quinta-feira, 30 de agosto de 2012

António Souto – Crónica (51)


… promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham» (Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]» (Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de Coventry).

À espera de Setembro
Está praticamente tudo fechado para férias neste lindo mês de Agosto. E bem podem fazer questão de nos tirar as férias e aquilo que as subsidia que elas são sagradas, e penando uns mais outros menos lá se vai cada um de nós desempeçando com os cêntimos sobrantes. Isto de fechado para férias é como quem diz, que há fechaduras que tão cedo não voltarão a rodar por serem as férias inevitavelmente estendidas, mas disto não discorreremos, que assaz se tem perorado, disto, dos incêndios e de outras acrimónias do Verão.
Por isso, poderíamos igualmente confessar que também nos continuamos mantendo em regime de ócio e, assim, arranjarmos desculpa decorosa para nos esquivarmos ao encargo da crónica mensal, mas ficaríamos por certo de mal com a nossa consciência. Não aprontaremos pretextos, portanto, mas a verdade é que os assuntos merecedores de atenção acabam por falhar e ficamos para aqui à deriva a ver se chegamos à costa, isto é, ao final da página, sem que o leitor dê pelo vazio da substância. É claro que há sempre forma de contornar as vagas.
Por exemplo, fazermos como fez Luiz Fagundes Duarte numa crónica recente, que à falta de matéria e ou de inspiração se decidiu por discorrer sobre as placas toponímicas «inauguratórias», sobre o pouco que dizem e, sobretudo, do muito que fica por dizer. Coloca-se uma primeira pedra num descampado ou inaugura-se uma qualquer obra, feita ou não, e lá fica uma lápide com o registo da Excelência que a descerrou (ou não, às vezes, que conhecemos pelo menos uma pedra com o nome de um «descerrante» que no acto se encontrava a léguas) e, quando calha, ainda de uns quantos insignes que assistiram protocolarmente ao evento, mas nunca se entalham os nomes daqueles que deram o corpo e o coiro ao manifesto. Foi por estas e por outras que Saramago, narrando-nos a edificação do Convento de Mafra, decidiu nomear vinte e três operários, de A a Z, edificando-os também, porque deles foi a maior parte da criação.
Ou, por exemplo, chamarmos à colação conteúdo mais contundente, como a efusiva sugestão do presidente do Comité Olímpico Português de, «sem conotações políticas», ser reactivada a Mocidade Portuguesa. Uma proposta virtuosa para pôr os atletas de alta competição na linha, que isto de ir uma vastíssima delegação para o estrangeiro malbaratar uma fortuna e, no regresso, trazer duas míseras medalhas não é exemplo para ninguém, muito menos para a Pátria, e é de nobres exemplos que a Pátria necessita, bem como de elevados encorajamentos como este, ou como aqueloutro que, coincidentemente, pretendia a suspensão da democracia por uns meses.
Ou, por exemplo, imergirmos até nos faltar o ar por insignificâncias que têm preocupado gente folgada a propósito do desaparecimento de documentos relativos aos famigerados contratos dos submarinos que tanto têm dado que falar por cá como por águas alemãs e que um ex-ministro da Defesa já esclareceu não saber de nada e muito menos os ditos terem vindo acidentalmente misturados com as 61.893 páginas que fotocopiou nos idos de 2007 e que um Expresso de Novembro desse ano muito bem elucidou.
Ou, por exemplo, e isto seria bem mais sério, sublinharmos o desafio reformador de o Ministério da Educação atingir a curto prazo uma oferta de 50% de cursos profissionais nas escolas portuguesas, o mesmo objectivo de há uns quatro ou cinco anos, promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham» (Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]» (Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de Coventry). Era só uma questão de alguns poucos ajustamentos e de alguma pouca imaginação.
Mas não, não nos apetece encher chouriços, empatar, para sermos mais elegantes, não vá o leitor enfadar-se, e com razão, de maneira que nos ficamos por aqui, sem cronicarmos nada, nadinha, esperando apenas por Setembro.

Crónica de Agosto de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

A lentidão

Não foi só os jogadores do Sporting a jogarem em câmara lenta contra o Rio Ave (0-1, em casa), foi também o treinador (?), depois, a falar em câmara lenta.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Deixou-nos a pele


Este fim-de-semana, por aqui.


domingo, 19 de agosto de 2012

O meu ídolo do Sporting


Foi no final da década de 1970 que comecei a acompanhar o futebol. Mesmo assim, lembro-me de poucas coisas do título do meu clube em 1979/ 80. As minhas memórias dos jogos do Sporting começam verdadeiramente no Verão de 1981, quando a equipa foi estagiar para a Bulgária e eu ouvia na rádio que o novo guarda-redes, o húngaro Meszaros, fazia defesas impossíveis. O nome era uma novidade, mas acabou por se tornar familiar. Lembro-me de escrevê-lo num pequeno caderno onde ia apontando todos os jogos dessa época, com a certeza de que o campeonato não iria fugir. Mesmo com os falhanços que tivemos, por exemplo logo a abrir em casa com o Belenenses, num jogo que deu um empate; ou noutros empates em casa, com o Guimarães, o Espinho e o Leiria; ou até nas derrotas no estádio do Boavista, onde parecia haver uma maldição qualquer contra nós, e em Portimão, tão perto da minha terra. O jogo de Portimão, que lá está no pequeno caderno com os dois a zero do penalty do brasileiro Tião e do remate na meia-lua de Norton de Matos, esse jogo foi o único que vi ao vivo naquela época inesquecível. Foi mesmo a primeira vez que pude ir ver o Sporting, ainda por cima ficando junto ao gradeamento, a dois metros da linha de golo onde Meszaros, na primeira parte, andava de um lado para o outro, e eu completamente espantado, como se estivesse perto de um extraterrestre.
Meszaros seria sempre um dos jogadores sobre os quais eu escreveria numa série dos meus ídolos do Sporting. Nunca fui muito de ter ídolos, pensando mais na equipa, e por isso consigo facilmente enumerar os jogadores escolhidos: além de Meszaros, os que eu verdadeiramente recordo como ídolos são Balakov, Marco Aurélio, Pedro Barbosa, André Cruz, Beto Acosta, Mário Jardel e Liedson. Por muito que tenha apreciado outros, seria sobre estes que eu conseguiria escrever.
Há no entanto um outro ídolo, e que eu sempre associo ao Sporting. Nunca como ele um jogador me impressionou tanto. As memórias que guardo, além dos golos e das jogadas que fazia, são de frustração por ele não ter alinhado pela minha equipa. Uma época, duas, três, eu sempre à espera de que fosse para o Sporting, e nada. Até que acabou por ir, mas demasiado tarde, quando parecia completamente transformado, incapaz de marcar os golos que antes eu via com admiração e nalguns casos com um enorme espanto. Foi no começo da época de 1988/ 89. Ele está na foto oficial do plantel do Sporting, curiosamente entre dois defesas, como era habitual andar em campo: o brasileiro Ricardo Rocha e o português Miguel. Chamava-se Serge Cadorin e haveria de fazer essa época na Académica, com dezena e meia de jogos e poucos golos, regressando depois ao seu verdadeiro clube em Portugal, o Portimonense, onde ainda faria menos jogos e marcaria menos golos. Depois, a Bélgica, o seu país, para uma época final no clube da terra onde nasceu, uma época ainda menos conseguida.
O Cadorin que chegou ao Sporting já não era o mesmo jogador que tinha chegado meia-dúzia de anos antes a Portugal, para jogar no Portimonense. Estava limitado, depois de uma explosão em sua casa, cerca de um ano antes do começo dessa época de 1988/ 89, uma explosão que gerou opiniões polémicas e que por pouco não lhe tirava a vida. Creio que ele nunca quis falar muito do assunto, e até a sua filha, Sandy, chegada a Portimão com os pais com apenas duas semanas, em 1983, numa entrevista de há três ou quatro anos fala apenas de um «infeliz acidente».
Foi o jogador consumido pela explosão que chegou ao meu clube. Incapaz de marcar golos como os que eu tinha visto no estádio do Portimonense – o primeiro logo na estreia, num empate a dois com o Farense, então de regresso à primeira divisão; Cadorin empatou o jogo já perto do fim, fazendo entrar a bola na baliza, imagine-se, do grande Meszaros; e na baliza do Portimonense estava Vitor Damas. Cadorin, que tinha sempre os defesas por perto, como na foto em que aparece com a camisola do Sporting. Uma vez, num jogo para a Taça de Portugal com o Espinho, marcou um dos golos que mais me ficou na memória. O Espinho tinha uma equipa modesta, mas no centro da defesa estava um antigo internacional, quase a acabar a acarreia, Freitas, ex-jogador do Porto. Os colegas de Freitas não acertavam com a marcação a Cadorin e por isso o ex-internacional repreendia-os constantemente. Eles, ainda jovens, nem respondiam, parecendo envergonhados. Até que de repente aconteceu uma jogada extraordinária. A bola foi metida em profundidade para Cadorin. Um dos defesas que o marcava já não o conseguiu apanhar, mas estava lá o experiente Freitas, que correu para ele e com um salto conseguiu agarrá-lo com firmeza. Pensei que ia ser falta, que Cadorin acabaria no chão para um livre a uns trinta metros da baliza. Mas não. Cadorin correu, correu, entrou na área e marcou golo, correu veloz como sempre, mesmo com o antigo internacional sempre agarrado a ele, de rojo, como se tivesse cola nas mãos. Já não me lembro bem, mas acho que Freitas só largou Cadorin depois de ter andado uns bons metros de rojo, quando o meu ídolo já corria em direcção à bancada central para festejar o golo em frente dos sócios do clube.
Mas o jogo que tenho mais presente, acima de todos, é o de finais de 1985, com o Porto, em Portimão. Comprei o jornal «A Bola» nesse dia, o jornal enorme, preto, branco e vermelho, a anunciar que Cadorin tinha sido aliciado para fazer um penalty contra a sua equipa. Li o que lá escreviam, que tinha sido o próprio Cadorin a denunciar o caso, e depois fui para o estádio. Encontrei o ambiente de confusão do costume, bem diferente do de agora por lá, pois já não vai muita gente aos jogos. Quase não se conseguia andar, coisa que aliás acontecia em todos os jogos importantes. Mas ao entrar no estádio notei qualquer coisa diferente do habitual. Não sabia bem o que era, mas tinha a ver com a história do penalty. Percebia-se nos olhares das pessoas, nos comentários, no receio do que poderia acontecer pouco depois de o jogo começar, já que o penalty estava marcado para os primeiros cinco minutos.
Tentei ver o que se passava com Cadorin, os movimentos que ia fazendo no aquecimento, e rapidamente percebi que muito dificilmente o Portimonense não ganharia o jogo, e mais, tive a certeza de que ele ia marcar. Reforcei essa certeza logo nos primeiros minutos, quando o vi fugir aos defesas do Porto e atirar à barra da baliza de Zé Beto. E depois, sobre o intervalo, talvez um minuto antes de o árbitro apitar, os dois momentos do jogo. Primeiro um ataque rápido do Portimonense, pela zona central, com a bola a sobrar para um dos irmãos Reina, que tentou o remate. A bola bateu num defesa do Porto e sobrou para o lado esquerdo, onde apareceu um jogador do Portimonense com nome de marca de automóvel: Skoda. Costumava jogar de bola colada aos pés e de cabeça levantada, mas aí nem perdeu tempo, centrou logo para a área. Zé Beto pareceu não saber bem se sair ou não, e enquanto estava nesse dilema apareceu Cadorin a chutar para dentro da baliza. Não me lembro de ter visto alguma vez um golo comemorado de forma tão efusiva naquele estádio. O barulho nas bancadas, os adeptos do Portimonense de pé, muitos aos saltos e aos abraços. Tudo tão diferente de um recanto da bancada coberta, que me parecia reservado aos notáveis do Porto, pouca gente, incluindo algumas senhoras com casacos de peles. Mais do que para a claque do Porto, era para lá que muitos adeptos do Portimonense se viravam. E as senhoras ripostavam, e algumas cirandavam pela bancada a fazerem carantonhas, procurando tirar satisfação das coisas que ouviam.
Eu costumava ficar perto dessa zona. Entrava para o peão com o cartão de jogador dos juvenis e depois subia para uma cobertura da porta de acesso, onde se via melhor o jogo. Estava concentrado na zaragata das senhoras dos casacos de peles com alguns adeptos do Portimonense. Mas de repente desviei o olhar. O jogo tinha recomeçado, faltaria uns segundos para o intervalo, e os jogadores do Porto estavam nervosos. Tinham acabado de perder a bola, que foi parar ao meio campo do Portimonense, e aí alguém já a lançava para o lado direito do ataque, mesmo junto a um dos bancos de suplentes. Foi por esse lado que correu Cadorin, surgido nem se percebia de onde. Um anãozinho que o Porto por vezes utilizava a defesa esquerdo correu desesperado para lá. A baliza ainda estava tão longe, pensava eu. Mas Cadorin, que chegou bem antes do anãozinho, chutou a bola de primeira. Mesmo junto ao banco de suplentes, chutou logo daí, e eu lembro-me de ter visto a bola pelo ar, a fazer um arco enorme. Zé Beto olhou para ela a cortar os ares, sem saber como apanhá-la, a bola a cair quando se aproximava da baliza. Muita gente parecia ir aproveitar o facto de ainda estar de pé e a saltar e aos gritos para festejar mais um golo, mas a bola apenas roçou no ferro da baliza, mesmo no encontro do poste direito com a barra. O árbitro apitou logo a seguir para o intervalo.
Na segunda parte o Portimonense apareceu mais retraído, a tentar guardar o resultado, e o Porto, mesmo que quisesse mudar as coisas, não conseguia. Cadorin andava de olhos postos na baliza de Zé Beto e todos os jogadores do Porto pareciam de olhos postos nele, mais do que na baliza do Portimonense, onde não conseguiram marcar nem por uma vez. Acabou com um a zero. Lembro-me de à noite ver Cadorin na televisão a dizer que tinha sido um jogo normal, apenas isso. E sobre o facto de o terem tentado comprar disse apenas que não queria falar mais do assunto. O repórter insistiu, perguntando-lhe se perante a polícia confirmaria as acusações que tinha feito. Disse simplesmente que sim, que confirmaria. 
Pouco mais de um ano passado, a explosão que lhe tirou as forças que faziam dele o jogador mais impressionante que alguma vez vi jogar. Digo isto agora, depois de tantos jogadores e tantos jogos, em tantos estádios. Mas Cadorin, visto com os meus olhos de adolescente, foi mesmo o jogador mais impressionante de todos. Às vezes eu ia para o liceu de Portimão, depois de ter saído do autocarro que me levava desde a Serra de Monchique, e passava pela avenida que acompanhava a bancada do estádio do Portimonense. Uma vez por outra via os jogadores. Lembro-me de Vítor Damas num Citroen Dyane e de um jogador que controlava o jogo a meio-campo, Carvalho, num Renault Cinco, o mesmo modelo em que passado pouco tempo veria Manuel Fernandes na bicha para a portagem da Ponte Vinte e Cinco de Abril. Já Cadorin nunca o vi de carro. Acho que ele morava num prédio perto do estádio, mesmo em frente de onde agora é a biblioteca municipal. Era de lá que o via sair às vezes, de fato de treino, em direcção ao estádio, com passada larga e sempre metido consigo, da mesma forma que o via no campo, pensativo, e de repente a arrancar para a baliza como um furacão, ou a chutar de primeira com uma força tremenda.
Não jogou pelo Sporting, foi apenas num começo de época vestir a camisola verde e branca para a foto oficial do plantel. Época de 1988/ 89, mais uma das terríveis épocas dos dezoito anos sem campeonatos. O verdadeiro Cadorin, o que chegou a Portimão em 1983, sempre acreditei, teria ajudado a construir uma história diferente. Mas infelizmente só chegou ao Sporting depois da maldita explosão. Nunca conseguiu marcar um golo por nós, marcou-nos foi dois em Alvalade. Marcou contra nós, mas é o meu ídolo do Sporting.
Cadorin morreu em 2007, aos 45 anos, vítima de um ataque cardíaco. Na entrevista da filha há várias fotos. Dos tempos de Portimão, mas também dos tempos que se seguiram ao regresso à Bélgica. Cadorin passou a vender têxteis nas feiras, com a mulher. É um Cadorin envelhecido o desses tempos, mesmo sendo ainda um homem novo. Nas outras fotos reconhece-se a zona da Praia da Rocha, e também a Praia do Vau. Os filhos ainda pequeninos, e ele jovem e cheio de força, e a mulher também ainda jovem. Numa das fotos a mulher está a encher de água um garrafão, nas Caldas de Monchique. Cadorin segura a filha pequenina pela mão. A casa dos meus pais, onde eu vivia então, fica um pouco mais acima. Só na entrevista da filha, mais de vinte anos depois, descobri que o meu ídolo ia com a família buscar água à minha terra.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Uma história

Maradona esteve brilhante


Chamemos-lhe, por exemplo, Gabriel García Márquez. Ou antes, chamemos-lhe Diego Armando Maradona, que provavelmente ainda é mais conhecido do que o escritor colombiano. É uma das personagens desta história, que aconteceu há alguns anos, em Portugal, durante o primeiro aniversário de uma livraria. Maradona – talvez devesse chamar-lhe García Márquez, já nem sei – estava convidado.
Foi no primeiro aniversário de uma livraria, durante um leilão de livros em que eu próprio dei ajuda. Fiz sugestões para a preparação do programa e também forneci alguns contactos, além, obviamente, de carregar umas boas caixas de livros. Um dia, na preparação da festa, tinha surgido a ideia de fazer o leilão. A ideia foi-se desenvolvendo e então tomou-se à decisão de o leilão ser de livros de viagens, com os próprios autores dos livros escolhidos a marcarem presença. Tudo iria acontecer no largo da câmara, junto à entrada da livraria, e esperava-se que acorressem umas centenas de pessoas.
Muitos dos escritores convidados aceitaram, e entre eles havia gente conhecida, como José Eduardo Agualusa, Miguel Sousa Tavares, Clara Pinto Correia, Robyn Davidson, José Megre, Manuel João Ramos, Miguelanxo Prado ou José Manuel Fajardo. Cada um teria um livro para ser leiloado, depois de dizer algumas palavras, como complemento do texto ou da ilustração que pelo próprio punho teria colocado numa das páginas em branco.
Claro que para fazer o leilão tinha de ser convidada uma pessoa importante, conhecida no meio, digamos assim, literário. Foi então que surgiu a ideia de convidar o tal Gabriel García Márquez de cá, ou antes, o tal Diego Armando Maradona, ou Mário Vargas Llosa, ou Eusébio da Silva Ferreira, enfim, o que se queira. Talvez Maradona seja o melhor. E foi mesmo convidado. As pessoas da livraria achavam que ele não ia aceitar, mas a verdade é que aceitou.
Cá o nosso Maradona aceitou. Bom, lá chegou o dia do aniversário, com várias iniciativas, até que ao fim da tarde ia começar o leilão. Os escritores que tinha confirmado a presença estavam todos, e tinham devolvido os livros com o texto, o desenho e o autógrafo. Os que só se tinham comprometido a devolver o livro também tinham cumprido. O largo da câmara estava cheio, confirmava-se mesmo a presença de centenas de pessoas. Eu tinha carregado muitas caixas de livros. Tudo corria bem, tirando o caso de Diego Armando Maradona. Não estava presente. Nem ia estar, apesar de ter o nome no programa, confirmado e reconfirmado. Tinha telefonado a dizer que um problema de última hora o impedia.
E então, para fazer o leilão, de repente as pessoas da livraria lembraram-se de mim. Foi desta forma que eu me vi no meio dos escritores, com um pequeno martelo para assinalar cada arrematação. Lembro-me de que havia um Benfica – Porto ao mesmo tempo e que dava na televisão. Se fosse o Sporting a jogar seria uma catástrofe, pensei, mas assim… Curiosamente, o jogo não tinha desmobilizado a assistência. Ainda pensei que poderiam ter vindo pelo Maradona, e depois pensei que ele próprio, o nosso Maradona, era capaz de estar ausente por causa do jogo. Daquele ou de outro qualquer.
Acho que fui escolhido por também ser escritor, embora os convidados fossem dos conhecidos e eu não. Lá me apresentaram, a dizer que era o substituto do leiloeiro Diego Armando Maradona, que também tinha publicado livros e essas coisas. Aí notei que pouca gente da assistência se importou, o que me levou a pensar que estavam mesmo interessados nos autores e nos livros a leilão. Confirmei-o depois, com os valores obtidos em cada martelada.
Lembro-me de que guardei os apontamentos que ia tomando, por isso posso ainda confirmar os valores. Estávamos nos últimos tempos do escudo. O livro de José Eduardo Agualusa, «Um Estranho em Goa», por exemplo, com o preço base de três mil e quinhentos escudos, foi vendido por vinte mil. O de José Manuel Fajardo, «Terra Prometida», que partiu de quatro mil e quinhentos, chegou aos vinte e um mil, o de José Megre, «Trinta Anos de Viagens», com uma base de sete mil e quinhentos escudos, atingiu vinte e cinco mil. Miguel Sousa Tavares (as crónicas de «Sul») ficou-se pelos dez mil, mas Manuel João Ramos («Histórias Etíopes») chegou aos doze e Miguelanxo Prado («Carta de Lisboa») aos quinze. Robyn Davidson («Lugares Desertos») chegou a dez mil e quinhentos escudos e Clara Pinto Correia atingiu os sete mil («The Big Easy»). Pelo meio, ainda foi leiloado um CD com músicas de Lula Pena, uma cantora portuguesa na altura radicada no Luxemburgo, que ia actuar a seguir. Ela não conseguiu conter o espanto quando viu o CD chegar a dezasseis mil e quinhentos escudos. E também foi leiloada uma foto do fotógrafo Vasco Cunha Monteiro, integrada numa exposição sobre uma viagem à Patagónia que estava patente na livraria (e o que é certo é que a foto chegou aos cinquenta e dois mil escudos). 
Tudo isto, principalmente para quem anda pelo mundo dos livros, parece muito dinheiro. Ainda por cima tratando-se de autores vivos e parte deles presentes no leilão e a fazerem intervenções. Foi uma surpresa para mim. E também para os autores participantes. José Eduardo Agualusa, antes de regressar ao hotel onde devia descansar um pouco para depois apanhar o avião de regresso a Berlim, onde então estava a viver, veio ter comigo e disse-me: «Pá, tu és mesmo bom!» Por momentos pensei que ele tinha algum dos meus livros e que se calhar andava com ideias de cravar-me um autógrafo, mas logo percebi o que ele queria dizer, ao ouvi-lo falar de novo: «Pá, tu vendeste um livro meu por vinte contos, um livro que nem chega aos três nas livrarias! Tu és mesmo bom!»
Ou seja, o leilão foi um sucesso. As pessoas quiseram falar com os escritores, e eu, com quem ninguém parecia querer falar, afastei-me da mesa e fui ver se era preciso ajudar nalguma coisa, talvez carregar umas caixas de livros se as pessoas já tivessem esgotado os das mesas onde iam fazendo as vendas – de livros, de comidas e de bebidas.
Passados uns dias, saiu no jornal da terra um trabalho sobre a festa. O leilão era o grande destaque. Fui logo ler o texto. Falava-se do projecto da livraria, mas sobretudo dos escritores, dos livros a leilão e dos valores atingidos (trocando alguns em relação ao que eu tinha colocado nos meus apontamentos). A meio da leitura, tive a esperança de que falassem de mim, que tinha sido apresentado para fazer o leilão em vez do grande Maradona. Mas nada. Fui avançando no texto, e nada, mesmo nada. Só a livraria, os livros, os escritores, e até a enorme assistência que tinha enchido o largo da câmara. Tentei colocar-me no meu lugar, pensando até que se falassem de mim como leiloeiro também poderiam dizer das minhas andanças a carregar caixas de livros. E também a dar uma ajuda na zona das mesas de venda de livros, de comidas e de bebidas. Ou seja, eu não tinha que estar a pensar aquelas coisas. Por isso avancei no texto. Mais pormenores dos escritores presentes, com alguma insistência em José Eduardo Agualusa e José Manuel Fajardo. Bem merecida, pelo menos era o que eu pensava. Gostava muito dos livros deles, e inclusive no leilão tinha falado um pouco de cada livro – «Um Estranho em Goa», que tinha lido num Verão, no Algarve, na praia, e a viagem escrita pelo espanhol, que tinha acabado uns tempos antes, depois de ter lido outro livro dele, pequenino, chamado «Carta do Fim do Mundo». De outros escritores no leilão eu também conhecia os livros, e por isso tinha falado deles, e nos casos em que não conhecia por aí além tinha-me refugiado em considerações mais genéricas, inclusive sobre o respectivo autor.
Eu pensava nisto a ler o texto do jornal, aproximava-me do fim e já me tinha esquecido do desejo de ver lá o meu nome a dizer que tinha sido o leiloeiro, ou se quisesse uma linguagem mais elaborada a dizer que tinha tido a meu cargo o leilão dos livros. Mas nada.
Até que a duas linhas do fim, de repente, um parágrafo acabava. E depois, a abrir o último, pequenino, dei com uma frase que me captou ainda mais a atenção. Comecei a ler devagar, tentando apanhar bem cada palavra: «Conduziu – o – leilão – de – forma – brilhante…» Por momentos pensei que mais do que aqueles escritores famosos, uns pelo facto de serem escritores, outros pelo facto de serem famosos de outras coisas e também terem escrito livros, por momentos pensei que no meio deles eu ia ser o grande destaque. Pensei que ia receber, talvez, o maior elogio da festa do primeiro aniversário da livraria. Em vez de avançar até ao fim da frase, decidi recuar, para lê-la toda de seguida, sem pausas. Voltei ao início do pequeno parágrafo e li: «Conduziu o leilão, de forma brilhante…» Já ia lançado a dizer o meu nome, mas não. No jornal o que escreviam era que quem tinha conduzido o leilão de forma brilhante tinha sido, já se vê, Diego Armando Maradona. O nosso Maradona. Como aliás vinha no programa.

Edição de Agosto da «human»


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

António Souto – Crónica (50)



As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.

Que importa que Portugal arda?
Portugal arde. Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos.
Era eu criança e já o país ardia, como sempre deve ter ardido, de norte a sul e do litoral ao interior, e ao calor do estio juntava-se a quentura abrasadora das chamas.
Lá em casa falava-se do mato dos pinhais ao abandono que não parava de crescer e que já ninguém queria cortar, estava tudo rico, e era por via disso que o meu avô ia todos os anos com trabalhadores a dias apanhar carros e carros dele, bem cedinho para evitar o sol que tornava o tojo mais duro e maior o esforço de o aparar, carros de vacas que o traziam, por haver um único tractor na aldeia e ficar caro o transporte, e logo que descarregado em casa ia uma parte para o caminho argiloso e rebaixado do pátio e a outra para os currais, para a cama do gado.
Naquelas ocasiões em que as labaredas se avultavam e intimidavam, o sino tocava a rebate, e antes mesmo da chegada dos voluntários organizados, a gente da aldeia acorria desorientada e, pelo monte acima, galgava a escuridão (porque de noite a urgência e o pânico eram mais inflamados) norteada pelo cheiro a eucalipto queimado e pelos lampejos no céu estrelado antes de encoberto pelo fumo. E chegados todos ao inferno, cada um a seu modo ajudava a vencer o fogo, com uma enxada ou um engaço, com uma forquilha ou uma engaceta, com ramos verdes esgaçados à sorte ou com berros e impropérios de encorajamento. No final, pela madrugada, os corpos soçobrados de suor e cinza, os olhos ardentes e a respiração abafada, o fascínio de um incêndio debelado. 
Lá em casa, naquelas ocasiões, o dia seguinte era um dia amargo e de poucas palavras. No ar, um bafo a desolação.
Hoje já ninguém apanha o mato por este já não ser de ninguém, e já não há quem toque os sinos a rebate nem quem saiba o que isso seja, que os tempos são outros. Mas há ainda chamas que continuam avançando, como antes avançavam, porque o chão tem que arder quando o vento sopra de feição. E há o eco sumido dos melros e das pegas pelos ramos altos dos pinheiros e o rosmaninho rasando as raízes. E há gestos que se repetem quando o castigo se acerca e o desespero alastra (temos de ser uns para os outros, solidários, como agora se apregoa). E há silêncios asfixiados tão como os de sempre quando as muitas lágrimas se esvaecem no rescaldo do flagelo.
Mas hoje o incêndio é só um incêndio, vistoso e desinteressante. Mais pinheiro menos pinheiro, mais eucalipto menos eucalipto, mais casa menos casa, mais vida menos vida. É verdade que a reportagem impressiona, o enquadramento é meticuloso, o plano de pormenor, mas o fogo tem menos magia, e na nossa casa, onde não lavrou, o dia seguinte é só mais um dia seguinte, o espectáculo dura o tempo costumado da notícia.
As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.
Quanto ao mais, que importa que Portugal arda? Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos. E nós com ele, aclimatados.

Crónica de Julho de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49.