúncia, da escrita, da retórica e do desenvolvimento da linguagem. Falava-me de livros grandiosos e maravilhosos, de poesia, música, pintura, teatro e da história da humanidade. Revelou-me alguns dos segredos dos corpos celestes e de como o movimento dos astros afectava as nossas vidas cá em baixo.»
Nos anos seguintes, Peppe finge-se o mesmo ignorante de sempre junto da mãe, mas penetra cada vez mais em algo novo que Laura lhe mostra, o gnosticismo, um movimento com raízes na ciência do sagrado do Egipto e na filosofia Grega. É ele próprio, Peppe, que fala do assunto. «... há dois poderes iguais no universo, um bom e um mau, que estão perpetuamente em guerra um com o outro. O poder bom criou o espírito, enquanto que o mau criou a matéria. (...) Quando nascemos no mundo da matéria, caímos do nosso verdadeiro estado espiritual; o objectivo da nossa existência é regressar a ele. O diabo (ou, pelo menos, um diabo) criou este mundo, que é o inferno. (...) Admiram-se que eu o tenha abraçado [o gnosticismo] tão avidamente, tendo sido amaldiçoado com um corpo como o meu?»
Laura não escapa às garras de um dos inquisidores papais, mas Peppe tem mais sorte. É vendido por esse «santo» inquisidor, por 20 ducados, ao dono de uma espécie de circo ambulante, um tal Mestre António. Leva na memória a última palavra lida nos lábios de Laura, «mestre»; não se trata do dono do circo, mas Peppe há-de encontrá-lo. E há-de encontrar Giovanni de' Medici, que acabará como papa Leão X. Dele, Peppe será amigo, confidente, conselheiro, tantas coisas, até angariador de rapazes «bem dotados» pelos becos malcheirosos de Roma. E depois dos estragos feitos pelos rapazes, ler-lhe-á passagens de Santo Agostinho, de cada vez que o médico aparecer para a aplicação de unguentos e emplastros.
O pequeno grande narrador
Peppe, um anão corcunda que a certa altura diz de si próprio estar «aprisionado numa jaula de carne, ossos e cuspo», conta a sua vida na Itália renascentista ao longo de três centenas de páginas. Mais que fossem...
O sítio onde Peppe nasceu, em Roma, era «pouco mais do que um casebre», numa zona da qual diziam ter os moradores «o diabo em pessoa». Peppe pensava o mesmo: «são teimosos, grosseiros, de uma independência feroz, uns verdadeiros chacais (...) Deram-me pontapés, atiraram-me com lixo, abusaram de mim, fui espancado quase diariamente.»
Talvez tenha sido uma vida assim começada a levar à comparação de «Memórias de um Anão Gnóstico» com o célebre «O Perfume», de Patrick Süskind, mas a verdade é que o romance de David Madsen (pseudónimo de um filósofo e teólogo nascido em Londres e a viver em Copenhaga), se em peripécias não lhe fica atrás, é incomparavelmente mais bem escrito. A vida de Peppe, desde o casebre até à corte papal, é um manancial de episódios que metem religião, sexo, corrupção, violência, vícios, artes e espertezas mais ou menos saloias, num mundo que mistura as maiores misérias com as mais incríveis formas de opulência.
Aos 13 anos, numa igreja, Peppe conhece Laura. «Os traços pálidos e tranquilos de uma jovem madona estavam enquadrados por uma cabeleira oval que tinha toda a delicadeza de ouro em fios.» É ela que vai transformar a vida daquele jovem anão ignorante. «Durante duas horas, uma noite por semana, sentava-me ao lado de Lady Laura, na biblioteca do seu palazzo, enquanto ela me ensinava pacientemente os pontos essenciais da gramática, da pronúncia, da escrita, da retórica e do desenvolvimento da linguagem. Falava-me de livros grandiosos e maravilhosos, de poesia, música, pintura, teatro e da história da humanidade. Revelou-me alguns dos segredos dos corpos celestes e de como o movimento dos astros afectava as nossas vidas cá em baixo.»
Nos anos seguintes, Peppe finge-se o mesmo ignorante de sempre junto da mãe, mas penetra cada vez mais em algo novo que Laura lhe mostra, o gnosticismo, um movimento com raízes na ciência do sagrado do Egipto e na filosofia Grega. É ele próprio, Peppe, que fala do assunto. «... há dois poderes iguais no universo, um bom e um mau, que estão perpetuamente em guerra um com o outro. O poder bom criou o espírito, enquanto que o mau criou a matéria. (...) Quando nascemos no mundo da matéria, caímos do nosso verdadeiro estado espiritual; o objectivo da nossa existência é regressar a ele. O diabo (ou, pelo menos, um diabo) criou este mundo, que é o inferno. (...) Admiram-se que eu o tenha abraçado [o gnosticismo] tão avidamente, tendo sido amaldiçoado com um corpo como o meu?»
Laura não escapa às garras de um dos inquisidores papais, mas Peppe tem mais sorte. É vendido por esse «santo» inquisidor, por 20 ducados, ao dono de uma espécie de circo ambulante, um tal Mestre António. Leva na memória a última palavra lida nos lábios de Laura, «mestre»; não se trata do dono do circo, mas Peppe há-de encontrá-lo. E há-de encontrar Giovanni de' Medici, que acabará como papa Leão X. Dele, Peppe será amigo, confidente, conselheiro, tantas coisas, até angariador de rapazes «bem dotados» pelos becos malcheirosos de Roma. E depois dos estragos feitos pelos rapazes, ler-lhe-á passagens de Santo Agostinho, de cada vez que o médico aparecer para a aplicação de unguentos e emplastros.
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domingo, 15 de julho de 2007
Pergunta discreta
Como seria a «cooperação estratégica» entre este Cavaco Silva que agora preside à República e aquele Cavaco Silva de há mais de uma década que tínhamos como chefe do governo?
E a revolução lusitana?
Não sei se Saramago é profeta (ele diz que não é), mas esta coisa da Espanha alargada à nossa custa, ou da Ibéria, tipo teoria do arquitecto Saraiva, deixa-me muito triste. Não com a perspectiva – não me parece que possa acontecer –, mas com a insistência nela de determinadas pessoas (portuguesas), sobretudo das que são bastante conhecidas. Gosto muito de Espanha, é mesmo o país de que mais gosto depois de Portugal, mas daí a uniões… Só se fosse para no mesmo dia começar logo a fazer uma revolução lusitana, na volta até com o apoio do próprio Saramago, se entretanto se arrependesse.
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sábado, 14 de julho de 2007
Um bocadinho de Lisboa
É um bocadinho de Lisboa no meu romance «O que Entra nos Livros» (apresentação no próximo dia 25). A Lisboa que amanhã vai a eleições e que provavelmente vai eleger mais um dos do costume. A mesma Lisboa que ontem eu queria deixar rapidamente (como sempre) a caminho de casa, depois de ter saído do escritório em Algés já depois das sete. Foi o cabo dos trabalho, com tanto carro parado sem jeito de entrar na ponte Vasco da Gama, lá fui eu dar a volta a Vila Franca, por falta de paciência para esperar nem sabia até que horas. Sempre deu para ver outras paisagens, pois só retomei percurso habitual até Montemor-o-Novo já na rotunda de Pegões. Demorei mais tempo, e por isso pude ouvir quase na totalidade uma entrevista de Rui Tavares no Rádio Clube Português, boa parte dela sobre a peça de teatro que publicou recentemente – «O Arquitecto». Quando deixei de ouvir já era perto de casa, no meio do montado. Rui Tavares falava das eleições em Lisboa, para as quais me estou completamente nas tintas, embora se me obrigassem a lá viver e me desse para lá votar (em vez de votar na minha terra de nascimento, Monchique) pusesse a cruz no quadrado de José Sá Fernandes.
Desliguei o rádio quando no escuro do montado vi um par de olhos, muito brilhantes. Parados. Pareciam-me estar bem junto ao chão, por isso pensei que seria uma gineta, mas acabei por dar com uma raposa, pequena, muito pequena. Tentei segui-la com o carro, só que fora da estrada de terra era complicado. Ela acabou por afastar-se no escuro da noite, sem olhar para trás uma única vez que fosse; pelo menos pensei isso, pois não voltei a ver os dois olhos verdes. Rui Tavares falava sobretudo de Costa e de Carmona quando desliguei o rádio para ver se conseguia observar a pequena raposa durante mais tempo, sem outras coisas que me desviassem a atenção. Não a vi mais. Se não estivesse sozinha talvez fosse diferente, como há uns dois meses, quando vi também à noite duas na mesma zona, maiores, a saltitarem todas contentes, indiferentes ao barulho do motor do carro e às luzes.
Mas isto são desvios… O que eu queria era colocar um bocadinho de Lisboa neste post, a Lisboa do meu romance, já bem distante de ser uma verdadeira cidade (no romance e, infelizmente, também na realidade). Aqui fica o bocadinho…
(…) Achava que Lisboa era uma cidade absolutamente caótica, sem futuro, condenada nem eu sabia bem a quê, uma cidade que só me despertava algum interesse quando a observava do meio do tabuleiro da nova ponte, diante de mim, a descer para o rio, ameaçando afundar-se a qualquer momento. De longe parecia bonita, não se via o lixo, a degradação dos edifícios, a publicidade, nem se percebia a confusão das ruas; os caixotes de apartamentos quase que faziam algum sentido e até os aviões, a voarem um pouco acima do volume que descia para o Tejo, pareciam ter uma certa graça, tanto que eu observava-os com um bocadinho do mesmo fascínio com que no montado que cercava o monte observava as águias uns metros acima de mim. Às vezes ia no carro pela estrada de terra que atravessava o montado até à estrada de alcatrão e via à minha frente uma sombra; travava então um pouco e uma águia surgia a voar uns dez metros acima do chão, enorme, quase do tamanho de uma galinha, mas vigorosa, dona dos ares, a águia a dar a ideia de que era capaz de ser dona de tudo o que quisesse naquele momento.
Curiosamente, os aviões que eu via pequeninos de cima do tabuleiro da nova ponte de Lisboa, esses aviões quando eu já conduzia na Segunda Circular, mesmo ao lado do aeroporto, surpreendiam-me como as águias ao passarem de repente uns metros acima do carro, se calhar apenas trinta ou quarenta metros nalgumas das vezes. Quase que me causavam a surpresa das águias, não fosse o ruído tremendo que de repente surgia nem eu sabia de onde, como se o mundo estivesse mesmo a acabar e no momento decisivo chegasse a algum deus com currículo a ideia de tocar um gongo para assinalar devidamente a ocasião. Mas depois o mundo continuava, sempre, a cada avião que me passava por cima, às vezes a dar a ideia de que poderia riscar-me a pintura do tejadilho do carro com o trem de aterragem. Já com as águias, na estrada de terra do montado, eu não pensava nisso, quando me voavam por cima do carro e eu as percebia pela sombra que no chão as denunciava se os dias fossem de sol. (…)
Desliguei o rádio quando no escuro do montado vi um par de olhos, muito brilhantes. Parados. Pareciam-me estar bem junto ao chão, por isso pensei que seria uma gineta, mas acabei por dar com uma raposa, pequena, muito pequena. Tentei segui-la com o carro, só que fora da estrada de terra era complicado. Ela acabou por afastar-se no escuro da noite, sem olhar para trás uma única vez que fosse; pelo menos pensei isso, pois não voltei a ver os dois olhos verdes. Rui Tavares falava sobretudo de Costa e de Carmona quando desliguei o rádio para ver se conseguia observar a pequena raposa durante mais tempo, sem outras coisas que me desviassem a atenção. Não a vi mais. Se não estivesse sozinha talvez fosse diferente, como há uns dois meses, quando vi também à noite duas na mesma zona, maiores, a saltitarem todas contentes, indiferentes ao barulho do motor do carro e às luzes.
Mas isto são desvios… O que eu queria era colocar um bocadinho de Lisboa neste post, a Lisboa do meu romance, já bem distante de ser uma verdadeira cidade (no romance e, infelizmente, também na realidade). Aqui fica o bocadinho…
(…) Achava que Lisboa era uma cidade absolutamente caótica, sem futuro, condenada nem eu sabia bem a quê, uma cidade que só me despertava algum interesse quando a observava do meio do tabuleiro da nova ponte, diante de mim, a descer para o rio, ameaçando afundar-se a qualquer momento. De longe parecia bonita, não se via o lixo, a degradação dos edifícios, a publicidade, nem se percebia a confusão das ruas; os caixotes de apartamentos quase que faziam algum sentido e até os aviões, a voarem um pouco acima do volume que descia para o Tejo, pareciam ter uma certa graça, tanto que eu observava-os com um bocadinho do mesmo fascínio com que no montado que cercava o monte observava as águias uns metros acima de mim. Às vezes ia no carro pela estrada de terra que atravessava o montado até à estrada de alcatrão e via à minha frente uma sombra; travava então um pouco e uma águia surgia a voar uns dez metros acima do chão, enorme, quase do tamanho de uma galinha, mas vigorosa, dona dos ares, a águia a dar a ideia de que era capaz de ser dona de tudo o que quisesse naquele momento.
Curiosamente, os aviões que eu via pequeninos de cima do tabuleiro da nova ponte de Lisboa, esses aviões quando eu já conduzia na Segunda Circular, mesmo ao lado do aeroporto, surpreendiam-me como as águias ao passarem de repente uns metros acima do carro, se calhar apenas trinta ou quarenta metros nalgumas das vezes. Quase que me causavam a surpresa das águias, não fosse o ruído tremendo que de repente surgia nem eu sabia de onde, como se o mundo estivesse mesmo a acabar e no momento decisivo chegasse a algum deus com currículo a ideia de tocar um gongo para assinalar devidamente a ocasião. Mas depois o mundo continuava, sempre, a cada avião que me passava por cima, às vezes a dar a ideia de que poderia riscar-me a pintura do tejadilho do carro com o trem de aterragem. Já com as águias, na estrada de terra do montado, eu não pensava nisso, quando me voavam por cima do carro e eu as percebia pela sombra que no chão as denunciava se os dias fossem de sol. (…)
No próximo dia 25
O convite para a apresentação do meu romance «O que Entra nos Livros», no próximo dia 25. Toda a gente convidada, claro.
(clicar na imagem para aumentar)
quinta-feira, 12 de julho de 2007
Um olhar de fora
Um olhar de fora de Monchique; notável olhar, o de José Alberto Quaresma (hoje no «Correio da Manhã», crónica «Quintas do Algarve») sobre a situação na Câmara Municipal de Monchique.
Tuta-e-meia
Monchique é o tecto do Algarve. Uma pequena autarquia de sete mil habitantes. Gente boa. Carlos Tuta preside aos seus destinos. Há quase um quarto de século. Legitimado por sete renovadas maiorias absolutas. É tanto tempo que a cadeira presidencial tem tendência para ganhar a mesma patine que o sofá lá de casa.
Por tuta-e-meia – cortiça mal vendida pelo Monchiquense – Tuta retirou ao vereador Carlos Henrique os pelouros do Desporto, Cultura, Acção Social, Protecção Civil e Ambiente. O ambiente, na câmara, ficara pesado porque Carlos Henrique votara ao lado da oposição.
Tuta é voluntarioso. Pensa bem. Tem autoridade. Gosta de poupar os vereadores a esforços. Se o presidente pode votar por eles, nas sessões camarárias, por que diabo António Mira e Carlos Henrique terão de fazer o esforço de levantar o braço? E por que há-de Carlos Henrique ter, episodicamente, opinião diferente de Carlos Tuta que melhor pensa por ele?
Pensando bem. Se Tuta, nos tempos áureos da Praia da Rocha, sabia exercer (com dificuldade, é certo) o seu voto de castidade, por que não há-de permitir, agora mais leve, que outros o façam? Os monchiquenses são uma família. E, como nas boas famílias, há opiniões discordantes. O poder do patriarca – manda a sabedoria – fica bem que seja magnânimo!
Tuta-e-meia
Monchique é o tecto do Algarve. Uma pequena autarquia de sete mil habitantes. Gente boa. Carlos Tuta preside aos seus destinos. Há quase um quarto de século. Legitimado por sete renovadas maiorias absolutas. É tanto tempo que a cadeira presidencial tem tendência para ganhar a mesma patine que o sofá lá de casa.
Por tuta-e-meia – cortiça mal vendida pelo Monchiquense – Tuta retirou ao vereador Carlos Henrique os pelouros do Desporto, Cultura, Acção Social, Protecção Civil e Ambiente. O ambiente, na câmara, ficara pesado porque Carlos Henrique votara ao lado da oposição.
Tuta é voluntarioso. Pensa bem. Tem autoridade. Gosta de poupar os vereadores a esforços. Se o presidente pode votar por eles, nas sessões camarárias, por que diabo António Mira e Carlos Henrique terão de fazer o esforço de levantar o braço? E por que há-de Carlos Henrique ter, episodicamente, opinião diferente de Carlos Tuta que melhor pensa por ele?
Pensando bem. Se Tuta, nos tempos áureos da Praia da Rocha, sabia exercer (com dificuldade, é certo) o seu voto de castidade, por que não há-de permitir, agora mais leve, que outros o façam? Os monchiquenses são uma família. E, como nas boas famílias, há opiniões discordantes. O poder do patriarca – manda a sabedoria – fica bem que seja magnânimo!
Apresentação – «O que Entra nos Livros»
Este é um dos posts de toda a história do blog «Floresta do Sul» que escrevo com mais alegria, e escrevo-o também com um orgulho enorme.
A apresentação do meu romance «O que Entra nos Livros» do próximo dia 25 (Lisboa, Casa Fernando Pessoa, Rua Coelho da Rocha, 16, em Campo de Ourique; 21.30) será feita por José Eduardo Agualusa, um escritor por quem tenho uma profunda admiração.
Eu a entrar numa reunião da câmara
O que coloco a seguir é um excerto do romance «O que Entra nos Livros». Sou eu a entrar numa reunião do executivo municipal de Monchique, há uns três anos. O vereador referido é o agora rebelde (ver post «Um golo de Pinto da Costa marcado com as duas mãos», ali abaixo). Na reunião imediatamente a seguir às ameaças referidas no excerto, confrontado com o sucedido, o vereador esteve sempre calado. O presidente, que agora lhe retirou os pelouros (um deles, imagine-se, o da cultura), disse nessa reunião que tinha de condenar o sucedido mas que compreendia certos estados de alma (presumo que estados de alma como os que tinham levado às ameaças). Bom, o excerto é o seguinte:
(…)
Perto do edifício da câmara o meu colega propôs que entrássemos num café, para ver se eu despertava um pouco. Alguns minutos depois, de lá de dentro, acabámos por assistir à chegada do presidente, que se encaminhou para um restaurante onde por vezes passava antes de seguir até à câmara e aí, na câmara, – supunha eu – ver no que paravam as coisas; a expressão era adequada, pensei, «ver no que paravam as coisas». Depois dele passaram os vereadores que o acompanhavam a tempo inteiro, e com remuneração, na autarquia; primeiro passou um, depois o outro. Aquilo era a vida deles, os empregos que tinham, daí que não se tornava difícil perceber a forma como se lhes agarravam, ano após ano, ainda por cima com o bónus manhoso que a política portuguesa tinha passado a atribuir a cargos do género, o de o tempo de serviço contar a dobrar para efeitos de reforma. Já se vê, é claro, que com algo daquele tipo podia dar-se o caso de uma pessoa num cargo político ter numa determinada altura mais anos de descontos para a segurança social do que anos de vida.
Mas adiante… Tomados os cafés e paga a conta, eu e o meu colega dirigimo-nos para o edifício da câmara. Entrámos e subimos as escadas que nos levariam ao primeiro andar, onde ficava o salão nobre, que acolhia as reuniões. Por aquelas escadas abaixo, segundo previsões do vereador a tempo inteiro que na prática era o número três na hierarquia, ainda outro colega meu, precisamente o que eu estava a substituir, haveria de rebolar para ser expulso de vez do executivo – mas não eram previsões muito fiáveis, pois o seu autor estava embriagado na altura em que as fazia. Eu lembrava-me da situação nalgumas das vezes em que por ali passava. E normalmente nessas alturas chegava-me um sorriso, discreto, acompanhado por uma pergunta, a de como é que uma coisa daquelas tinha sido possível sem que se estivesse na rodagem de um filme de Emir Kusturica.
(…)
(…)
Perto do edifício da câmara o meu colega propôs que entrássemos num café, para ver se eu despertava um pouco. Alguns minutos depois, de lá de dentro, acabámos por assistir à chegada do presidente, que se encaminhou para um restaurante onde por vezes passava antes de seguir até à câmara e aí, na câmara, – supunha eu – ver no que paravam as coisas; a expressão era adequada, pensei, «ver no que paravam as coisas». Depois dele passaram os vereadores que o acompanhavam a tempo inteiro, e com remuneração, na autarquia; primeiro passou um, depois o outro. Aquilo era a vida deles, os empregos que tinham, daí que não se tornava difícil perceber a forma como se lhes agarravam, ano após ano, ainda por cima com o bónus manhoso que a política portuguesa tinha passado a atribuir a cargos do género, o de o tempo de serviço contar a dobrar para efeitos de reforma. Já se vê, é claro, que com algo daquele tipo podia dar-se o caso de uma pessoa num cargo político ter numa determinada altura mais anos de descontos para a segurança social do que anos de vida.
Mas adiante… Tomados os cafés e paga a conta, eu e o meu colega dirigimo-nos para o edifício da câmara. Entrámos e subimos as escadas que nos levariam ao primeiro andar, onde ficava o salão nobre, que acolhia as reuniões. Por aquelas escadas abaixo, segundo previsões do vereador a tempo inteiro que na prática era o número três na hierarquia, ainda outro colega meu, precisamente o que eu estava a substituir, haveria de rebolar para ser expulso de vez do executivo – mas não eram previsões muito fiáveis, pois o seu autor estava embriagado na altura em que as fazia. Eu lembrava-me da situação nalgumas das vezes em que por ali passava. E normalmente nessas alturas chegava-me um sorriso, discreto, acompanhado por uma pergunta, a de como é que uma coisa daquelas tinha sido possível sem que se estivesse na rodagem de um filme de Emir Kusturica.
(…)
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terça-feira, 10 de julho de 2007
«O que Entra nos Livros», na Casa Fernando Pessoa
Na Casa Fernando Pessoa (Rua Coelho da Rocha, 16 – Campo de Ourique), pelas 21.30.
(...) Depois peguei novamente na escritora e afastei-me, com o senhor Sapinho Júnior a dizer para eu voltar sempre. Prometi que sim, sem me virar, mas ao mesmo tempo pensava que não sabia se iria conseguir cumprir a promessa. Provavelmente não voltaria ali. Estava a afastar-me, já devia ter andado uns dez metros. Ouvi novamente o livreiro, a dizer que talvez o mágico velhinho tivesse andado à procura de outros livros (...)
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O que Entra nos Livros
Um golo de Pinto da Costa marcado com as duas mãos
Esta foto (é de 2006, e é da autoria de Paulo Marcelino) ilustra a notícia do «Correio da manhã» (edição do último domingo, ver aqui) sobre a situação que se vive na câmara municipal da minha terra, Monchique. O presidente (de fato; e também de facto, embora não se saiba por quanto tempo mais) retirou a confiança (seja lá o que isso for), os pelouros e o regime de permanência a um dos seus dois vereadores (de casaco castanho). Como este vereador não renuncia ao cargo, o presidente tem agora consigo apenas um vereador, que também é o vice-presidente. Ou seja, tem dois votos, tantos como a oposição (dois vereadores), ficando o vereador rebelde com o quinto voto. Uma grande diferença para os meus tempos como vereador na câmara (há pouco mais de dois anos), quando as votações costumavam ser da seguinte forma: primeiro eu, depois o meu colega, e depois o presidente dizia qualquer coisa como «pronto, e a gente vota assim»; ele votava por ele próprio e pelos dois vereadores – até à altura em que comecei a insistir para que deixasse os seus vereadores falarem, e então, aos poucos, eles começaram a votar (o que na prática ia dar ao mesmo, porque os três votavam sempre no mesmo sentido). Houve, no entanto, uma excepção; uma vez, e algo que me pareceu estranho… O agora vereador rebelde, numa proposta em que eu e o meu colega votámos a favor (era uma proposta nossa) e em que o presidente e o vice-presidente votaram contra (como sempre), absteve-se. Claro que depois o presidente votou, digamos assim, em duplicado e a proposta não passou; utilizou uma coisa para mim esquisita, que é o «voto de qualidade», para os casos de empate – tipo Porto - 2, Sporting - 2, e então mal acaba o jogo o próprio presidente Pinto da Costa vai a correr ao balneário portista, equipa-se à pressa e entra em campo de azul e branco, ainda com os jogadores presentes e com o árbitro a postos, agarra na bola e vai a correr (o melhor que pode) metê-la na baliza do Sporting, e a assim a equipa dele ganha por 3 - 2, com um golo também «de qualidade».
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A Padeira - III
Terceiro capítulo de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. III
E os anos foram passando, uns atrás dos outros, desenfreadamente, como se tivessem pressa de ver Brites fazer-se mulher. Só que não tiveram muita sorte.
- Mulher é que aquilo não é!
Na verdade, Brites não ia nada bem encaminhada para ser rainha de beleza. Era grande como um boi, mal encarada como um lagarto e tinha uma cabeleira que parecia um molho de tojos secos. E diziam que era de bom osso constituída, pois saía sempre inteira das zaragatas de pancadaria em que o seu mau génio invariavelmente a levava a meter-se.
- É uma grande jogadora do pau, melhor até do que alguns homens que eu já tenho visto.
- Sim, maneja o cacete como ninguém.
A Brites nada metia medo. Era o que se podia dizer uma criatura valente.
- Um homem autêntico!
As pessoas assim pensavam. E Brites sem ter culpa nenhuma. Afinal, qual seria o problema de, sendo mulher, ter uma força capaz de levantar acima da cabeça um porco dos gordos, daqueles já prontos para a matança, e ter gosto pela pancadaria? Não poderia uma mulher ser assim? Mal se descuidava e chamavam-lhe logo homem, já era preciso ter azar.
- Grandes machistas, diriam na confraria feminista, se já existisse alguma.
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. III
E os anos foram passando, uns atrás dos outros, desenfreadamente, como se tivessem pressa de ver Brites fazer-se mulher. Só que não tiveram muita sorte.
- Mulher é que aquilo não é!
Na verdade, Brites não ia nada bem encaminhada para ser rainha de beleza. Era grande como um boi, mal encarada como um lagarto e tinha uma cabeleira que parecia um molho de tojos secos. E diziam que era de bom osso constituída, pois saía sempre inteira das zaragatas de pancadaria em que o seu mau génio invariavelmente a levava a meter-se.
- É uma grande jogadora do pau, melhor até do que alguns homens que eu já tenho visto.
- Sim, maneja o cacete como ninguém.
A Brites nada metia medo. Era o que se podia dizer uma criatura valente.
- Um homem autêntico!
As pessoas assim pensavam. E Brites sem ter culpa nenhuma. Afinal, qual seria o problema de, sendo mulher, ter uma força capaz de levantar acima da cabeça um porco dos gordos, daqueles já prontos para a matança, e ter gosto pela pancadaria? Não poderia uma mulher ser assim? Mal se descuidava e chamavam-lhe logo homem, já era preciso ter azar.
- Grandes machistas, diriam na confraria feminista, se já existisse alguma.
domingo, 8 de julho de 2007
Apresentação de «O que Entra nos Livros», Algarve
Uma sessão de apresentação esta Segunda-feira, dia 9 (16 horas) - ver aqui.
(...)
– António Manuel Venda. O nome, colega, diz-lhe alguma coisa?
– Autor? – perguntou o outro.
– O romance «O Medo Longe de Ti». Editora Temas e Debates.
O homem repetiu tudo para a funcionária, a quem tinha captado o olhar, como se aquilo fosse um jogo de passa-palavra. Enquanto ela se embrenhava nos registos informáticos, ele chegou-se ainda mais perto do senhor Sapinho Júnior e disse-lhe:
– Na Sapinho Livros não têm a obra, presumo…
– Ora exactamente – confirmou o senhor Sapinho Júnior. – E pretendo adquiri-la.
– Autor? – perguntou o outro.
– O romance «O Medo Longe de Ti». Editora Temas e Debates.
O homem repetiu tudo para a funcionária, a quem tinha captado o olhar, como se aquilo fosse um jogo de passa-palavra. Enquanto ela se embrenhava nos registos informáticos, ele chegou-se ainda mais perto do senhor Sapinho Júnior e disse-lhe:
– Na Sapinho Livros não têm a obra, presumo…
– Ora exactamente – confirmou o senhor Sapinho Júnior. – E pretendo adquiri-la.
(...)
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O que Entra nos Livros
Textos sobre livros - 31
«Breve História de Quase Tudo», de Bill Bryson (Quetzal Editores, 495 pp.)
A ciência divertida
Aquele que é por muita gente considerado como o maior escritor de viagens da actualidade, num registo algo diferente do habitual, mas sempre fascinante. Notável a escrever, seja sobre a terra dos cangurus, seja sobre os seres que pulam na Grã-bretanha, Bill Bryson mostra em «Breve História de Quase Tudo» como a ciência pode ser uma terra de viagens divertidas e apaixonantes.
Distinguido em 2004 com o «Prémio Aventis», para a melhor obra de divulgação científica, esta «Breve História de Quase Tudo», do «viajante relutante» Bill Bryson, bem poderia fazer parte de algum pacote que apareça por cá à conta do tão apregoado choque tecnológico, de que cada vez se fala menos. O Ministério da Educação – ou o que tem a ver com a ciência e a tecnologia, ou até algum de outras temáticas, como a da economia (se tiver a palavra inovação agarrada) ou até, em último caso, o que trate da solidariedade social –, o Ministério da Educação, dizia, podia bem oferecer um exemplar desta fantástica viagem pela ciência a cada aluno do secundário. Talvez tivesse mais efeitos a médio prazo do que muito do que para aí venha à conta do tal choque.
O poder da escrita de Bryson, o mais lido escritor de viagens do mundo, é colocado aqui exclusivamente ao serviço da ciência, tornando algo capaz de assustar muita gente numa história fascinante (ou num emaranhado de histórias fascinantes), na qual as surpresas surgem a cada página. Porque Bryson fala sobretudo de coisas que dizem respeito a cada ser humano, e ao falar dessas coisas usa sempre um registo tremendamente divertido, deixando a ideia, até pela amostra dos livros de viagens que o tornaram famoso, de que não o faz propositadamente mas sim porque é essa a sua maneira de escrever. Átomos, quarks, aquecimento global, galáxias, partículas, dinossauros, tempestades, ozono, efeito estufa, doenças, estrelas, organismos, cromossomas, galáxias, urânio, asteróides, mil e uma coisas aparecem em menos de 500 páginas onde Bryson condensa a fantástica aventura de quase tudo aquilo que o ser humano conhece.
O ser humano, sempre o ser humano; as pessoas. Muito do fascínio que o livro transmite tem a ver, precisamente, com as pessoas, com as peripécias em que se viram envolvidas na descoberta de… quase tudo. Veja-se como Bryson fala a certa altura da famosa Madame Curie, vencedora de dois Prémios Nobel e que «nunca foi eleita para a Academia de Ciências, em grande parte por, depois da morte de Pierre, ter tido um caso com um físico casado que era suficientemente indiscreto para escandalizar até os franceses – ou, pelo menos, os velhotes que dirigem a academia, o que não será bem a mesma coisa»: «Durante muito tempo, pensou-se que uma coisa tão milagrosamente energética como a radioactividade só podia ser benéfica. Durante anos, vários fabricantes de pasta de dentes e laxantes puseram tório radioactivo nos seus produtos (…) A radioactividade só foi banida dos produtos de consumo em 1938. Nessa altura já era tarde de mais para Marie Curie, que morreu de leucemia em 1934. A radiação é tão perniciosa e duradoura que ainda hoje todos os seus artigos científicos de 1890 – até os seus livros de cozinha – são demasiado perigosos para serem manuseados livremente. Os seus livros de laboratório estão guardados dentro de caixas forradas a chumbo, e quem quiser consultá-los tem de usar roupas especiais de protecção.»
Veja-se ainda uma tirada sobre Isaac Newton: «em estudante, frustrado sobre as limitações da matemática convencional, inventou o cálculo, uma forma matemática inteiramente nova, mas não contou nada a ninguém durante 27 anos». Mas há mais, sempre assim, com a marca divertida de Bill Bryson.
Distinguido em 2004 com o «Prémio Aventis», para a melhor obra de divulgação científica, esta «Breve História de Quase Tudo», do «viajante relutante» Bill Bryson, bem poderia fazer parte de algum pacote que apareça por cá à conta do tão apregoado choque tecnológico, de que cada vez se fala menos. O Ministério da Educação – ou o que tem a ver com a ciência e a tecnologia, ou até algum de outras temáticas, como a da economia (se tiver a palavra inovação agarrada) ou até, em último caso, o que trate da solidariedade social –, o Ministério da Educação, dizia, podia bem oferecer um exemplar desta fantástica viagem pela ciência a cada aluno do secundário. Talvez tivesse mais efeitos a médio prazo do que muito do que para aí venha à conta do tal choque.
O poder da escrita de Bryson, o mais lido escritor de viagens do mundo, é colocado aqui exclusivamente ao serviço da ciência, tornando algo capaz de assustar muita gente numa história fascinante (ou num emaranhado de histórias fascinantes), na qual as surpresas surgem a cada página. Porque Bryson fala sobretudo de coisas que dizem respeito a cada ser humano, e ao falar dessas coisas usa sempre um registo tremendamente divertido, deixando a ideia, até pela amostra dos livros de viagens que o tornaram famoso, de que não o faz propositadamente mas sim porque é essa a sua maneira de escrever. Átomos, quarks, aquecimento global, galáxias, partículas, dinossauros, tempestades, ozono, efeito estufa, doenças, estrelas, organismos, cromossomas, galáxias, urânio, asteróides, mil e uma coisas aparecem em menos de 500 páginas onde Bryson condensa a fantástica aventura de quase tudo aquilo que o ser humano conhece.
O ser humano, sempre o ser humano; as pessoas. Muito do fascínio que o livro transmite tem a ver, precisamente, com as pessoas, com as peripécias em que se viram envolvidas na descoberta de… quase tudo. Veja-se como Bryson fala a certa altura da famosa Madame Curie, vencedora de dois Prémios Nobel e que «nunca foi eleita para a Academia de Ciências, em grande parte por, depois da morte de Pierre, ter tido um caso com um físico casado que era suficientemente indiscreto para escandalizar até os franceses – ou, pelo menos, os velhotes que dirigem a academia, o que não será bem a mesma coisa»: «Durante muito tempo, pensou-se que uma coisa tão milagrosamente energética como a radioactividade só podia ser benéfica. Durante anos, vários fabricantes de pasta de dentes e laxantes puseram tório radioactivo nos seus produtos (…) A radioactividade só foi banida dos produtos de consumo em 1938. Nessa altura já era tarde de mais para Marie Curie, que morreu de leucemia em 1934. A radiação é tão perniciosa e duradoura que ainda hoje todos os seus artigos científicos de 1890 – até os seus livros de cozinha – são demasiado perigosos para serem manuseados livremente. Os seus livros de laboratório estão guardados dentro de caixas forradas a chumbo, e quem quiser consultá-los tem de usar roupas especiais de protecção.»
Veja-se ainda uma tirada sobre Isaac Newton: «em estudante, frustrado sobre as limitações da matemática convencional, inventou o cálculo, uma forma matemática inteiramente nova, mas não contou nada a ninguém durante 27 anos». Mas há mais, sempre assim, com a marca divertida de Bill Bryson.
sábado, 7 de julho de 2007
A promiscuidade entre a política e o futebol
A imagem aqui ao lado é uma parte de uma foto divulgada no blog «Mons Cicus». Lá se conta uma estranha (provavelmente inédita não só em Portugal mas em todo o mundo) história de promiscuidade entre a política e o futebol. Em três posts (1, 2 e 3) pode-se ficar a perceber não direi tudo, mas boa parte deste caso que só não surpreende quem não conhece aquilo que é a política em Monchique, ou melhor, que tem sido no último quarto de século de regime «ditutarial».
Na última reunião da Assembleia Municipal, o presidente da câmara apareceu com uma pasta de papelada sobre o assunto, esteve uma meia-hora em explicações e no final tentou decretar que estava tudo explicado e que não se falava mais no assunto. Depois dessa meia-hora, só se poderia fazer uma pergunta: «Importa-se de repetir?» Isto porque não deu para perceber nada da situação.
Muito resumidamente, os responsáveis do clube de futebol mandaram tirar a cortiça dos terrenos que envolvem o campo de jogos e venderam-na. Só que esses terrenos, embora o presidente da câmara diga que pertencem ao clube, parece que pertencem à câmara (um dos seus vereadores – seus dele, presidente – diz isso, precisamente o vereador que apresentou a proposta do post 3 referido ali acima).
Curiosamente, na reunião da Assembleia Municipal estava o presidente do clube (é deputado da maioria que suporta o presidente da câmara), mas não interveio – aliás, eu nunca assisti a uma intervenção dele desde que estou na Assembleia Municipal; como outros deputados da sua bancada, apenas faz sinal com o braço nas alturas de votação.
Esta posição do vereador que diz que os terrenos pertencem à câmara é uma novidade para mim. Nos meus tempos de vereador, ele, o presidente e o vice-presidente votavam sempre no mesmo sentido, invariavelmente contrário àquele que era defendido por mim e pelo meu colega (que completávamos o executivo, de cinco elementos). Aliás, das dezenas de propostas que fiz mais o meu colega (uma delas era para retirar ao presidente o uso de uma das duas viaturas que costumava conduzir – ou o carro ou o jipe), creio que só em relação a uma delas é que não tiveram lata para votar contra; era para não se fumar nas reuniões de câmara (fumavam os três até aí, e não sei se entretanto a prática já foi retomada). Mais surpresa ainda é a posição do vereador porque ele nas reuniões praticamente não intervinha, apenas votava, e muitas vezes nem isso; o presidente antecipava-se e dizia coisas do género «pronto, nós votamos assim» e a coisa seguia. A partir de uma certa altura, como aquilo já me chateava, comecei a protestar, para que o presidente deixasse os seus dois vereadores falarem, para que dessem opiniões, e a situação mudou um pouco; este vereador da proposta do post 3 parecia sentir necessidade de intervir, de dizer qualquer coisa, nem que fosse uma redundância qualquer. Mas continuavam os três a votar sempre no mesmo sentido, como se aquela união fosse inquebrável. Daí a minha surpresa com a actuação daquele vereador. O resto, como referi no início, não me surpreende absolutamente nada.
Na última reunião da Assembleia Municipal, o presidente da câmara apareceu com uma pasta de papelada sobre o assunto, esteve uma meia-hora em explicações e no final tentou decretar que estava tudo explicado e que não se falava mais no assunto. Depois dessa meia-hora, só se poderia fazer uma pergunta: «Importa-se de repetir?» Isto porque não deu para perceber nada da situação.
Muito resumidamente, os responsáveis do clube de futebol mandaram tirar a cortiça dos terrenos que envolvem o campo de jogos e venderam-na. Só que esses terrenos, embora o presidente da câmara diga que pertencem ao clube, parece que pertencem à câmara (um dos seus vereadores – seus dele, presidente – diz isso, precisamente o vereador que apresentou a proposta do post 3 referido ali acima).
Curiosamente, na reunião da Assembleia Municipal estava o presidente do clube (é deputado da maioria que suporta o presidente da câmara), mas não interveio – aliás, eu nunca assisti a uma intervenção dele desde que estou na Assembleia Municipal; como outros deputados da sua bancada, apenas faz sinal com o braço nas alturas de votação.
Esta posição do vereador que diz que os terrenos pertencem à câmara é uma novidade para mim. Nos meus tempos de vereador, ele, o presidente e o vice-presidente votavam sempre no mesmo sentido, invariavelmente contrário àquele que era defendido por mim e pelo meu colega (que completávamos o executivo, de cinco elementos). Aliás, das dezenas de propostas que fiz mais o meu colega (uma delas era para retirar ao presidente o uso de uma das duas viaturas que costumava conduzir – ou o carro ou o jipe), creio que só em relação a uma delas é que não tiveram lata para votar contra; era para não se fumar nas reuniões de câmara (fumavam os três até aí, e não sei se entretanto a prática já foi retomada). Mais surpresa ainda é a posição do vereador porque ele nas reuniões praticamente não intervinha, apenas votava, e muitas vezes nem isso; o presidente antecipava-se e dizia coisas do género «pronto, nós votamos assim» e a coisa seguia. A partir de uma certa altura, como aquilo já me chateava, comecei a protestar, para que o presidente deixasse os seus dois vereadores falarem, para que dessem opiniões, e a situação mudou um pouco; este vereador da proposta do post 3 parecia sentir necessidade de intervir, de dizer qualquer coisa, nem que fosse uma redundância qualquer. Mas continuavam os três a votar sempre no mesmo sentido, como se aquela união fosse inquebrável. Daí a minha surpresa com a actuação daquele vereador. O resto, como referi no início, não me surpreende absolutamente nada.
A Padeira - II
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. II
- Primeiro que tudo, esclareça-se já uma coisa. A gente está para aqui a falar de mulher, mulher para cá, mulher para lá, e a criatura, afinal, ainda vem nascendo.
A mãe gritava que nem uma louca, e as pessoas até se arrepiavam. Era uns gritos que se ouviam pelos quatro cantos de Faro, e os restantes algarvios só não ouviam também porque fora da cidade a distância já começava a ser grande demais. Coisa que se calhar até nem lhes causava grandes prejuízos.
- A criança nasceu agora mesmo.
- E como já se disse que iria ser mulher, estragou-se logo a surpresa.
O pai estava tão babado que gritou em menos de nada que havia vinho para todos.
- Ah, é isso mesmo, a gente tinha-se esquecido de dizer que o homem tem uma taberna. Modesta, é certo, mas quando o vinho é de graça ninguém se importa com luxos!
- Quer dizer, eu gosto de ser bem servido.
- Bebe e cala-te, mal agradecido!
A mãe gritava que nem uma louca, e as pessoas até se arrepiavam. Era uns gritos que se ouviam pelos quatro cantos de Faro, e os restantes algarvios só não ouviam também porque fora da cidade a distância já começava a ser grande demais. Coisa que se calhar até nem lhes causava grandes prejuízos.
- A criança nasceu agora mesmo.
- E como já se disse que iria ser mulher, estragou-se logo a surpresa.
O pai estava tão babado que gritou em menos de nada que havia vinho para todos.
- Ah, é isso mesmo, a gente tinha-se esquecido de dizer que o homem tem uma taberna. Modesta, é certo, mas quando o vinho é de graça ninguém se importa com luxos!
- Quer dizer, eu gosto de ser bem servido.
- Bebe e cala-te, mal agradecido!
Começos prometedores - 3
«– Filhusdumagrandessíssima – balbuciou Lituma, sentindo que ia vomitar.»
Início do romance «Quem Matou Palomino Molero?», de Mario Vargas Llosa, 1986 (edição portuguesa de Publicações Dom Quixote, 1988)
A Padeira - I
Leio aqui, no blog «Casario do Ginjal», uma referência a uma mulher da minha terra, a célebre Padeira de Aljubarrota. Eu não sou de Aljubarrota, sou de bem longe, do Algarve; a mulher, que se chamava Brites de Almeida, nasceu na cidade de Faro (e as voltas da vida é que a levaram até Aljubarrota, onde encontraria, digamos assim, a fama). Em tempos escrevi um conto que acaba por ser a história da padeira Brites de Almeida. Faz parte do livro «O Velho que Esperava por D. Sebastião», publicado em 1999. Vou publicar esse conto aqui, em pequenos capítulos. Chama-se «Brites e as Gaivotas».
Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. I
Puseram-lhe o nome de Brites, que era mesmo um nome um bocado estranho para uma mulher.
- Brites de Almeida.
E ninguém sabia se o Almeida era da parte do pai, se da parte da mãe. De algum haveria de ser, ou se calhar até seria dos dois.
- Sim, vá lá a gente dar palpites! Só aparecerão os cartórios daqui a muitos anos, e serão bem demorados, tanto os anos como os cartórios. Por isso, fica já avisado quem estiver à espera para ver ou quem estiver pensando em lá ir.
- Bem, adiante.
Os desvios do caminho principal eram coisas que não interessavam. Coisas que alguns se punham a dizer para aumentarem a conversa.
- Há quem goste muito de falar.
A verdade é que o facto de a mulher ser Almeida gerava um grande burburinho. Não sobre a veracidade do apelido, que era garantida, mas sobre a proveniência, que como se disse ninguém sabia. Seria do pai, como de costume? Seria da mãe? Seria dos dois?
- É esta a fé de quase toda a gente. Casa-se um Almeida com uma Almeida, se calhar até são primos, e depois nasce uma criatura capaz de deixar o Diabo de boca aberta. Pode muito bem acontecer.
- Mas o melhor é esquecermos isso. Ainda estamos todos enganados, para aqui a conversarmos, ora um ora outro…
- Sim, sabe lá a gente o que diz!
- Exactamente, vizinho! Vamos é para acontecidos vistos e deixemos de fazer figuras tristes de gente alcoviteira.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
Frases mal ditas - 5
«Como os sioures comprendem, p’la história, p’la autoridade e p’la razão de ser, o Partido Socialista não recebe lições de democracia de ninguém nesta câmara.»
Alberto Martins, líder parlamentar do Partido Socialista, 05.07.07 (na Assembleia da República)
Nota: Acho inacreditável a figura triste que Alberto Martins anda a fazer no Parlamento; escrevo isto porque me lembro de que antes do 25 de Abril foi capaz, na Universidade de Coimbra, onde liderava a Associação de Estudantes, de levantar bem a voz para Américo Tomás – é claro que estava a levantar a voz para um idiota, mas muitas das pessoas que rodeavam o idiota não eram para brincadeiras.
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Vale a pena
Vale a pena ler o artigo de Baptista Bastos de hoje no «Jornal de Negócios». E o de Sexta-feira passada a mesma coisa. São duas peças notáveis sobre o actual estado (sujo, bastante sujo) da governação em Portugal.
Uma apresentação no Algarve
Uma apresentação do romance «O que Entra nos Livros»… Segunda-feira, dia nove, pelas 16 horas, no Algarve (Vila Real de Santo António – Centro Cultural António Aleixo). A apresentação está integrada na iniciativa «Nas Páginas dos Livros», da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António.
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terça-feira, 3 de julho de 2007
Textos sobre livros - 30
«Sem Notícias de Gurb», de Eduardo Mendoza (Notícias Editorial, 154 pp. – isto no meu exemplar, porque agora a editora chama-se Casa das Letras)
Mendoza divertidíssimo
Dois extraterrestres na cidade de Eduardo Mendoza, Gurb e um companheiro do qual não se chega a saber o nome, coisa que na obra do escritor catalão não é novidade. Como o prodígio da imaginação.
Tomei contacto com a obra de Eduardo Mendoza (n. Barcelona, 1943) em finais da década de 1980, quando uma série de livros seus foram lançados numa colecção da Dom Quixote chamada «Letras de Espanha». Mendoza surgiu então entre nomes completamente desconhecidos como Luis Landero ou Jesus Moncada e outros de situação bem diferente por cá, como o Nobel de 1989, Camilo José Cela. O primeiro livro que li de Mendoza foi uma das sagas do seu detective inominado (tal como o extraterrestre narrador de «Sem Notícas de Gurb»), que vive num manicómio de Barcelona, «O Labirinto das Azeitonas». Lembro-me de ter lido os primeiros capítulos das aventuras do inusitado investigador numa praia algarvia perto da minha terra, Monchique, e de ter ficado um bocado atrapalhado por não saber o que fazer com as gargalhadas que o livro me provocava no meio do areal cheio de gente. Era a segunda aventura; a primeira, que comprei e li mal cheguei ao fim dessa, «O Mistério da Cripta Assombrada», estava então nas Edições Afrontamento. Depois, claro, li outros livros de Mendoza, «A cidade dos Prodígios» (o primeiro título da colecção da Dom Quixote, onde a verdadeira personagem central é a Barcelona dos anos que intermediaram as duas exposições universais que a cidade acolheu, em 1888 e em 1929) ou «A Verdade Sobre o Caso Savolta» (a estreia de Mendoza como romancista, em 1975, altura em que vivia em Nova Iorque, e já com Barcelona a fazer de protagonista, a Barcelona palco de confrontos entre operários e patrões, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial). Estes eram romances mais sérios, mais densos, e aumentaram o meu fascínio pelo autor, tendência que nem outros títulos que li depois («A Ilha Inaudita» ou «O Ano do Dilúvio», que não me marcaram particularmente, sobretudo pelos temas que exploravam) conseguiram inverter.
Já tinha ouvido falar de «Sem Notícias de Gurb», que é o resultado de uma colaboração de Mendoza com o jornal espanhol «El País», quando a cidade de Barcelona estava de pernas para o ar por causa das obras para os Jogos Olímpicos que viria a acolher em 1992. Já tinha ouvido falar, mas não fazia ideia do assunto que tratava. Depois de ler, a sensação com que fiquei é de que só mesmo Mendoza poderia ter escrito um livro assim. A comprová-lo, o comentário que a editora portuguesa trouxe de Espanha junto com o texto em forma de diário de um extraterrestre, o comentário de um crítico (suponho) que diz: «Trata-se de um livro ligeiro, de leitura fácil e bastante perigoso para quem lhe pegue pela primeira vez. É recomendável que a sua leitura se faça em privado, não vá o leitor ter um ataque incontrolável de riso e passe por louco.» Como me lembrei daquela tarde de praia de 1989, eu a ler os primeiros capítulos de «O Labirinto das Azeitonas»... E como me lembrei agora, em 2004 [este texto é de 2004], ao ler o diário escrito pelo extraterrestre sem nome, o companheiro de Gurb, como me lembrei de que deixar uma história assim (dois extraterrestres com poderes quase ilimitados à solta em Barcelona) nas mãos de um grande escritor só podia resultar num livro divertidíssimo. À conta do génio de Mendoza, esquece-se até os problemas da tradução (e a revisão vai pelos mesmos caminhos). Convinha a editora – Notícias Editorial [actual Casa das Letras] – ter mais atenção, pois já num livro anterior que publicou («A Aventura do Cabeleireiro de Senhoras», terceira aparição do detective sem nome) estes problemas são bem evidentes. Mendoza não merece, nem os leitores. E o companheiro de Gurb não gostaria de ver o seu diário assim tratado, ele que se calhar ainda anda por aí, ele e Gurb, mais de uma década depois, sem darem notícias.
Mendoza divertidíssimo
Dois extraterrestres na cidade de Eduardo Mendoza, Gurb e um companheiro do qual não se chega a saber o nome, coisa que na obra do escritor catalão não é novidade. Como o prodígio da imaginação.
Tomei contacto com a obra de Eduardo Mendoza (n. Barcelona, 1943) em finais da década de 1980, quando uma série de livros seus foram lançados numa colecção da Dom Quixote chamada «Letras de Espanha». Mendoza surgiu então entre nomes completamente desconhecidos como Luis Landero ou Jesus Moncada e outros de situação bem diferente por cá, como o Nobel de 1989, Camilo José Cela. O primeiro livro que li de Mendoza foi uma das sagas do seu detective inominado (tal como o extraterrestre narrador de «Sem Notícas de Gurb»), que vive num manicómio de Barcelona, «O Labirinto das Azeitonas». Lembro-me de ter lido os primeiros capítulos das aventuras do inusitado investigador numa praia algarvia perto da minha terra, Monchique, e de ter ficado um bocado atrapalhado por não saber o que fazer com as gargalhadas que o livro me provocava no meio do areal cheio de gente. Era a segunda aventura; a primeira, que comprei e li mal cheguei ao fim dessa, «O Mistério da Cripta Assombrada», estava então nas Edições Afrontamento. Depois, claro, li outros livros de Mendoza, «A cidade dos Prodígios» (o primeiro título da colecção da Dom Quixote, onde a verdadeira personagem central é a Barcelona dos anos que intermediaram as duas exposições universais que a cidade acolheu, em 1888 e em 1929) ou «A Verdade Sobre o Caso Savolta» (a estreia de Mendoza como romancista, em 1975, altura em que vivia em Nova Iorque, e já com Barcelona a fazer de protagonista, a Barcelona palco de confrontos entre operários e patrões, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial). Estes eram romances mais sérios, mais densos, e aumentaram o meu fascínio pelo autor, tendência que nem outros títulos que li depois («A Ilha Inaudita» ou «O Ano do Dilúvio», que não me marcaram particularmente, sobretudo pelos temas que exploravam) conseguiram inverter.
Já tinha ouvido falar de «Sem Notícias de Gurb», que é o resultado de uma colaboração de Mendoza com o jornal espanhol «El País», quando a cidade de Barcelona estava de pernas para o ar por causa das obras para os Jogos Olímpicos que viria a acolher em 1992. Já tinha ouvido falar, mas não fazia ideia do assunto que tratava. Depois de ler, a sensação com que fiquei é de que só mesmo Mendoza poderia ter escrito um livro assim. A comprová-lo, o comentário que a editora portuguesa trouxe de Espanha junto com o texto em forma de diário de um extraterrestre, o comentário de um crítico (suponho) que diz: «Trata-se de um livro ligeiro, de leitura fácil e bastante perigoso para quem lhe pegue pela primeira vez. É recomendável que a sua leitura se faça em privado, não vá o leitor ter um ataque incontrolável de riso e passe por louco.» Como me lembrei daquela tarde de praia de 1989, eu a ler os primeiros capítulos de «O Labirinto das Azeitonas»... E como me lembrei agora, em 2004 [este texto é de 2004], ao ler o diário escrito pelo extraterrestre sem nome, o companheiro de Gurb, como me lembrei de que deixar uma história assim (dois extraterrestres com poderes quase ilimitados à solta em Barcelona) nas mãos de um grande escritor só podia resultar num livro divertidíssimo. À conta do génio de Mendoza, esquece-se até os problemas da tradução (e a revisão vai pelos mesmos caminhos). Convinha a editora – Notícias Editorial [actual Casa das Letras] – ter mais atenção, pois já num livro anterior que publicou («A Aventura do Cabeleireiro de Senhoras», terceira aparição do detective sem nome) estes problemas são bem evidentes. Mendoza não merece, nem os leitores. E o companheiro de Gurb não gostaria de ver o seu diário assim tratado, ele que se calhar ainda anda por aí, ele e Gurb, mais de uma década depois, sem darem notícias.
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