Há muitos, muitos anos –
pode-se dizer que eu ainda era uma criança –, escrevi um livro com um título
muito comprido, creio que com pelo menos umas dez palavras. O título refere a
minha terra, na serra do Algarve, e também a visita de um presidente da
república. Recuando aos tempos da publicação, lembro-me de algumas coisas que
foram escritas sobre o livro, e a verdade é que do apoio da crítica não me posso
queixar. Porque tirando o facto de dizerem que a capa era má, pouco havia a não
ser elogios. Era um livro de contos, e eu gostava dele, gostava e ainda gosto,
mas não tinha pensado que muito mais pessoas – com excepção talvez da minha
mãe, do meu pai, do meu irmão e da minha tia – pudessem gostar. Só que houve
mesmo mais pessoas, pelo menos a julgar pelo que eu ia lendo nos jornais, onde
me apresentavam como um jovem autor algarvio, a juntar a vários elogios aos
contos, alguns bastante chamativos. Tão chamativos que até deu para coisas
como, imagine-se, ser convidado para um programa do Manuel Luís Goucha. Eu fui,
por insistência do editor, e ainda me lembro da primeira coisa que o
apresentador televisivo me disse, em directo, depois de ter levantado os olhos
de uma fotocópia do texto do «Expresso» sobre o livro: «Ah, mas você afinal não
é nada jovem!»
Comecei também a ser
convidado para ir a feiras do livro. E aí notei que o livro já era
relativamente conhecido e que até havia pessoas que sabiam quem era o autor. Lá
uma vez por outra, aparecia quem dissesse que tinha lido uma crítica num
jornal, ou ouvido qualquer coisa na rádio. Mas o mais frequente era o
comentário de que me tinham visto no programa do Goucha. Sabiam que eu era do
Algarve e que os contos eram do Algarve, e que o livro tinha um título muito
comprido, tão comprido que quase nunca o sabiam dizer bem, trocando a minha
terra, que o presidente visitava, por outras como Setúbal, Beja (a mais
frequente) e até, vá-se lá saber por quê, Lisboa.
Era um Algarve interior,
da serra, não o Algarve dos turistas e das praias, mas mesmo assim numa ou
noutra história as personagens aventuravam-se até aí. E isso tinha sido notado em
vários dos textos dos jornais. O que não tinha sido notado era o Alentejo, para
aonde as personagens também se aventuravam e onde nalguns casos as próprias
personagens viviam.
A minha terra fica na
fronteira com o Alentejo. Agora já não acontece tanto, mas da altura em que
escrevi o livro, alguns anos antes da publicação, lembro-me de que ainda havia
entre os mais velhos o hábito de dizer «vou lá abaixo ao Algarve» sempre que
era preciso ir a Portimão, a cidade mais próxima. E se fosse preciso falar em
ir a Sabóia, ou a Odemira, ninguém dizia que ia ao Alentejo. Ia mesmo a Sabóia,
ou a Odemira, como se a minha terra e essas terras do Baixo Alentejo fizessem
parte da mesma região. E na minha cabeça faziam, como ainda hoje fazem.
Tudo isto aconteceu há
muitos anos, num tempo em que eu estava longe de imaginar que haveria de passar
a viver no Alentejo, ainda por cima não numa daquelas terras próximas da minha
mas bem mais acima, no caso em Montemor-o-Novo.
Estava longe de imaginar
que os livros que haveria de escrever iriam até falar muito mais do Alentejo do
que da minha terra, o que faria não ter grande sentido o que depois se haveria
de continuar a dizer, de que eu escrevia sempre sobe o Algarve. Isto talvez
tenha sido um segundo choque, depois do primeiro do apresentador televisivo a
reparar que por mais que me chamassem jovem escritor eu, mesmo ainda na casa
dos vinte, afinal não era nada jovem. Tinha escrito as histórias do Algarve,
como no início tinha havido quem assinalasse (nalguns casos até de forma um
pouco depreciativa), e por isso haveria de continuar com elas, mesmo que escrevesse
sobre outra coisa qualquer. Como se uma qualquer lei obrigasse a isso. Era a
conclusão que eu tirava do que lia.
Tenho de pensar um pouco
para ver os livros que escrevi depois. As suas personagens, os seus lugares…
Confesso que na minha cabeça acabam até por se confundir, conhecem-se inclusive
aquelas que nunca se encontraram numa história ou num capítulo de um romance. E
os lugares… Quem andou por onde? Tenho muitas vezes que pensar. O Largo da
Câmara, em Montemor. Os montados da Serra do Monfurado. O Escoural. As viagens
para Évora pela estrada que passa por São Sebastião da Giesteira. As
deambulações por Évora num dos livros, tantas vezes, para os encontros que como
narrador tive com um estranho livreiro a quem um pequeno demónio dos livros
teimava em estragar o negócio. As viagens para a minha terra, cortando o
Alentejo a direito, para sul, e a imagem que de noite – quase sempre a altura
das viagens – mais vezes me ficava num dos livros: a da aproximação a Ferreira
do Alentejo, pelo lado norte, com as luzes amarelas do casario baixo; e bem no
alto, imponente, o edifício dos silos de cereais com as luzes brancas e azuis
que sempre me faziam lembrar – e ainda fazem – uma nave espacial acabada de
aterrar na planície. Ou preparada para zarpar.
Estas coisas dos meus
livros acabam por estar muito coladas às minhas viagens pelo Alentejo. Eu no
carro – ou para Lisboa, por causa do trabalho, ou para o Algarve, onde vivem as
pessoas de que falei no início, as quatro que eu pensava que seriam das poucas
a gostar do meu primeiro livro, mesmo que fosse só para me darem algum alento.
Muitas vezes, nos livros, o
Alentejo é visto de dentro do carro. Um deles, lembro-me, foi apresentado em
Lisboa na Casa Fernando Pessoa pelo escritor José Eduardo Agualusa. Ele leu um texto,
mas no final não mo deu, por isso recordo apenas duas ou três coisas do que
disse. Numa delas falou em narrativa «borgesiana», adjectivo complicado que
interpretei como um elogio, apesar de eu não ser propriamente o fã número um de
Borges. Outra foi que se notava facilmente estarmos em presença de um autor que
conduzia muito. Eu já sabia, na altura, que ele não costuma conduzir,
preferindo o táxi e o avião. E por isso – lembro-me bem –, durante um momento,
um momento muito, muito, muito breve, tive a ilusão, talvez o sonho, de que
esse comentário, de um escritor tão conhecido e, sobretudo, tão talentoso,
pudesse significar um bocadinho de admiração.
Texto escrito a partir das notas de suporte a uma
intervenção nas «Jornadas Literárias de Montemor-o-Novo» (painel «O Alentejo na ficção», que também teve a participação de Mário de
Carvalho, Rui Cardoso Martins e André Gago)