«Memórias de um Anão Gnóstico», de David Madsen (Temas e Debates, 301 pp.)
O pequeno grande narrador
Peppe, um anão corcunda que a certa altura diz de si próprio estar «aprisionado numa jaula de carne, ossos e cuspo», conta a sua vida na Itália renascentista ao longo de três centenas de páginas. Mais que fossem...
O sítio onde Peppe nasceu, em Roma, era «pouco mais do que um casebre», numa zona da qual diziam ter os moradores «o diabo em pessoa». Peppe pensava o mesmo: «são teimosos, grosseiros, de uma independência feroz, uns verdadeiros chacais (...) Deram-me pontapés, atiraram-me com lixo, abusaram de mim, fui espancado quase diariamente.»
Talvez tenha sido uma vida assim começada a levar à comparação de «Memórias de um Anão Gnóstico» com o célebre «O Perfume», de Patrick Süskind, mas a verdade é que o romance de David Madsen (pseudónimo de um filósofo e teólogo nascido em Londres e a viver em Copenhaga), se em peripécias não lhe fica atrás, é incomparavelmente mais bem escrito. A vida de Peppe, desde o casebre até à corte papal, é um manancial de episódios que metem religião, sexo, corrupção, violência, vícios, artes e espertezas mais ou menos saloias, num mundo que mistura as maiores misérias com as mais incríveis formas de opulência.
Aos 13 anos, numa igreja, Peppe conhece Laura. «Os traços pálidos e tranquilos de uma jovem madona estavam enquadrados por uma cabeleira oval que tinha toda a delicadeza de ouro em fios.» É ela que vai transformar a vida daquele jovem anão ignorante. «Durante duas horas, uma noite por semana, sentava-me ao lado de Lady Laura, na biblioteca do seu palazzo, enquanto ela me ensinava pacientemente os pontos essenciais da gramática, da pronúncia, da escrita, da retórica e do desenvolvimento da linguagem. Falava-me de livros grandiosos e maravilhosos, de poesia, música, pintura, teatro e da história da humanidade. Revelou-me alguns dos segredos dos corpos celestes e de como o movimento dos astros afectava as nossas vidas cá em baixo.»
Nos anos seguintes, Peppe finge-se o mesmo ignorante de sempre junto da mãe, mas penetra cada vez mais em algo novo que Laura lhe mostra, o gnosticismo, um movimento com raízes na ciência do sagrado do Egipto e na filosofia Grega. É ele próprio, Peppe, que fala do assunto. «... há dois poderes iguais no universo, um bom e um mau, que estão perpetuamente em guerra um com o outro. O poder bom criou o espírito, enquanto que o mau criou a matéria. (...) Quando nascemos no mundo da matéria, caímos do nosso verdadeiro estado espiritual; o objectivo da nossa existência é regressar a ele. O diabo (ou, pelo menos, um diabo) criou este mundo, que é o inferno. (...) Admiram-se que eu o tenha abraçado [o gnosticismo] tão avidamente, tendo sido amaldiçoado com um corpo como o meu?»
Laura não escapa às garras de um dos inquisidores papais, mas Peppe tem mais sorte. É vendido por esse «santo» inquisidor, por 20 ducados, ao dono de uma espécie de circo ambulante, um tal Mestre António. Leva na memória a última palavra lida nos lábios de Laura, «mestre»; não se trata do dono do circo, mas Peppe há-de encontrá-lo. E há-de encontrar Giovanni de' Medici, que acabará como papa Leão X. Dele, Peppe será amigo, confidente, conselheiro, tantas coisas, até angariador de rapazes «bem dotados» pelos becos malcheirosos de Roma. E depois dos estragos feitos pelos rapazes, ler-lhe-á passagens de Santo Agostinho, de cada vez que o médico aparecer para a aplicação de unguentos e emplastros.
O pequeno grande narrador
Peppe, um anão corcunda que a certa altura diz de si próprio estar «aprisionado numa jaula de carne, ossos e cuspo», conta a sua vida na Itália renascentista ao longo de três centenas de páginas. Mais que fossem...
O sítio onde Peppe nasceu, em Roma, era «pouco mais do que um casebre», numa zona da qual diziam ter os moradores «o diabo em pessoa». Peppe pensava o mesmo: «são teimosos, grosseiros, de uma independência feroz, uns verdadeiros chacais (...) Deram-me pontapés, atiraram-me com lixo, abusaram de mim, fui espancado quase diariamente.»
Talvez tenha sido uma vida assim começada a levar à comparação de «Memórias de um Anão Gnóstico» com o célebre «O Perfume», de Patrick Süskind, mas a verdade é que o romance de David Madsen (pseudónimo de um filósofo e teólogo nascido em Londres e a viver em Copenhaga), se em peripécias não lhe fica atrás, é incomparavelmente mais bem escrito. A vida de Peppe, desde o casebre até à corte papal, é um manancial de episódios que metem religião, sexo, corrupção, violência, vícios, artes e espertezas mais ou menos saloias, num mundo que mistura as maiores misérias com as mais incríveis formas de opulência.
Aos 13 anos, numa igreja, Peppe conhece Laura. «Os traços pálidos e tranquilos de uma jovem madona estavam enquadrados por uma cabeleira oval que tinha toda a delicadeza de ouro em fios.» É ela que vai transformar a vida daquele jovem anão ignorante. «Durante duas horas, uma noite por semana, sentava-me ao lado de Lady Laura, na biblioteca do seu palazzo, enquanto ela me ensinava pacientemente os pontos essenciais da gramática, da pronúncia, da escrita, da retórica e do desenvolvimento da linguagem. Falava-me de livros grandiosos e maravilhosos, de poesia, música, pintura, teatro e da história da humanidade. Revelou-me alguns dos segredos dos corpos celestes e de como o movimento dos astros afectava as nossas vidas cá em baixo.»
Nos anos seguintes, Peppe finge-se o mesmo ignorante de sempre junto da mãe, mas penetra cada vez mais em algo novo que Laura lhe mostra, o gnosticismo, um movimento com raízes na ciência do sagrado do Egipto e na filosofia Grega. É ele próprio, Peppe, que fala do assunto. «... há dois poderes iguais no universo, um bom e um mau, que estão perpetuamente em guerra um com o outro. O poder bom criou o espírito, enquanto que o mau criou a matéria. (...) Quando nascemos no mundo da matéria, caímos do nosso verdadeiro estado espiritual; o objectivo da nossa existência é regressar a ele. O diabo (ou, pelo menos, um diabo) criou este mundo, que é o inferno. (...) Admiram-se que eu o tenha abraçado [o gnosticismo] tão avidamente, tendo sido amaldiçoado com um corpo como o meu?»
Laura não escapa às garras de um dos inquisidores papais, mas Peppe tem mais sorte. É vendido por esse «santo» inquisidor, por 20 ducados, ao dono de uma espécie de circo ambulante, um tal Mestre António. Leva na memória a última palavra lida nos lábios de Laura, «mestre»; não se trata do dono do circo, mas Peppe há-de encontrá-lo. E há-de encontrar Giovanni de' Medici, que acabará como papa Leão X. Dele, Peppe será amigo, confidente, conselheiro, tantas coisas, até angariador de rapazes «bem dotados» pelos becos malcheirosos de Roma. E depois dos estragos feitos pelos rapazes, ler-lhe-á passagens de Santo Agostinho, de cada vez que o médico aparecer para a aplicação de unguentos e emplastros.
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