Com a nova época futebolística já em preparação, e antes de recomeçar a escrever sobre futebol – sobre o Sporting, já se vê –, deixo aqui um texto que escrevi há uns anos (em 2001, também em princípio de época, e agora corrigido) sobre um pequeno livro de Camilo José Cela chamado «Onze Contos de Futebol». Leitura muito, mas mesmo muito recomendável.
Textos sobre livros – 33
«Onze Contos de Futebol», de Camilo José Cela (Edições ASA, 74 pp., primeira edição portuguesa em 1994)
Cela e o joga da bola
Agora que estamos em começo de época de futebol, talvez seja a altura ideal para apresentar um livro sobre o tema. Para não diminuir o jogo da bola, trazendo aqui um qualquer desconhecido, escolhi «Onze Contos de Futebol», obra de um génio que até teve direito a Nobel da Literatura.
Camilo José Cela escreveu «Onze Contos de Futebol» em 1963, quando o futebol era bem diferente do de agora. De qualquer forma, estes pequenos contos não estão colados a nenhuma época em especial. São verdadeiramente intemporais.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, na localidade de Iria Flávia, em 1916. O pai era espanhol e a mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia. Não foi propriamente um romancista, mais do que isso, muito mais, foi um escritor, dono de uma obra multifacetada, onde se destacam os contos e os livros de viagens. E também os romances, obviamente, romances que em muitos casos acabam por ser emaranhados de histórias e mais histórias, surgidas em catadupa; histórias da Galiza e do seu mundo fantástico, da Galiza fantástica de Cela.
Nestes «contos de futebol», Cela não conta simples histórias do pontapé na bola. O que neles se pode encontrar é de novo um certo mundo de fascínio do grande escritor galego, com personagens mirabolantes e situações inusitadas. Como exemplo, deixo o início de uma das histórias, que levou o título «Como um cão no entrudo».
O ofício de cão é um mau ofício, um ofício sem meio termo: pelos vistos entre os cães não há classe média, mas sim áurea aristocracia e sebenta e faminta vulgaridade.Uns cães vivem como duques e comem peitinhos de frango e bebem leite, e outros, pelo contrário, farejam nos matadouros, levam pauladas e, quando chega o carnaval, até voam pelos ares, com o espinhaço partido em dois. Os cães, pelo entrudo, são pintados às riscas para maior e mais cauteloso escárnio do próprio e regozijo dos outros, e assim, quando vão pelos ares, as pessoas dizem: «Parecem borboletas!», e divertem-se honestamente e sem fazer mal a ninguém (o cão não conta, pois para isso é cão e não vereador, ou proprietário de uma loja de souvenirs).
A Blas Tronchón, Harinita, quando o jogo acabou, puseram-no no meio da manta e começaram a atirá-lo ao ar e a divertir-se com ele, como fazem aos cães no entrudo. A cena foi de muita graça e crueldade, e o público, enquanto moíam os ossos a Blas Tranchón, Harinita, divertiu-se com uma circunspecção muito recatada.
– Que não tivesse falhado o penalti, não é verdade?
– Pois claro, é como eu costumo dizer: que não tivesse falhado o penalti. Assim vai aprender a afinar a pontaria!
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