Hoje de manhã, na «Antena 1». Algures no Ribatejo, um acompanhante da caravana do Bloco de Esquerda, trajado a rigor (do Ribatejo, conforme depreendi da conversa), explicava ao jornalista por que é que não votava nos outros partidos. No caso do PCP, dizia que o tinha abandonado depois de ter passado o tempo de Álvaro Cunhal, uma pessoa que considerou «de rosto muito bonito». A seguir o PS – «têm lá um grande mentiroso», explicou. Quanto ao PSD, o problema era o carácter de Passos Coelho (contra quem nada tinha) não servir para «estar à frente do país». Finalmente, o PP, em relação ao qual identificou uma desvantagem no líder: «O Paulo Portas não me seduz tão bem.» De forma que ia votar no Bloco de Esquerda. E para eliminar alguma dúvida que ficasse no jornalista (se calhar por via dos acompanhantes de turbante que o PS levou a um comício em Évora), explicou que podia mesmo votar: «Sei que tenho cara de chinês, mas sou natural do Vale de Santarém.» Eu, é claro, nem tinha reparado.
terça-feira, 31 de maio de 2011
Revista «human» de Junho
João Duque: «Muitos políticos têm uma obsessão pelo optimismo, mas o optimismo não se funda numa mentira.» Nas bancas a partir de hoje a edição de Junho da revista «human». Ver aqui.
domingo, 29 de maio de 2011
António Souto – Crónica (36)
Parece que havia diante dele, numa mesinha de ocasião, uma biografia com o seu boneco na capa e um título de arrasar: Paulo Futre – «El Portugués». E no ar, claro, no ar havia um leve sotaque espanholado e um ambiente de fusão transpirando negócio. Parece que havia, porque não a cheguei a topar. Como diria Mia Couto (que não por acaso também lá estava), passei em sua renteza e desamparei a loja.
Desmotivações
No último dia da feira do livro, fui finalmente à feira do livro. Em Lisboa. A feira foi no Parque Eduardo VII, e foi lá que lá fui, como à festa. Uma tarde simpática, um calor suportável, uma vista de postal ilustrado com Tejo ao fundo e alguma animação.
Por quê só no último dia? Calhou, ou melhor, fui adiando. Não é que não tivesse motivação suficiente para lá ir antes, como é hábito meu, pelo menos uma vez ao lançar dos foguetes, outra lá mais para o meio, para o arraial, e outra no fim, para o apanhar das canas; mas desta vez desleixei-me, que é como quem diz, disfarcei com o facto de no último dia haver por lá amigos escritores e muitos outros, muitos outros escritores que não sendo amigos sempre ficam bem no retrato. Tão como fora dele.
Havia por lá muitos, só no espaço Leya era aos punhados, uns muito famosos, outros assim-assim, outros anónimos mas já com tiques de estrelato a sair-lhes com discrição pelo canto dos olhos. E livros, então, às toneladas, quase aos pontapés.
Por falar em pontapés, estava lá o Futre a fazer jus à publicidade, de óculos escuros para dar pinta de celebridade, com uma fila de fãs de fazer inveja aos escreventes todos, e todos juntos. E sempre que saía um livro lá saía uma fotografia. Ele era sorrisos e abraços e beijinhos e poses de camisa arregaçada e fio de ouro ao pescoço com dois amuletos, que a gente sabe como são os internacionais a sério e que se levam a sério. Parece que havia diante dele, numa mesinha de ocasião, uma biografia com o seu boneco na capa e um título de arrasar: Paulo Futre – «El Portugués». E no ar, claro, no ar havia um leve sotaque espanholado e um ambiente de fusão transpirando negócio. Parece que havia, porque não a cheguei a topar. Como diria Mia Couto (que não por acaso também lá estava), passei em sua renteza e desamparei a loja.
Voltemos aos amigos. No centro da romaria, um abraço sentido ao Urbano Tavares Rodrigues, fidalgo das letras e dos afectos, senhor de uma incomensurável abnegação; no lado oposto, mais amainado, um encontro prometido com o António Manuel Venda, escritor de lugares e de vagares, e com ele uns minutos de conversa para rematar a tarde.
Se gostei da feira? Gostei, mas esqueci-me, pela primeira vez, de comprar um livro para mim. Mas também pela primeira vez, creio que pela primeira vez, a fartura que comi à saída, porque motivado, não me causou azia.
Azia que, para falar verdade, é o que muita criatura tem na cabeça quando a razão lhe desce para o estômago. Isto sou eu a lembrar-me agora, como quem foge com o rabo à seringa (digo, à feira), da derrota do Benfica frente ao Braga e do Jorge Jesus, numa espécie de acto de contrição, a desabafar que os seus jogadores precisavam de motivação. De motivação, disse ele. Pelos vistos, não há nada pior de que um plantel de luxo, bem pago e com mordomias desmotivado atrás de uma bola.
Lérias, pois então, dêem-lhes farturas, só farturas, boas e motivadas farturas, e no intervalo delas dêem-lhes livros, muitos livros sobre auto-estima e motivação, e se não souberem ler não faz mal, far-lhes-á bem passearem-se com eles, os livros, debaixo do braço, como quem aspira a novas oportunidades, que o que é preciso é mesmo um pretexto.
Afinal, que motivação têm os tornados na América ou um vulcão qualquer, como um impronunciável Grimsvotn, para as bandas da Islândia? Nenhuma, e no entanto…
E no entanto acabei por ir à feira do livro no último dia da feira do livro.
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Ontem, em Lisboa
Palavras cruzadas especiais
Umas palavras cruzadas especiais, no quarto aniversário do blog de Paulo Freixinho, palavras com definições de vários escritores. Para a palavra que me foi atribuída, arranjei a seguinte definição:
Profissão bem remunerada e sem exigir grandes competências, com a mais-valia de por vezes dar direito a reforma bem aviada logo na casa dos quarenta. Apesar de ter sido em tempos classificada por António Sousa Franco como de «desgaste rápido» (numa entrevista televisiva a Herman José), nunca a medicina foi capaz de definir um quadro-padrão a nível patológico que pudesse suportar investigações sobre possíveis fármacos ou terapias a aplicar. O que se conhece são efeitos dispersos, como pessoas que simulam corninhos com os dedos, outras que dizem num dia exactamente o contrário do que tinham dito no dia anterior (sem que contudo lhes cresça o nariz), outras ainda que tomam posse de gravadores alheios (insistindo depois em escondê-los nas algibeiras), ou então situações em que os pacientes se divertem a contar anedotas sobre hemofílicos mortos em hospitais ou dizem querer dar aulas de economia no ensino superior depois de terem levado um país à falência. Isto, obviamente, só para dar alguns exemplos e deixando de lado situações mais complexas em que os efeitos não se produzem directamente nas pessoas mas nas respectivas carreiras, nos carros que conduzem, nas casas onde moram e até, imagine-se, nas contas bancárias de que são titulares ou noutras em que o nome que aparece é o de um familiar.
Quem tiver interesse em fazer estas palavras cruzadas especiais de aniversário, pode ir até aqui.
Intervenção na Universidade Lusíada
O suporte da minha intervenção no «Seminário de Gestão de Recursos Humanos 2011», da Universidade Lusíada de Lisboa (25 de Maio de 2011, painel «Novos Desafios da Gestão de Recursos Humanos» – tema «Jornalismo em Gestão de Recursos Humanos») pode ser visto aqui.
quarta-feira, 25 de maio de 2011
segunda-feira, 23 de maio de 2011
domingo, 22 de maio de 2011
Logo de manhã
sábado, 21 de maio de 2011
terça-feira, 17 de maio de 2011
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Recordação da feira do livro
Feira do Livro de Lisboa, ontem à tarde, no espaço do Grupo Porto Editora, onde se incluía a zona da Quetzal. Da mesa onde estava a dar os autógrafos, fotografei com o telemóvel o candidato agora trabalhista José Manuel Coelho, com uma enorme vassoura às costas, a tentar convencer uma senhora enquanto esta comia um gelado.
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Feira do Livro de Lisboa – 2011
quarta-feira, 11 de maio de 2011
Feira do Livro de Lisboa
Sessão de autógrafos na Feira do Livro de Lisboa: 15 de Maio, 16-18 horas (Quetzal, Grupo Porto Editora).
terça-feira, 10 de maio de 2011
segunda-feira, 9 de maio de 2011
A propósito do programa eleitoral do PSD
«António, na política há os chulos e os burros; nós fazemos parte dos burros.»
A questão toca-me particularmente, pelo facto de há poucos anos ter integrado listas do PSD em eleições, tendo inclusive sido vereador na câmara da minha terra e depois deputado na assembleia municipal. Refiro-me ao programa do PSD que agora foi apresentado para as próximas eleições legislativas. Esse programa deixa-me preocupado e, obviamente, impede-me de votar no PSD. Se é para votar em quem defende coisas com que não concordo, comigo não contem, porque isso seria tão irracional como votar em José Sócrates. Entre as coisas com que não concordo (também há muitas que me parecem bem), estão várias ideias de Pedro Passos Coelho. Eu não concordo com algumas das privatizações propostas, sobretudo aquela que já escrevi que me parece uma mania, a da Caixa Geral de Depósitos. Acho que quanto mais fontes de receita o estado tiver, melhor; os seus responsáveis devem é preocupar-se em criar condições para que nas empresas públicas não entre gente inútil para roubar de forma legal (como em Portugal se tornou moda) todos os meses um chorudo ordenado. Não vejo problema nenhum em que o estado tenha empresas em determinados sectores, desde que dêem lucro. Muitas tivesse o estado português e bem melhor estaríamos.
Outro aspecto que me chamou a atenção é a questão dos funcionários públicos, de só entrar um por cada cinco que saiam. A ideia não é nova, só que antes era entrar um por cada dois que saíssem, ou por cada três, já nem me lembro bem. Trata-se de uma medida simplesmente idiota. Com algum sentido de gestão e sobretudo de bom senso, facilmente se chega à conclusão de que o importante é impor na administração pública uma grande racionalidade, para que saia quem não faça lá nada e para que entre quem seja necessário. Fazendo isto, certamente que em muitos serviços públicos iria entrar muita gente e de muitos outros iria sair muita gente (e de outros sairia toda a gente e eles seriam extintos). O resultado, tenho a certeza, seria uma administração pública muito mais pequena e onerosa do que a actual, e acima de tudo eficiente e eficaz.
Finalmente, as reduções devidamente quantificadas; por exemplo, o número de deputados ou a percentagem da taxa social única. Por mim tudo bem, só lamento que não se diga nada de concreto em relação a outras coisas, como o tecto para as reformas, para vermos para que nível seriam reduzidas reformas como as de Campos e Cunha, Catrogra, Cavaco, Mira Amaral e tantos outros, reformas que, algumas delas, resultam da indecorosa situação que se vivia no Banco de Portugal, em que uns poucos anos num cargo (a questão nem era trabalhar) dava direito a vários milhares de euros de reforma para o resto da vida – e sabe-se que houve gente que é tida em Portugal como de referência que logo aos 47 anos aproveitou para começar a sacar alguns milhares de euros mensalmente.
Junto com isto das reformas, também não percebo que não se tenha dito nada em relação às subvenções políticas, situação em que estão muitas pessoas ainda na casa dos 50 anos e que todos os meses recebem alguns milhares de euros (até ao fim da vida), e só porque tiveram funções políticas. Marques Mendes, que tantos cortes apregoa em directo na televisão, e com razão, é um deles, e tem boa idade para trabalhar, não para ser um peso para o orçamento do estado, orçamento que ele próprio diz que tem de emagrecer. Aliás, neste aspecto das subvenções políticas, Passos Coelho deveria mesmo ter alguma ideia, pois nunca pediu aquela a que a lei (uma lei que nos deveria ter envergonhado) lhe deu direito.
Sempre me chocou ver mais este roubo legal, ainda por cima a passar-nos diante dos olhos e sem nada que se possa fazer. Quando era vereador, tanto eu como o meu colega do PSD nada ganhávamos. Já os dois vereadores do PS, e também o presidente (igualmente do PS), tinham os seus ordenados e, apesar de estarem próximos dos 50 anos, tinham também as suas reformas, que resultavam em grande parte, imagine-se, dos próprios cargos que desempenhavam. Nisto deve-se fazer justiça a José Sócrates, que fez tanta porcaria neste país nos últimos anos mas pelo menos acabou com o abuso que constituíam essas acumulações (enfim, ficaram de fora algumas), e que foi – não sei se ainda se lembram – onde começou o afastamento do governo do então ministro Campos e Cunha, depois do escândalo da descoberta da reforma de vários milhares de euros que acumulava do Banco de Portugal por meia dúzia de anos de trabalho e com boa idade para não ser reformado e viver apenas do seu trabalho. Voltando à câmara onde fui vereador, a situação, no caso do presidente, era absolutamente caricata. Como estava no poder havia uns 25 anos, e cada ano contava a dobrar em termos de descontos para a segurança social, ele já tinha mais anos de descontos do que de vida. Um tipo de sorte, certamente. Tanto mais que houve uma altura, ainda me lembro, em que foi nomeado para mais um cargo, para juntar aos muitos que já tinha; dessa vez era num comité qualquer da União Europeia. Quando me disseram nem liguei, até comentei que o PS lhe tinha arranjado mais um tacho; mas depois, passados uns dias, fiquei estupefacto: tinha sido o próprio PSD a propor o nome dele. Na altura, o meu colega de vereação, pelo PSD, disse-me algo que de vez em quando repetia: «António, na política há os chulos e os burros; nós fazemos parte dos burros.»
domingo, 8 de maio de 2011
O início
O início de «O Sorriso Enigmático do Javali».
Junto à vedação da Herdade do Convento, bem perto de onde poucos dias antes tinha retirado dos bicos do arame farpado o corpo de uma garça, o pequeno Tukie viu duas perdizes atravessarem a estrada de terra. Não lhe tomaram medo e entraram tranquilas na herdade, quase a tocarem o primeiro dos arames da vedação. Ele lembrava-se bem de que a garça tinha perdido a vida no terceiro, a pouco mais de meio metro de altura.
Deixou de pedalar, assentou um pé na estrada de terra para equilibrar a bicicleta e ficou a observar as perdizes. «Se eu fosse caçador…», pensou. Nesse caso estaria numa posição privilegiada, só que ele não era caçador. Tirou a máquina fotográfica da mochila e apontou-a. As perdizes estavam calmas, sem as correrias de tantas vezes antes de voarem uns metros. O pai do pequeno Tukie costumava falar de uma mulher a quem chamavam a Perdizinha, uma mulher de tempos já passados. Tratavam-na assim porque era muito baixa, mas sobretudo por andar depressa. Uma mulher desembaraçada e pequenina, um verdadeiro contraste com outra desses tempos, a Pata Larga, forte, alta e sempre a gabar-se de que calçava o quarenta e três. A Pata Larga, tinha-lhe o pai contado, falava como se carregasse na boca dois torrões de terra, um de cada lado, quem sabe se por causa dos equilíbrios, embora ela não precisasse muito de equilíbrios, principalmente por causa dos pés alongados.
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Literatura,
Livro «O Sorriso Enigmático do Javali»
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Os crimes contra a economia
Se houvesse um tribunal penal internacional para julgar crimes contra as economias dos países e contra as economias das respectivas populações, José Sócrates bem que podia ir pensando em arranjar um advogado (de preferência, e no seu interesse, um que na faculdade não tivesse respondido aos exames por fax e que depois não tivesse feito o estágio ao domingo).
quarta-feira, 4 de maio de 2011
Falar ao país com um morto ao lado
Vi ontem à noite na televisão uma parte da declaração de José Sócrates ao país sobre o acordo com a troica (ou troika, ou lá como se escreve). Já tinha começado na altura em que mudei para o canal em que estava a dar, e depois, antes de acabar, fui-me embora. Ou seja, não fiquei a saber como levaram para o pé dele o ministro das Finanças, que me pareceu estar morto (pelo menos não se mexia), nem como é que depois o retiraram de lá. E também não percebi como é que faziam para o ministro se aguentar de pé. Talvez uns assessores deitados no chão a segurá-lo. Ou uns fios pendurados do tecto (com a vantagem de com algum engenho dar para fazer do ministro uma marioneta, capaz de agitar os braços ou mexer a boca, ou até dar uns pontapés se algum jornalista se aproximasse para fazer perguntas). Ou então, sei lá, magia. Nos tempos que correm, já estou por tudo.
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terça-feira, 3 de maio de 2011
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Feira do Livro de Lisboa – 2011
Vou estar no stand da Quetzal, no domingo, 15 de Maio: sessão de autógrafos, 17H00-18H00; iniciativa «Livreiro por um dia», 18H00-19H00.
António Souto – Crónica (35)
Já pensei em ameaçá-la com o FMI, mas sabemos bem como as aranhas são pouco dadas a palavras mansas e o FMI, esse, pouco dado a lidar com coisas insignificantes e nada proveitosas.
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Aranhas em Abril
Gosto de alguns animais, não gosto de outros. Gosto mais de uns animais, gosto menos de outros. Há outros, ainda, que me são praticamente indiferentes. As aranhas, por exemplo, nem gosto nem desgosto, digamos que convivemos bem. Desde muito pequeno que me habituei a vê-las pelos vários espaços da casa dos meus avós, tanto no exterior como pelo interior. Na minha puerícia, as aranhas eram todas iguais e andavam à solta pelo alpendre, pelo palheirão, pelos currais, pela adega, pela casa da eira. Uma ou outra vez chegavam a aventurar-se pelo corredor do primeiro andar, pela sala de costura, pela sala de visitas, pela sala de jantar, pelos quartos. A verdade é que a minha avó embirrava era sobretudo com as teias dentro de casa, que davam um ar muito feio e descuidado, e se alguém ali viesse em visita era uma vergonha. Por isso, teias dentro da habitação vinham logo abaixo com a vassoura. As aranhas, essas, por lá continuavam, até porque, diziam os meus avós, eram muito úteis na limpeza de alguma bicharada inconveniente. O certo é que nunca as vi comer nada, a não ser algumas moscas mais distraídas que ficavam presas nos seus bem urdidos fios e zumbiam que se danavam, mas em vão. Tudo vai do hábito e da familiarização, e as aranhas, portanto, se metem nojo e apavoram alguns nossos semelhantes, a mim não me aquecem nem arrefecem.
Mas às vezes exasperam e cansam. Cansam-me e afrontam-me.
Então não é que uma delas deu para se acomodar há um tempo no espelho retrovisor do meu carro, do lado do pendura? Vai daí e desata a fazer teias numa tentativa de criar uma ponte entre o espelho e o vidro da porta. Por que razão as faz, não sei, mas lá deve ter os seus porquês. Mas uma teia de aranha num carro, ainda que por fora, causa má impressão, como dizia a minha avó, dá um ar de descuido e de abandono, e o carro ainda vai andando, não está desamparado. Eu bem insisto em limpar regularmente a teagem, mas o raio da aranha pouco tempo depois a repõe com o mesmo cuidado e no mesmo sítio. Já reparei que os outros carros das redondezas também as têm, como se fosse arte de engalanar, mas detesto teimosias. Quando vou lavar o carro, o que faço com relativa frequência, aponto a agulheta para o espelho, para dentro dele, e fico sempre convencido de que a danada não vai resistir à violência do jacto, mas, logo no dia seguinte, lá está a maldita teia, acabada e reluzente. Já pensei em ameaçá-la com o FMI, mas sabemos bem como as aranhas são pouco dadas a palavras mansas e o FMI, esse, pouco dado a lidar com coisas insignificantes e nada proveitosas. Por isso, e enquanto não compro um spray eficaz, resigno-me.
Resigno-me, como quem se molda a um Abril cada vez menos Abril. A este propósito, e enquanto oiço neste dia vinte e cinco a voz de Zeca, fui procurar um texto que lhe dediquei, após o seu passamento, e que saiu no «Diário de Notícias» de três de Março de 1987. Porquê? Porque sim, questão de esperança.
.
«Um Cravo Indisciplinado»
A uma dúzia de anos da revolução dos cravos, e já as vozes que então cantaram Abril se ensurdecem, uma a uma, na rouquidão do tempo. E em cada voz um pouco de Abril, que o mesmo é dizer, um pouco de nós.
Morreu Adriano. Seguiu-se-lhe Ary dos Santos. Chegou, (in)esperadamente, a vez de Zeca. Todos três fazendo-se ao rio na idade em que um homem se cumpre.
De Adriano, recordo um serão-convívio na companhia de Sérgio Teixeira (Serginho ou, também para os amigos, o Sérgio Mestre), seu fiel acompanhante. Cantou-se e animou-se «a malta» até às tantas, que a noite, nessas alturas, raro se antecipava.
De Ary dos Santos, a efígie dolente do féretro atravessando, em manhã cinzenta de chuva lacrimosa, a rotunda do Saldanha. Imagem que retive, horas depois, no breve poema «Resistência»: Grito vibrante/ Esbatido/ No vento vago/ Melodiosamente manso/ E um soturno sossego/ Firme/ Avançando lento/ Na noite escura/ Plena/ Rumo ao negro nó/ Do luto.
De Zeca Afonso, que poderei recordar? Por ora, que ainda é cedo, quiçá a súmula dos três, a réstia de esperança inadiável, a força capaz de erguer bem alto um cravo indisciplinado.
Ao Zeca e a quantos o aguardam no além, e que com(o) ele souberam lutar-cantando, que se cumpram, «porque na vida», dizia Camões, «ninguém alcança a glória merecida».
Requiescat in pace!
.
Crónica de Abril de 2011 de António Souto (escrita no dia 25 de Abril) para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34.
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Aranhas em Abril
Gosto de alguns animais, não gosto de outros. Gosto mais de uns animais, gosto menos de outros. Há outros, ainda, que me são praticamente indiferentes. As aranhas, por exemplo, nem gosto nem desgosto, digamos que convivemos bem. Desde muito pequeno que me habituei a vê-las pelos vários espaços da casa dos meus avós, tanto no exterior como pelo interior. Na minha puerícia, as aranhas eram todas iguais e andavam à solta pelo alpendre, pelo palheirão, pelos currais, pela adega, pela casa da eira. Uma ou outra vez chegavam a aventurar-se pelo corredor do primeiro andar, pela sala de costura, pela sala de visitas, pela sala de jantar, pelos quartos. A verdade é que a minha avó embirrava era sobretudo com as teias dentro de casa, que davam um ar muito feio e descuidado, e se alguém ali viesse em visita era uma vergonha. Por isso, teias dentro da habitação vinham logo abaixo com a vassoura. As aranhas, essas, por lá continuavam, até porque, diziam os meus avós, eram muito úteis na limpeza de alguma bicharada inconveniente. O certo é que nunca as vi comer nada, a não ser algumas moscas mais distraídas que ficavam presas nos seus bem urdidos fios e zumbiam que se danavam, mas em vão. Tudo vai do hábito e da familiarização, e as aranhas, portanto, se metem nojo e apavoram alguns nossos semelhantes, a mim não me aquecem nem arrefecem.
Mas às vezes exasperam e cansam. Cansam-me e afrontam-me.
Então não é que uma delas deu para se acomodar há um tempo no espelho retrovisor do meu carro, do lado do pendura? Vai daí e desata a fazer teias numa tentativa de criar uma ponte entre o espelho e o vidro da porta. Por que razão as faz, não sei, mas lá deve ter os seus porquês. Mas uma teia de aranha num carro, ainda que por fora, causa má impressão, como dizia a minha avó, dá um ar de descuido e de abandono, e o carro ainda vai andando, não está desamparado. Eu bem insisto em limpar regularmente a teagem, mas o raio da aranha pouco tempo depois a repõe com o mesmo cuidado e no mesmo sítio. Já reparei que os outros carros das redondezas também as têm, como se fosse arte de engalanar, mas detesto teimosias. Quando vou lavar o carro, o que faço com relativa frequência, aponto a agulheta para o espelho, para dentro dele, e fico sempre convencido de que a danada não vai resistir à violência do jacto, mas, logo no dia seguinte, lá está a maldita teia, acabada e reluzente. Já pensei em ameaçá-la com o FMI, mas sabemos bem como as aranhas são pouco dadas a palavras mansas e o FMI, esse, pouco dado a lidar com coisas insignificantes e nada proveitosas. Por isso, e enquanto não compro um spray eficaz, resigno-me.
Resigno-me, como quem se molda a um Abril cada vez menos Abril. A este propósito, e enquanto oiço neste dia vinte e cinco a voz de Zeca, fui procurar um texto que lhe dediquei, após o seu passamento, e que saiu no «Diário de Notícias» de três de Março de 1987. Porquê? Porque sim, questão de esperança.
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«Um Cravo Indisciplinado»
A uma dúzia de anos da revolução dos cravos, e já as vozes que então cantaram Abril se ensurdecem, uma a uma, na rouquidão do tempo. E em cada voz um pouco de Abril, que o mesmo é dizer, um pouco de nós.
Morreu Adriano. Seguiu-se-lhe Ary dos Santos. Chegou, (in)esperadamente, a vez de Zeca. Todos três fazendo-se ao rio na idade em que um homem se cumpre.
De Adriano, recordo um serão-convívio na companhia de Sérgio Teixeira (Serginho ou, também para os amigos, o Sérgio Mestre), seu fiel acompanhante. Cantou-se e animou-se «a malta» até às tantas, que a noite, nessas alturas, raro se antecipava.
De Ary dos Santos, a efígie dolente do féretro atravessando, em manhã cinzenta de chuva lacrimosa, a rotunda do Saldanha. Imagem que retive, horas depois, no breve poema «Resistência»: Grito vibrante/ Esbatido/ No vento vago/ Melodiosamente manso/ E um soturno sossego/ Firme/ Avançando lento/ Na noite escura/ Plena/ Rumo ao negro nó/ Do luto.
De Zeca Afonso, que poderei recordar? Por ora, que ainda é cedo, quiçá a súmula dos três, a réstia de esperança inadiável, a força capaz de erguer bem alto um cravo indisciplinado.
Ao Zeca e a quantos o aguardam no além, e que com(o) ele souberam lutar-cantando, que se cumpram, «porque na vida», dizia Camões, «ninguém alcança a glória merecida».
Requiescat in pace!
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Crónica de Abril de 2011 de António Souto (escrita no dia 25 de Abril) para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34.
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