Mendoza divertidíssimo
Dois extraterrestres na cidade de Eduardo Mendoza, Gurb e um companheiro do qual não se chega a saber o nome, coisa que na obra do escritor catalão não é novidade. Como o prodígio da imaginação.
Tomei contacto com a obra de Eduardo Mendoza (n. Barcelona, 1943) em finais da década de 1980, quando uma série de livros seus foram lançados numa colecção da Dom Quixote chamada «Letras de Espanha». Mendoza surgiu então entre nomes completamente desconhecidos como Luis Landero ou Jesus Moncada e outros de situação bem diferente por cá, como o Nobel de 1989, Camilo José Cela. O primeiro livro que li de Mendoza foi uma das sagas do seu detective inominado (tal como o extraterrestre narrador de «Sem Notícas de Gurb»), que vive num manicómio de Barcelona, «O Labirinto das Azeitonas». Lembro-me de ter lido os primeiros capítulos das aventuras do inusitado investigador numa praia algarvia perto da minha terra, Monchique, e de ter ficado um bocado atrapalhado por não saber o que fazer com as gargalhadas que o livro me provocava no meio do areal cheio de gente. Era a segunda aventura; a primeira, que comprei e li mal cheguei ao fim dessa, «O Mistério da Cripta Assombrada», estava então nas Edições Afrontamento. Depois, claro, li outros livros de Mendoza, «A cidade dos Prodígios» (o primeiro título da colecção da Dom Quixote, onde a verdadeira personagem central é a Barcelona dos anos que intermediaram as duas exposições universais que a cidade acolheu, em 1888 e em 1929) ou «A Verdade Sobre o Caso Savolta» (a estreia de Mendoza como romancista, em 1975, altura em que vivia em Nova Iorque, e já com Barcelona a fazer de protagonista, a Barcelona palco de confrontos entre operários e patrões, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial). Estes eram romances mais sérios, mais densos, e aumentaram o meu fascínio pelo autor, tendência que nem outros títulos que li depois («A Ilha Inaudita» ou «O Ano do Dilúvio», que não me marcaram particularmente, sobretudo pelos temas que exploravam) conseguiram inverter.
Já tinha ouvido falar de «Sem Notícias de Gurb», que é o resultado de uma colaboração de Mendoza com o jornal espanhol «El País», quando a cidade de Barcelona estava de pernas para o ar por causa das obras para os Jogos Olímpicos que viria a acolher em 1992. Já tinha ouvido falar, mas não fazia ideia do assunto que tratava. Depois de ler, a sensação com que fiquei é de que só mesmo Mendoza poderia ter escrito um livro assim. A comprová-lo, o comentário que a editora portuguesa trouxe de Espanha junto com o texto em forma de diário de um extraterrestre, o comentário de um crítico (suponho) que diz: «Trata-se de um livro ligeiro, de leitura fácil e bastante perigoso para quem lhe pegue pela primeira vez. É recomendável que a sua leitura se faça em privado, não vá o leitor ter um ataque incontrolável de riso e passe por louco.» Como me lembrei daquela tarde de praia de 1989, eu a ler os primeiros capítulos de «O Labirinto das Azeitonas»... E como me lembrei agora, em 2004 [este texto é de 2004], ao ler o diário escrito pelo extraterrestre sem nome, o companheiro de Gurb, como me lembrei de que deixar uma história assim (dois extraterrestres com poderes quase ilimitados à solta em Barcelona) nas mãos de um grande escritor só podia resultar num livro divertidíssimo. À conta do génio de Mendoza, esquece-se até os problemas da tradução (e a revisão vai pelos mesmos caminhos). Convinha a editora – Notícias Editorial [actual Casa das Letras] – ter mais atenção, pois já num livro anterior que publicou («A Aventura do Cabeleireiro de Senhoras», terceira aparição do detective sem nome) estes problemas são bem evidentes. Mendoza não merece, nem os leitores. E o companheiro de Gurb não gostaria de ver o seu diário assim tratado, ele que se calhar ainda anda por aí, ele e Gurb, mais de uma década depois, sem darem notícias.
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