Foi no final da década de 1970 que comecei a acompanhar o futebol. Mesmo assim, lembro-me de poucas coisas do título do meu clube em 1979/ 80. As minhas memórias dos jogos do Sporting começam verdadeiramente no Verão de 1981, quando a equipa foi estagiar para a Bulgária e eu ouvia na rádio que o novo guarda-redes, o húngaro Meszaros, fazia defesas impossíveis. O nome era uma novidade, mas acabou por se tornar familiar. Lembro-me de escrevê-lo num pequeno caderno onde ia apontando todos os jogos dessa época, com a certeza de que o campeonato não iria fugir. Mesmo com os falhanços que tivemos, por exemplo logo a abrir em casa com o Belenenses, num jogo que deu um empate; ou noutros empates em casa, com o Guimarães, o Espinho e o Leiria; ou até nas derrotas no estádio do Boavista, onde parecia haver uma maldição qualquer contra nós, e em Portimão, tão perto da minha terra. O jogo de Portimão, que lá está no pequeno caderno com os dois a zero do penalty do brasileiro Tião e do remate na meia-lua de Norton de Matos, esse jogo foi o único que vi ao vivo naquela época inesquecível. Foi mesmo a primeira vez que pude ir ver o Sporting, ainda por cima ficando junto ao gradeamento, a dois metros da linha de golo onde Meszaros, na primeira parte, andava de um lado para o outro, e eu completamente espantado, como se estivesse perto de um extraterrestre.
Meszaros seria sempre um dos jogadores sobre os quais eu escreveria numa série dos meus ídolos do Sporting. Nunca fui muito de ter ídolos, pensando mais na equipa, e por isso consigo facilmente enumerar os jogadores escolhidos: além de Meszaros, os que eu verdadeiramente recordo como ídolos são Balakov, Marco Aurélio, Pedro Barbosa, André Cruz, Beto Acosta, Mário Jardel e Liedson. Por muito que tenha apreciado outros, seria sobre estes que eu conseguiria escrever.
Há no entanto um outro ídolo, e que eu sempre associo ao Sporting. Nunca como ele um jogador me impressionou tanto. As memórias que guardo, além dos golos e das jogadas que fazia, são de frustração por ele não ter alinhado pela minha equipa. Uma época, duas, três, eu sempre à espera de que fosse para o Sporting, e nada. Até que acabou por ir, mas demasiado tarde, quando parecia completamente transformado, incapaz de marcar os golos que antes eu via com admiração e nalguns casos com um enorme espanto. Foi no começo da época de 1988/ 89. Ele está na foto oficial do plantel do Sporting, curiosamente entre dois defesas, como era habitual andar em campo: o brasileiro Ricardo Rocha e o português Miguel. Chamava-se Serge Cadorin e haveria de fazer essa época na Académica, com dezena e meia de jogos e poucos golos, regressando depois ao seu verdadeiro clube em Portugal, o Portimonense, onde ainda faria menos jogos e marcaria menos golos. Depois, a Bélgica, o seu país, para uma época final no clube da terra onde nasceu, uma época ainda menos conseguida.
O Cadorin que chegou ao Sporting já não era o mesmo jogador que tinha chegado meia-dúzia de anos antes a Portugal, para jogar no Portimonense. Estava limitado, depois de uma explosão em sua casa, cerca de um ano antes do começo dessa época de 1988/ 89, uma explosão que gerou opiniões polémicas e que por pouco não lhe tirava a vida. Creio que ele nunca quis falar muito do assunto, e até a sua filha, Sandy, chegada a Portimão com os pais com apenas duas semanas, em 1983, numa entrevista de há três ou quatro anos fala apenas de um «infeliz acidente».
Foi o jogador consumido pela explosão que chegou ao meu clube. Incapaz de marcar golos como os que eu tinha visto no estádio do Portimonense – o primeiro logo na estreia, num empate a dois com o Farense, então de regresso à primeira divisão; Cadorin empatou o jogo já perto do fim, fazendo entrar a bola na baliza, imagine-se, do grande Meszaros; e na baliza do Portimonense estava Vitor Damas. Cadorin, que tinha sempre os defesas por perto, como na foto em que aparece com a camisola do Sporting. Uma vez, num jogo para a Taça de Portugal com o Espinho, marcou um dos golos que mais me ficou na memória. O Espinho tinha uma equipa modesta, mas no centro da defesa estava um antigo internacional, quase a acabar a acarreia, Freitas, ex-jogador do Porto. Os colegas de Freitas não acertavam com a marcação a Cadorin e por isso o ex-internacional repreendia-os constantemente. Eles, ainda jovens, nem respondiam, parecendo envergonhados. Até que de repente aconteceu uma jogada extraordinária. A bola foi metida em profundidade para Cadorin. Um dos defesas que o marcava já não o conseguiu apanhar, mas estava lá o experiente Freitas, que correu para ele e com um salto conseguiu agarrá-lo com firmeza. Pensei que ia ser falta, que Cadorin acabaria no chão para um livre a uns trinta metros da baliza. Mas não. Cadorin correu, correu, entrou na área e marcou golo, correu veloz como sempre, mesmo com o antigo internacional sempre agarrado a ele, de rojo, como se tivesse cola nas mãos. Já não me lembro bem, mas acho que Freitas só largou Cadorin depois de ter andado uns bons metros de rojo, quando o meu ídolo já corria em direcção à bancada central para festejar o golo em frente dos sócios do clube.
Mas o jogo que tenho mais presente, acima de todos, é o de finais de 1985, com o Porto, em Portimão. Comprei o jornal «A Bola» nesse dia, o jornal enorme, preto, branco e vermelho, a anunciar que Cadorin tinha sido aliciado para fazer um penalty contra a sua equipa. Li o que lá escreviam, que tinha sido o próprio Cadorin a denunciar o caso, e depois fui para o estádio. Encontrei o ambiente de confusão do costume, bem diferente do de agora por lá, pois já não vai muita gente aos jogos. Quase não se conseguia andar, coisa que aliás acontecia em todos os jogos importantes. Mas ao entrar no estádio notei qualquer coisa diferente do habitual. Não sabia bem o que era, mas tinha a ver com a história do penalty. Percebia-se nos olhares das pessoas, nos comentários, no receio do que poderia acontecer pouco depois de o jogo começar, já que o penalty estava marcado para os primeiros cinco minutos.
Tentei ver o que se passava com Cadorin, os movimentos que ia fazendo no aquecimento, e rapidamente percebi que muito dificilmente o Portimonense não ganharia o jogo, e mais, tive a certeza de que ele ia marcar. Reforcei essa certeza logo nos primeiros minutos, quando o vi fugir aos defesas do Porto e atirar à barra da baliza de Zé Beto. E depois, sobre o intervalo, talvez um minuto antes de o árbitro apitar, os dois momentos do jogo. Primeiro um ataque rápido do Portimonense, pela zona central, com a bola a sobrar para um dos irmãos Reina, que tentou o remate. A bola bateu num defesa do Porto e sobrou para o lado esquerdo, onde apareceu um jogador do Portimonense com nome de marca de automóvel: Skoda. Costumava jogar de bola colada aos pés e de cabeça levantada, mas aí nem perdeu tempo, centrou logo para a área. Zé Beto pareceu não saber bem se sair ou não, e enquanto estava nesse dilema apareceu Cadorin a chutar para dentro da baliza. Não me lembro de ter visto alguma vez um golo comemorado de forma tão efusiva naquele estádio. O barulho nas bancadas, os adeptos do Portimonense de pé, muitos aos saltos e aos abraços. Tudo tão diferente de um recanto da bancada coberta, que me parecia reservado aos notáveis do Porto, pouca gente, incluindo algumas senhoras com casacos de peles. Mais do que para a claque do Porto, era para lá que muitos adeptos do Portimonense se viravam. E as senhoras ripostavam, e algumas cirandavam pela bancada a fazerem carantonhas, procurando tirar satisfação das coisas que ouviam.
Eu costumava ficar perto dessa zona. Entrava para o peão com o cartão de jogador dos juvenis e depois subia para uma cobertura da porta de acesso, onde se via melhor o jogo. Estava concentrado na zaragata das senhoras dos casacos de peles com alguns adeptos do Portimonense. Mas de repente desviei o olhar. O jogo tinha recomeçado, faltaria uns segundos para o intervalo, e os jogadores do Porto estavam nervosos. Tinham acabado de perder a bola, que foi parar ao meio campo do Portimonense, e aí alguém já a lançava para o lado direito do ataque, mesmo junto a um dos bancos de suplentes. Foi por esse lado que correu Cadorin, surgido nem se percebia de onde. Um anãozinho que o Porto por vezes utilizava a defesa esquerdo correu desesperado para lá. A baliza ainda estava tão longe, pensava eu. Mas Cadorin, que chegou bem antes do anãozinho, chutou a bola de primeira. Mesmo junto ao banco de suplentes, chutou logo daí, e eu lembro-me de ter visto a bola pelo ar, a fazer um arco enorme. Zé Beto olhou para ela a cortar os ares, sem saber como apanhá-la, a bola a cair quando se aproximava da baliza. Muita gente parecia ir aproveitar o facto de ainda estar de pé e a saltar e aos gritos para festejar mais um golo, mas a bola apenas roçou no ferro da baliza, mesmo no encontro do poste direito com a barra. O árbitro apitou logo a seguir para o intervalo.
Na segunda parte o Portimonense apareceu mais retraído, a tentar guardar o resultado, e o Porto, mesmo que quisesse mudar as coisas, não conseguia. Cadorin andava de olhos postos na baliza de Zé Beto e todos os jogadores do Porto pareciam de olhos postos nele, mais do que na baliza do Portimonense, onde não conseguiram marcar nem por uma vez. Acabou com um a zero. Lembro-me de à noite ver Cadorin na televisão a dizer que tinha sido um jogo normal, apenas isso. E sobre o facto de o terem tentado comprar disse apenas que não queria falar mais do assunto. O repórter insistiu, perguntando-lhe se perante a polícia confirmaria as acusações que tinha feito. Disse simplesmente que sim, que confirmaria.
Pouco mais de um ano passado, a explosão que lhe tirou as forças que faziam dele o jogador mais impressionante que alguma vez vi jogar. Digo isto agora, depois de tantos jogadores e tantos jogos, em tantos estádios. Mas Cadorin, visto com os meus olhos de adolescente, foi mesmo o jogador mais impressionante de todos. Às vezes eu ia para o liceu de Portimão, depois de ter saído do autocarro que me levava desde a Serra de Monchique, e passava pela avenida que acompanhava a bancada do estádio do Portimonense. Uma vez por outra via os jogadores. Lembro-me de Vítor Damas num Citroen Dyane e de um jogador que controlava o jogo a meio-campo, Carvalho, num Renault Cinco, o mesmo modelo em que passado pouco tempo veria Manuel Fernandes na bicha para a portagem da Ponte Vinte e Cinco de Abril. Já Cadorin nunca o vi de carro. Acho que ele morava num prédio perto do estádio, mesmo em frente de onde agora é a biblioteca municipal. Era de lá que o via sair às vezes, de fato de treino, em direcção ao estádio, com passada larga e sempre metido consigo, da mesma forma que o via no campo, pensativo, e de repente a arrancar para a baliza como um furacão, ou a chutar de primeira com uma força tremenda.
Não jogou pelo Sporting, foi apenas num começo de época vestir a camisola verde e branca para a foto oficial do plantel. Época de 1988/ 89, mais uma das terríveis épocas dos dezoito anos sem campeonatos. O verdadeiro Cadorin, o que chegou a Portimão em 1983, sempre acreditei, teria ajudado a construir uma história diferente. Mas infelizmente só chegou ao Sporting depois da maldita explosão. Nunca conseguiu marcar um golo por nós, marcou-nos foi dois em Alvalade. Marcou contra nós, mas é o meu ídolo do Sporting.
Cadorin morreu em 2007, aos 45 anos, vítima de um ataque cardíaco. Na entrevista da filha há várias fotos. Dos tempos de Portimão, mas também dos tempos que se seguiram ao regresso à Bélgica. Cadorin passou a vender têxteis nas feiras, com a mulher. É um Cadorin envelhecido o desses tempos, mesmo sendo ainda um homem novo. Nas outras fotos reconhece-se a zona da Praia da Rocha, e também a Praia do Vau. Os filhos ainda pequeninos, e ele jovem e cheio de força, e a mulher também ainda jovem. Numa das fotos a mulher está a encher de água um garrafão, nas Caldas de Monchique. Cadorin segura a filha pequenina pela mão. A casa dos meus pais, onde eu vivia então, fica um pouco mais acima. Só na entrevista da filha, mais de vinte anos depois, descobri que o meu ídolo ia com a família buscar água à minha terra.