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Despropósitos de verão
. O apresentador de serviço, agora noutra localidade, pergunta a um apicultor se «o mel se apanha na Primavera».
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Numa espécie de cobardia inconsciente, fugi para o Algarve quando todo o resto do país ardia. Todo o resto, que é como quem diz, mais o norte e o centro, que o sul, ardendo embora de sol, não ardia de chamas. Ardia de calor, de muito calor, de uma temperatura abrasadora tanto de dia como de noite. E nem o mar, ali tão aos pés, aliviava a canícula, que o arejo de África soprava tão quente como as labaredas de verdade. Lembro-me de há uns anos largos ter passado assim por este inferno em Madrid, fazendo jus ao dito de que por ali se passam, ao longo do ano, nove meses de inverno e três de inferno. Levanta-se uma criatura alagada em suor, e o suor persiste durante o dia e a noite inteiros intervalado apenas por duches recorrentes. O ar sufoca de tão parado e aceso, com brisa ou sem ela.
A RTP, num verão total, deu-lhe para andar pelos quatro cantos do país publicitando lugares, gentes e costumes. O serviço público fez-se à estrada, e há sempre boas surpresas para descobrir, maravilhas e pérolas, também como estas: um médico veterinário de Alfândega da Fé, fervoroso defensor da raça asinina, justifica uma iniciativa ali levada a cabo afirmando que se tratava de «ir de encontro ao burro»; também o apresentador de serviço – Francisco Mendes, nesse dia em parceria com Serenela Andrade –, agora noutra localidade, pergunta a um apicultor se «o mel se apanha na Primavera». Caso para se dizer que o calor, quando se não protege a moleirinha, tem destes efeitos!
Sempre tive para mim que os pássaros, como a demais bicharada, eram seres menos vaidosos do que os humanos, mas um dia destes, enquanto tomava um café gostoso e demorado, atentei no pacotinho de açúcar que o acompanhava. Os dizeres, de uma das faces, eram estes: «Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território/ Ajude-nos a proteger o Ambiente/ Dulce Álvaro Pássaro/ Ministra do Ambiente e do Ordenamento do Território». Confesso que, entre o atónito e o envergonhado, não soube o que pensar. Tive, de resto, dificuldade na interpretação da mensagem. Não na mensagem do curto enunciado imperativo-directivo («Ajude-nos a proteger o Ambiente» – que bem poderia levar um ponto exclamativo), mas na mensagem global. O que faria ali o nome da senhora ministra? Terá sido ela, porventura, a autora daquele original enunciado? E porquê a referência à sua função? Houve receio de que os leitores não associassem a pessoa ao cargo ou o cargo à pessoa? Desconfio que ali houve malvadez. Como não acredito que a afectação tenha destes assomos, só pode ter sido seguramente o excesso de zelo de algum assessor ou o cândido oportunismo da marca de cafés. Nem outra coisa me ocorreria!
Na capital, a assistência social proporcionada às camadas mais carenciadas é assegurada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Por isso não é de estranhar que seja esta instituição, com mais de cinco séculos de existência, a garantir um funeral digno àqueles que «partem» sozinhos, sem família. Referem os números que, no ano passado, a SCML tratou de oitenta e dois funerais de pessoas nestas condições. Porém, não deixa de ser inquietante que este ano, só até Junho, se tenham já realizado sessenta e dois enterros de «sem-família». Como se a família se deixasse aos poucos substituir pela solidariedade institucional. Como se a família fosse cada vez menos família. Como se estas fossem cada vez mais as marcas do nosso tempo…
O Centenário da República ainda se comemora. De norte a sul, os acontecimentos decorrem com mais ou menos visibilidade. Umas celebrações modestas, mas mesmo assim diversificadas e em consonância com as imprescindíveis contenções. Em Lisboa, à parte a grande exposição na Cordoaria Nacional, ainda outras duas recomendáveis, ambas no Terreiro do Paço: uma, sobre «Corpo – Estado, Medicina e Sociedade no Tempo da I República»; outra, sobre «Viajar – Viajantes e Turistas à Descoberta de Portugal no Tempo da I República». Memórias de um tempo que nos trazem memórias. Memórias que nos dão o testemunho da celeridade do tempo e nos revelam a evolução da ciência, da tecnologia e da sociedade. Ainda no âmbito das celebrações, a leitura proveitosa de «1910 – Uma Antologia Literária» (com seis contos inéditos de Luísa Costa Gomes, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Miguel Real, Teolinda Gersão e Urbano Tavares Rodrigues), numa edição da D. Quixote.
Angeja é um lugar, um espaço substantivo, próprio, definido e concreto, porém um
topos a mais a juntar a todos os outros que se encontram no mapa. Mas, quando terra natal, é também um porto de ancoragem e de abrigo. Um sítio que se guarda e que se revisita. São assim todos os lugares que são
nossos, nem que a eles regressemos apenas uma ou duas vezes por ano. Como neste. Benditas sejam as férias!
.Crónica de Agosto de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26..