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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A Padeira – XV, XVI e XVII

Os três capítulos finais (XV, XVI e XVII) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. XV
Os castelhanos eram mais de trinta mil, o que deixava D. João muito pessimista.
- Somos nós só seis mil e quinhentos!
Mas Brites meteu-se logo a oferecer os seus serviços. Ou por pena do rei, ou então porque não estavam completamente apagados dentro de si os instintos de peleja.
- Seis mil e quinhentos e um, meu rei e senhor! Pode contar comigo para ajudar na batalha!
Daí a pouco, com a aproximação dos castelhanos, as coisas começaram a aquecer. D. Nuno Álvares Pereira ordenou que formassem um quadrado, para melhor resistirem às investidas do inimigo. Só que Brites não se quis meter nisso, preferindo actuar por conta própria.
- E o marido dela lá continua na lavoura…
- Sim, daqui a pouco os castelhanos tomam conta de Portugal e o homem nem sabe que muda de nacionalidade.
- O que é a nacionalidade? É como aquilo do outro dia, da curiosidade, ou da idade curiosa?!
- Não, não é bem isso
- ...
- Olha, e se tu voasses até lá para avisá-lo?!
- Não, eu fico aqui a ver a batalha.
- Pois aí está um bom exemplo de curiosidade.
- Sim, mas o que eu queria saber era o que é a nacionalidade.
O quadrado de D. Nuno Álvares Pereira surpreendeu mesmo os castelhanos, tanto que os seis mil e quinhentos portugueses chegaram e sobraram para os mais de trinta mil malucos que se tinham metido a atravessar a fronteira. E Brites, na sua actividade solitária, também se saiu em grande. De pá na mão, e com o desembaraço dos velhos tempos, lá foi fazendo os seus estragos.
- Quantos castelhanos é que Brites já pôs fora de combate?
- Olha, eu, para dizer a verdade, já perdi a conta.

»»» Cap. XVI
Fugiam espavoridos pelos campos de Aljubarrota os castelhanos que tinham escapado da batalha. Andavam perdidos de um lado para outro. Até o rei, meio zonzo, já nem sabia bem onde estava. E fartava-se de gritar.
- Donde es Castilla?!!
Mas ninguém lhe dizia. Nem Brites, que se cruzou com ele e ainda lhe acertou com a pá no dorso do cavalo. E depois foi para casa, para ver se o marido já tinha chegado da lavoura.
- Ele continua a lavrar lá adiante.
- É um bocado distraído, lá isso é.
- Ou se calhar não liga muito a batalhas.
Quando Brites chegou à padaria, estava tudo calmo. Até demasiado calmo, e isso fê-la logo ficar de sobreaviso e agarrar a pá ainda com mais força.
- Daqui de longe, por cima do campo de batalha, até custa a ver a padaria.
- Pois é.
Brites parecia indecisa em entrar.
- Por que é que será?
- Andarão ainda alguns castelhanos por lá?!
As gaivotas não conseguiam ver bem o que se passava. Queriam bisbilhotar a desgraça que ia pelo campo de batalha, mas ao mesmo tempo sentiam-se intrigadas com o que Brites estava a fazer. Tanto mais que era por causa dela que estavam ali, bem afastadas do mar e do peixe que como nenhuma outra coisa as deliciava.
- A comida aqui no campo é mesmo uma porcaria.
- Sim, tirando os ratos e os grilos, não se encontra nada de interesse.

»»» Cap. XVII
Brites finalmente foi até ao forno, sempre preparada para fazer uso da pá. O silêncio era de desconfiar. Nem uma mosca se ouvia. As gaivotas não deixavam de tentar perceber-lhe os movimentos.
- Será que ela tinha pão no forno?!
- Por quê? Por lá estar a meter a pá?!
- Sim. Mete, tira. Mete, tira. Não achas estranho?
- Pois, é estranho, e daqui nem dá para ver bem. O melhor é mesmo irmos até lá.
- Mas olha… Agora estão castelhanos a sair de dentro do forno.
- Tinham-se escondido lá, aqueles tristes!
- E ela está a abatê-los à medida que saem. Não consigo é contar quantos são.
- Por que é que será que ainda não inventaram os binóculos?
- O quê?!
- Nada, esquece.
Brites ia continuando a festa com grande desembaraço.
- E aquele que agora vem a aproximar-se por trás! Se calhar vai surpreendê-la!
- Qual quê!! Não vês que é o marido dela que regressa da lavoura?!
- Ah, pois é!!
- Distraído, como sempre.
- E a gente?
- A gente o quê?
- Ora o quê!... Voltamos para o mar ou ficamos por cá?

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

A Padeira – XIII e XIV

Mais dois capítulos (XIII e XIV) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. XIII
Quando a patroa morreu, Brites chorou. Era uma coisa que já não fazia havia tanto tempo que até as gaivotas ficaram a olhar uma para a outra.
- Ela, afinal, além de ter coração, também produz lágrimas!
- Sim, e agora fica a ser a padeira de Aljubarrota.
- Quer dizer que já podemos regressar?!
- Não, muitas coisas ainda podem acontecer.
- Pronto, pronto, ficamos mais uns tempos então.
Algum herdeiro da padaria que houvesse não chegou mesmo a dar as caras. Quem um belo dia resolveu visitar Brites foi um honesto lavrador, e descomprometido, como fez logo questão de deixar bem claro, para não haver confusões.
- Aquele não vai comprar pão…
- Pois, pela cara vê-se logo que não.
Convidou Brites para um passeio. E daí a uns dias para outro, e depois para mais outro. E Brites começou a aparecer cada vez mais arranjada. Ainda que nela poucos trabalhos de aparelhamento houvesse a fazer. Mas o lavrador lá sabia as linhas com que cosia o seu pobre coração solitário.
- As pessoas às vezes mudam.
- Sim, Brites nunca ligou muito a coisas de paixão, mas agora está diferente.
- Lá isso é verdade...
O lavrador acabou por pedir a mão à padeira, durante um dos passeios. E sem que as gaivotas percebessem a conversa, os dois desapareceram a correr para o meio de uns arbustos.
- Para onde será que vão tão apressadas aquelas criaturas?
- Sabe-se lá, até a gente as perde de vista!
- Sim, no meio daqueles matos, quem é que pode ver o que está a acontecer?!

»»» Cap. XIV
Brites manteve a padaria, pois não era mulher para viver às custas do marido, por mais rico lavrador que ele fosse. E as gaivotas foram observando a nova família. Finalmente, a padeira parecia andar em paz.
- Só que a paz, até uma gaivota o sabe, nunca dura muito.
De repente, assim sem mais nem menos, apareceu nas redondezas D. João, mais o condestável D. Nuno Álvares Pereira, os dois à frente do exército de Portugal.
- Será que vêm todos para prender Brites?
- Não, nada disso! Não vês lá adiante, bem ao longe, o exército de Castela?!
- Ah, aqueles artolas são os castelhanos!
- Sim, devem vir à conquista de Portugal.
- Trazem o Saramago ou esqueceram-se dele?
- Esse não vejo… Na volta vem disfarçado….
Brites recebeu o melhor que pôde D. João e o condestável.
- Quanta honra tê-los em minhas terras, senhores!
Só não os convidou para entrarem porque eram muitos, à volta de seis mil e quinhentos, contando com o exército inteiro.
- Nem todos podem ter palácios grandes.
- Sim, os pobres cometem sempre estas indelicadezas.
- Mas Deus não há-de levar a mal.
- Qual?! O deles ou o das gaivotas.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A Padeira – XI e XII

Mais dois capítulos (XI e XII) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. XI
Assim Brites chegou a Portugal, depois de dois dias e duas noites no mar, sem sequer reparar nas gaivotas que a seguiam de perto.
- A puta nem nos liga!
Mas não foi no Algarve que deu à costa. Os ventos de sul impeliram-na bem mais para cima, além de onde se avistava os montes de Sintra, e levaram-na até uma pequena praia deserta. E como era uma mulher decidida, sempre pronta para as lutas da vida, nem perdeu tempo a respirar de alívio por assentar os pés em terra firme. Abandonou o barco do mouro enganado e afogado e fez-se ao caminho à cata de um rumo para a sua existência. As gaivotas, mesmo contra a natureza que tinham, decidiram segui-la.
- Eu, por mim, não ia.
- Não, temos que ver no que isto dá.
E depois de muitas terras e terriolas, pedindo esmola nuns lados e fazendo biscates noutros, e dormindo nalgum palheiro mais acolhedor, chegou ao ponto do mundo que, sem ela saber, o destino lhe tinha marcado.
- Isto chama-se como, senhor?
- Aljubarrota, meu rapaz!

»»» Cap. XII
Nessa altura, Brites andava vestida com trajes masculinos, ainda com medo de que a lei se lembrasse dela.
- Brites é boa na arte do disfarce.
Mas o tempo tinha passado, e as guerras com Castela tudo faziam a lei esquecer. Era por isso altura de arranjar uma vida fixa. Tanto que, como até gostou do nome da terra, não esteve com meias medidas, despiu as calças.
- Não vale a pena aproximarmo-nos, que ela fê-lo atrás daquela moita.
- Eu tenho é saudades do mar.
- Um dia voltamos, é só vermos a sorte de Brites.
De trás da moita saiu novamente uma mulher, feia e grande, mas uma mulher. Brites voltava a usar saia. Depois meteu-se à procura de trabalho, coisa que conseguiu na padaria de uma velhota da terra. Logo se mostrou tão esforçada que a pouco e pouco a patroa lhe foi entregando a direcção do negócio. E acabou por deixar-lho, a troco de bons cuidados, assim que viu aproximar-se a morte. Herdeiros, pelos vistos, não havia, ou então nenhum se atreveu a aparecer. E Brites foi tão atenciosa com a infeliz velhota que ainda lhe conseguiu amenizar o sofrimento dos últimos dias.
- Brites, afinal, tem coração.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

A Padeira – IX e X

Mais dois capítulos (IX e X) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. IX
Os piratas árabes, ao chegarem a Ceuta, encontraram logo um parvo para ficar com Brites. Não era mercador, mas também não importava. Era um rico senhor que logo viu em tão entroncada escrava uma boa serviçal para o seu palácio.
- Chamo-me Brites de Almeida!
O senhor não percebeu nada, mas mesmo assim levou-a de bom grado para servir no palácio. E nessa mesma noite disse adeus ao mundo, enquanto dormia, sem ter tempo de abrir os olhos para ver o rosto de Brites enquanto ela lhe apertava o pescoço.
- Pelos vistos era um senhor descuidado, este mouro rico.
- Novo rico?!
- Não, mouro rico! Cada vez ouves pior o meu grasnar.
As gaivotas não queriam perder nada.
- O melhor é irmos embora daqui, senão ainda somos detidas como suspeitas.
- O quê?! Duas gaivotas suspeitas de um crime assim?!
- Pois, além disso a danada da Brites já vai a caminho do porto. Ainda a perdemos de vista.
- Quer dizer que regressamos a Portugal.
- Sim, se a Brites para lá voltar.
- Se calhar estamos a ser demasiado curiosas?
- Não, nem a curiosidade tem mal algum. O mesmo já não se poderá dizer de uma idade curiosa.
- Deves ler muitas enciclopédias, para teres tão altos pensamentos e fazeres um trocadilho desses.
- Talvez o melhor fosse ires para o trocadalho!...
- ...
- E a puta da Brites?! Com este grasnar todo já a perdemos!
- Não, vai ali mesmo abaixo, a correr que nem uma desalmada.

»»» Cap. X
No porto, mesmo de noite, Brites desenrascou-se. Aliás, de noite é que lhe convinha negociar. Arranjou um barqueiro e, a troco de alguns pertences que roubara ao assassinado senhor, convenceu-o a levá-la ao seu destino.
- Portugal!
O barqueiro percebeu-a bem, e ainda a percebeu melhor quando a viu levantar a saia bem acima do joelho.
- Este barqueiro, para ele serve-lhe tudo.
- Ora, gostos não se discutem.
Só que o barqueiro nem teve tempo de contar os pertences que Brites lhe entregara. Nem tão pouco de se assenhorar dos esconderijos da roupa com que ela se insinuava. Com um golpe, dos muitos que sempre tinha de reserva, a antiga feirante fê-lo dar uma volta por cima da pequena vela. E depois ficou a vê-lo afundar-se nas águas iluminadas pelo luar.
- Não achas que todos os barqueiros deviam de saber nadar?
- Eu acho! Já viste se nós, gaivotas, não soubéssemos utilizar as asas?!

sábado, 4 de agosto de 2007

A Padeira – VII e VIII

Mais dois capítulos (VII e VIII) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. VII
Do alto, duas gaivotas controlavam o barco, enquanto iam esvoaçando de um lado para o outro. E grasnavam.
- Ainda bem que a gente tem asas.
- Sim.
Brites seguia no barco, a contemplar a imensidão do oceano. Nova vida ia começar, pensava ela sem ligar ao vento que lhe fustigava o rosto. Até que de repente algo lhe prendeu a atenção, e às gaivotas que voavam por cima também. Um outro barco aproximava-se.
- Barco à vista!!!
Ou vinha em paz e tudo se resolveria, ou então vinha por mal. E aí é que seria o bom e o bonito. Por via das dúvidas, Brites começou a arregaçar as mangas. Isto enquanto a tripulação já andava de um lado para o outro, como se o seu destino se decidisse naquele momento.
- Chamem o capitão!
- Sim, chamem o capitão, que se retirou para descansar!
O capitão apareceu daí a pouco, e nessa altura já se avistava a bandeira dos do barco que antes tinha surgido do nada na linha do horizonte. E só podiam vir mesmo por mal, porque a bandeira indicava que eram piratas árabes, dos muitos que infestavam as águas do Mediterrâneo.
- Preparem-se, homens!! Preparem-se, que temos de nos defender daqueles labregos!!

»»» Cap. VIII
- Ainda bem que a gente tem asas, não me canso eu de grasnar.
- Sim, daqui de cima vê-se bem aquela desgraça.
A peleja foi tão grande que só Brites escapou com vida. Do lado cristão, bem se vê, porque do dos mouros ainda sobraram muitos para a segurarem. De modo que decidiram levá-la mais o saque para a venderem como escrava a algum rico mercador de olhos vesgos ou apreciador de maus encantos.
- Muito fortes devem ser estes mouros.
- Sim, nem Brites lhes resistiu. Eu até daqui de cima tive medo!...
- Os amaldiçoados eram muitos.
- Pois, tivesse Dom Afonso pelejado com uns assim em Lisboa e haveriam os portugueses de estar hoje a seguir o Corão.
- E achas que isso teria tido implicações práticas na nossa vida de gaivotas?
- Acho que não, mas isto sou só eu para aqui a grasnar.

terça-feira, 24 de julho de 2007

A Padeira – IV, V e VI

Desta vez, três capítulos (IV, V e VI) de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota

»»» Cap. IV
Quem não estava com paciência para grandes esperas era Brites. Queria tornar-se independente. E assim, depois que lhe morreram os pais, depois de os ter infernizado anos a fio, meteu-se a fazer vida de feirante. Desfez-se de todos os haveres da herança e passou a andar de feira em feira pelo Algarve e pelo Alentejo.
- Raios a partam!!
Em pouco tempo ganhou fama, uma fama do tamanho nem as pessoas sabiam bem de quê.
- Se calhar, não há coisa suficientemente grande para a comparação.
- Pois, se calhar.
E assim, com vinte e seis anos no corpo, já era mais temida pelas terras onde andava do que qualquer outro feirante. Com o pau, à mão, às vezes até a poder de espada, Brites não perdia nunca a oportunidade de se meter numa boa luta. E se acontecia que algum adversário saísse sem grandes marcas no corpo era só porque fugia logo a seguir aos primeiros murros. Porque os que iam até ao fim, os mais parvos, nunca deixavam o terreno da luta pelo seu próprio pé.
- A Brites, a feirante do Algarve, é mesmo do piorio!
- Sim, metam-se com ela e depois digam que a gente não avisou!

»»» Cap. V
Mas nem todos ligavam aos avisos. Tanto que se deu o caso de um alentejano, ainda novo e soldado de profissão, querer conhecer Brites pessoalmente. Também ele estava atraído pela fama da feirante. E quando a viu, nem o Diabo se calhar seria capaz de adivinhar por quê, o que teria feito tal milagre acontecer, enamorou-se.
- Com tantas mulheres aí à cata de homem, vai-lhe logo pender o coração para aquele javali!
- Amigo, isto quem feio ama bonito lhe parece.
- Não, cá para mim o alentejano não bate é lá muito bem do juízo. Se calhar ficou assim depois das batalhas em que andou.
Brites não sabia nada de coisas de sentimentos. Nem queria sequer ouvir falar disso. Tanto que assim que o alentejano lhe tentou fazer a corte, sem perder tempo lançou-lhe um desafio.
- Está bem! Caso contigo, mas só depois de ganhares um combate!
- Contra quem?! - Perguntou o alentejano.
- Contra mim! - Gritou Brites, já impaciente para começar a zaragata.
E o alentejano aceitou.
- Pobre desgraçado!
- Bem, é o amor, o tal que move montanhas.
Os pormenores não demoraram muito a acertar. Arranjaram-se as testemunhas e estabeleceram-se as regras, e depois foram escolhidas as armas.
- Eu quero o pau! - Gritou Brites.
A feirante parecia cada vez mais impaciente.
- As mulheres, quando se trata destas lutas, escolhem sempre o pau.
- Tirando as esquisitas.
- Sim, tirando as esquisitas.
O alentejano voltou a aceitar, cada vez mais enamorado. Só que daí a pouco jazia morto aos pés de Brites, com a cabeça feita num bolo. Ninguém tinha percebido era se a feirante ao fazer o desafio estava a ironizar, ou se realmente tinha pensado que podia desposar um morto. Mas também ninguém se atrevia a perguntar-lhe.
- Estimamos muito a vida.

»»» Cap. VI
Brites acabou por ver a gravidade do seu acto, e o que iria penar se a lei lhe caísse em cima com as suas enormes manápulas. E por isso não perdeu tempo. Arrumou os poucos haveres e meteu-se de volta ao Algarve com a trouxa às costas. Talvez desse o salto para o Castela, ou então outras ideias lhe haveriam de surgir.
- Brites voltou!
Depressa chegou a Faro, mas não ligou muito aos laços de nascimento. À custa de muita argumentação, meteu-se num barco que se ia fazer pelo Mediterrâneo a fora e deixou-se levar pela esperança de encontrar algum porto de bom abrigo.
- Já embarcou para se ir embora de Portugal.
­- E sabe-se lá para onde aquilo vai!­­­­­­­­
- Gritem aí ao capitão ­qual é o destino!
- Qual é o destino?!
- Força a ver se ele ouve!
- Qual é o destino?!!!
- Qual quê! Já lá vai o barco e o cabrão não disse nada.
- Pois não...

terça-feira, 10 de julho de 2007

A Padeira - III

Terceiro capítulo de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. III

E os anos foram passando, uns atrás dos outros, desenfreadamente, como se tivessem pressa de ver Brites fazer-se mulher. Só que não tiveram muita sorte.
- Mulher é que aquilo não é!
Na verdade, Brites não ia nada bem encaminhada para ser rainha de beleza. Era grande como um boi, mal encarada como um lagarto e tinha uma cabeleira que parecia um molho de tojos secos. E diziam que era de bom osso constituída, pois saía sempre inteira das zaragatas de pancadaria em que o seu mau génio invariavelmente a levava a meter-se.
- É uma grande jogadora do pau, melhor até do que alguns homens que eu já tenho visto.
- Sim, maneja o cacete como ninguém.
A Brites nada metia medo. Era o que se podia dizer uma criatura valente.
- Um homem autêntico!
As pessoas assim pensavam. E Brites sem ter culpa nenhuma. Afinal, qual seria o problema de, sendo mulher, ter uma força capaz de levantar acima da cabeça um porco dos gordos, daqueles já prontos para a matança, e ter gosto pela pancadaria? Não poderia uma mulher ser assim? Mal se descuidava e chamavam-lhe logo homem, já era preciso ter azar.
- Grandes machistas, diriam na confraria feminista, se já existisse alguma.

sábado, 7 de julho de 2007

A Padeira - II

Segundo capítulo de «Brites e as Gaivotas» (início aqui).

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. II

- Primeiro que tudo, esclareça-se já uma coisa. A gente está para aqui a falar de mulher, mulher para cá, mulher para lá, e a criatura, afinal, ainda vem nascendo.
A mãe gritava que nem uma louca, e as pessoas até se arrepiavam. Era uns gritos que se ouviam pelos quatro cantos de Faro, e os restantes algarvios só não ouviam também porque fora da cidade a distância já começava a ser grande demais. Coisa que se calhar até nem lhes causava grandes prejuízos.
- A criança nasceu agora mesmo.
- E como já se disse que iria ser mulher, estragou-se logo a surpresa.
O pai estava tão babado que gritou em menos de nada que havia vinho para todos.
- Ah, é isso mesmo, a gente tinha-se esquecido de dizer que o homem tem uma taberna. Modesta, é certo, mas quando o vinho é de graça ninguém se importa com luxos!
- Quer dizer, eu gosto de ser bem servido.
- Bebe e cala-te, mal agradecido!

A Padeira - I

Leio aqui, no blog «Casario do Ginjal», uma referência a uma mulher da minha terra, a célebre Padeira de Aljubarrota. Eu não sou de Aljubarrota, sou de bem longe, do Algarve; a mulher, que se chamava Brites de Almeida, nasceu na cidade de Faro (e as voltas da vida é que a levaram até Aljubarrota, onde encontraria, digamos assim, a fama). Em tempos escrevi um conto que acaba por ser a história da padeira Brites de Almeida. Faz parte do livro «O Velho que Esperava por D. Sebastião», publicado em 1999. Vou publicar esse conto aqui, em pequenos capítulos. Chama-se «Brites e as Gaivotas».

Brites e as Gaivotas
Uma história da Padeira de Aljubarrota – Cap. I

Puseram-lhe o nome de Brites, que era mesmo um nome um bocado estranho para uma mulher.
- Brites de Almeida.
E ninguém sabia se o Almeida era da parte do pai, se da parte da mãe. De algum haveria de ser, ou se calhar até seria dos dois.
- Sim, vá lá a gente dar palpites! Só aparecerão os cartórios daqui a muitos anos, e serão bem demorados, tanto os anos como os cartórios. Por isso, fica já avisado quem estiver à espera para ver ou quem estiver pensando em lá ir.
- Bem, adiante.
Os desvios do caminho principal eram coisas que não interessavam. Coisas que alguns se punham a dizer para aumentarem a conversa.
- Há quem goste muito de falar.
A verdade é que o facto de a mulher ser Almeida gerava um grande burburinho. Não sobre a veracidade do apelido, que era garantida, mas sobre a proveniência, que como se disse ninguém sabia. Seria do pai, como de costume? Seria da mãe? Seria dos dois?
- É esta a fé de quase toda a gente. Casa-se um Almeida com uma Almeida, se calhar até são primos, e depois nasce uma criatura capaz de deixar o Diabo de boca aberta. Pode muito bem acontecer.
- Mas o melhor é esquecermos isso. Ainda estamos todos enganados, para aqui a conversarmos, ora um ora outro…
- Sim, sabe lá a gente o que diz!
- Exactamente, vizinho! Vamos é para acontecidos vistos e deixemos de fazer figuras tristes de gente alcoviteira.