Texto de suporte à apresentação de «O Livro da Selva
Empresarial», de Liliana Silva Cerqueira (ed. Gestão Plus) – Lisboa, 22.03.12
(Bertrand Chiado)
Em primeiro lugar, devo dizer que tenho muito gosto em
apresentar «O Livro da Selva Empresarial». E devo também dizer que o livro me
cativou logo à partida, inclusive pelo título. Quando era criança nunca li «O
Livro da Selva», embora numa das colecções de cromos que fazia por esses tempos
aparecessem o Mogli, o Rei Lu, a pantera Baguera ou o urso Balu, por exemplo.
Só que nunca li o livro. Acontece que tenho filhos ainda pequeninos, três
filhos, e por isso nos últimos anos acompanhei vezes sem conta as aventuras do
Mogli, dos seus amigos e até, digamos assim, e com aspas, dos seus «inimigos».
Vi os desenhos animados do «Livro da Selva», uma vez, e outra, e outra. Assim
como vi os do Faísca Mcqueen, os do Nodi, os do Yakari, os do Bob o Construtor,
os dos Gormiti, os do Rei dos Dinossauros e até, entre tantos outros, uns mais
esquisitos de uma coisa que agora parece estar na berra chamada «Code Lyoko».
Daí o título me ter cativado logo à partida.
Depois comecei a ler o livro e rapidamente me apercebi de
que a selva de que fala, tão diferente da do Mogli mas por vezes tão parecida,
é realmente a selva que fui conhecendo nas últimas duas décadas, uma selva que
no final dos anos oitenta do século passado, e depois já no princípio dos anos
noventa, quando eu andava a estudar Gestão de Empresas no ISCTE, os professores
nunca falavam. Prometiam-me, a mim e a tantos outros jovens que por lá andavam,
já não digo o paraíso, mas pelo menos algo que poderia sem grandes problemas
servir de imitação.
De forma que quando comecei a trabalhar tinha mais a ideia
da imitação do paraíso do que a da selva. E um dia, na serra do Algarve, quase
na fronteira imaginária que por lá existe com o Alentejo, na casa de uma mulher
simples mas certamente avisada de que os paraísos não surgem assim ao dobrar da
esquina, nessa casa tocou o telefone. Era de um banco em Lisboa. A mulher
estranhou, e inquietou-se. Por uma série de razões. Era o banco onde o filho
tinha entrado como estagiário, e o filho nunca lhe ligava de lá, ligava-lhe era
de casa, à noite, quando chegava do banco, porque ainda não tinha a invenção de
que a mulher começava a ouvir falar: o telemóvel. Outra razão para estranhar e
para se inquietar é que estavam a ligar de um departamento que diziam ser de
recursos humanos, e estava lá um polícia. Terceira razão, a senhora do
departamento de recursos humanos dizia para ela não se preocupar porque o filho
estava bem.
A mulher era a minha mãe. Nunca me disse se chorou, mas eu
acabei por saber que chorou. Só que foi apenas um instante. Pensou no que
haveria de fazer para me ajudar e logo se lembrou de que no Hospital de São
José, em Lisboa, trabalhava uma enfermeira da nossa terra. Em poucos minutos
entrou em contacto com familiares dessa enfermeira e conseguiu que estes
falassem para ela, para o hospital. Mais uns minutos e a enfermeira estava
junto de mim a saber o meu estado. Depois o meu pai arrancou para Lisboa mais o
meu irmão.
Conto o que aconteceu. Eu levava dois ou três meses do meu
primeiro, digamos assim, emprego. Ainda eram tempos fáceis e tinha conseguido
entrar como estagiário num banco, com um ordenado que era uma pequena bolsa da
Europa, ou antes, de Bruxelas. Não custava nada ao banco, e a mim ajudava nas
despesas. A promessa inicial era de que eu haveria de circular por várias
áreas, mas rapidamente percebi que iria ficar no back-office de uma coisa a que
chamavam Off-Shore. Passei a trabalhar lá, a fazer o que era preciso e a aprender
por mim próprio. Ao fim de um mês já me desenrascava e então ia fazendo o
trabalho. Mais um mês, e mais outro, e eu fazia o meu trabalho. E às vezes
pensava no futuro. Na evolução que poderia ter naquele banco onde um homem
quase com idade para ser meu pai, que trabalhava numa secretária próxima,
costumava dizer de vez em quando para si próprio: «Isto é o que dá haver gente
que gosta de brincar aos bancos!»
Um dia fui atropelado quando ia a entrar no trabalho, de
manhã. Foi um autocarro da Carris, que imagino me bateu com algum cuidado, pois
de contrário eu não estaria aqui hoje a apresentar «O Livro da Selva
Empresarial». Segui a dormir para o Hospital de São José, numa ambulância, mas
acordei antes de lá chegar. Devo ter entrado no hospital antes das dez da
manhã, e ao princípio da tarde, com o meu pai e o meu irmão a caminho de Lisboa,
tive a primeira visita. Um polícia. Ele é que tinha tomado conta do meu
atropelamento pelo autocarro, ou antes, como se costuma dizer, da ocorrência.
Precisava de ouvir o meu depoimento, mas eu não me lembrava de nada. Talvez por
isso, por eu não ter nada para lhe dizer, ele é que falou, contando-me a partir
dos relatos de testemunhas o que tinha acontecido. E depois disse-me que já
tinha sido feito um contacto para a casa dos meus pais, acrescentando a seguir
que tinha demorado algum tempo porque da esquadra não podia fazer chamadas
interurbanas. Ainda não estávamos em crise, mas pelos vistos já havia
contenção.
Mas o polícia tinha jeito de ser desenrascado. Assim como na
minha carteira tinha encontrado o contacto dos meus pais, que viviam a duzentos
e cinquenta quilómetros de distância, também tinha descoberto onde eu
trabalhava. E então lá foi ao banco, a uns metros da zona do atropelamento. Era
a sede do banco, que no rés-do-chão tinha uma agência. Ao entrar, o polícia ouviu
um dos empregados a dizer ao balcão que parecia que um rapaz do banco tinha
sido atropelado lá fora. Foi ter com ele e disse que estava ali por causa do
atropelamento. O empregado aconselhou-o a ir ao Departamento de Recursos
Humanos. E o polícia assim fez, e ao fim de alguma insistência conseguiu que
fosse feita a chamada interurbana para avisar os meus pais de eu tinha sido
atropelado quando ia entrar no banco.
Estive quatro dias no hospital. Ao fim de dois dias deram-me
alta, mas quando ia a sair com o meu pai e o meu irmão senti-me mal e voltei a
ser internado. À segunda tentativa, passados mais dois dias, saí. E no dia
seguinte telefonei para o Departamento de Recursos Humanos. Disse que estava em
casa e que tinha indicações médicas para ficar em repouso durante cerca de uma
semana. Lembro-me de ter ouvido a pergunta: «Mas está bem, não está?» Disse que
sim. Alguns dias depois regressei ao banco, não para trabalhar mas para dizer
que não queria continuar lá. O diretor do departamento a que eu pertencia ficou
espantado com a minha decisão. Tinha sido apanhado, na expressão dele,
«desprevenido». Mais ou menos, imagino agora, como eu tinha sido apanhado uns
dias antes pelo autocarro. No Departamento de Recursos Humanos a mesma coisa,
também acabaram por ser apanhados desprevenidos. Mas não me fizeram grandes
ofertas, nem grandes promessas para, como agora se diz, me reterem. Eu não era,
pelos vistos, um quadro estratégico ou, se preferirem, um talento.
A mim, com vinte e poucos anos e o curso de Gestão de
Empresas ainda fresco, foi preciso um autocarro me dar um abanão para eu perceber
que o mundo empresarial poderia ser uma selva. Teria evitado esse abanão se
nessa altura tivesse tido a possibilidade de ler um livro como este que agora a
Liliana publica. Com os seus conselhos. Mas naquele tempo o mundo da edição,
como tantos outros mundos, era muito diferente daquilo que é agora. Na universidade
mandavam-nos comprar o que havia por cá, normalmente livros da McGraw-Hill,
edições brasileiras onde me lembro de termos como «usuário» (utilizador),
«demanda» (procura) ou até «varejo» (retalho) – edições que se calhar não eram
mais do que uma preparação disfarçada para o acordo ortográfico.
Na minha ideia, os jovens que terminam agora os seus estudos
estão muito mais avisados do que eu estava naqueles tempos da entrada no banco.
Mas apesar disso receio que estejam a cair no mesmo erro em que eu caí ao aceitar
um trabalho naquele banco. Ao aceitarem inclusive trabalhar em empresas que
nada lhes pagam, quando eu ao menos ainda tinha a pequena bolsa de Bruxelas.
Sei que na esmagadora maioria dos casos o fazem porque têm a esperança de se
tratar apenas do começo de uma carreira. E sei também que há casos em que acaba
por ser de facto o começo de uma carreira. Infelizmente, não é a maioria dos
casos.
Este livro está organizado de uma forma curiosa: apresenta
dez mandamentos a que a Liliana chama «de sobrevivência». Aos jovens de que
falo faria bem, de certeza, lerem esses mandamentos – por exemplo, o segundo,
«tempo é dinheiro, não trabalharás à borla para uma empresa com fins
lucrativos»; ou o oitavo, «não te deixarás contaminar pelo vírus da
anti-maternidade» (e este toca-me particularmente, porque a minha mulher foi em
tempos despedida pelo facto de ter ficado grávida). Mais do que os mandamentos,
mais do que isso: os argumentos que lhe estão associados, e as histórias que os
ilustram. Esses jovens (e não só) poderão ter aqui, como se diz no sub-título,
uma ajuda para a sua sobrevivência na selva das empresas. Eu sei que agora há
muitos títulos de gestão onde se fala de sucesso. Óptimo. Devemos ser
positivos. Mas falar de sobrevivência pode ser também uma enorme ajuda. E pode
ser um passo para o sucesso. Este livro tem um enorme mérito. Faz-nos pensar. E
se para mim já vem demasiado tarde, pela história que contei do começo da minha
– passe o exagero – carreira, para outros poderá ser o ponto de partida para
eles próprios construírem o seu futuro. E por isso a Liliana está de parabéns.
Apesar de esta apresentação já ir longa, permitam-me ainda
deixar duas notas.
Primeira, uma nota de esperança. Vivemos num tempo em que no
mundo do trabalho a exploração das pessoas é uma triste e vergonhosa realidade
em tantos e tantos casos. Fala-se de estarmos a regredir, e quem poderá dizer
que isso não é verdade? O caminho que a legislação tende a fazer é precisamente
esse. Mas ao mesmo tempo existem empresas que valorizam as pessoas. Empresas
que têm nas suas lideranças gente decente. Os vários estudos sobre ambientes de
trabalho que vão sendo feitos anualmente no nosso país mostram precisamente
alguns desses exemplos. Nem todas as empresas que por lá aparecem constituirão
verdadeiros exemplos, é claro, mas de certeza que muitas delas são genuinamente
exemplares na valorização das pessoas que fazem com que dia após dia prossigam a
sua actividade.
Segunda nota… Já falei no gosto que tenho em apresentar este
livro. Mas há mais uma coisa. Tenho também muito gosto em apresentar o livro
por ser da editora que é, a Gestão Plus. Há alguns anos foi decidido numa
editora onde eu publicava os meus livros de ficção lançar uma colecção da área
de gestão. O editor um dia falou-me desse projecto e propôs-me, pela minha
formação e pela ligação aos livros, ser eu o director editorial. Eu disse-lhe
que poderia aceitar, mas que o melhor, para o sucesso da colecção, seria ele
arranjar uma pessoa com prestígio no meio empresarial. Inclusive, acabei por
ser eu a apresentar-lhe essa pessoa. E a colecção fez o seu caminho, primeiro
com a ajuda dessa pessoa e depois apenas com o editor. A colecção tinha um nome
que logo me pareceu muito bom: Gestão Plus. Tão bom que viria a dar origem à
marca de uma editora. Também por isso a Liliana está de parabéns, porque tem o
seu livro numa excelente casa.
Creio que falei mais tempo do que deveria. Peço desculpa por
isso.