terça-feira, 1 de maio de 2012

António Souto – Crónica (47)



Só não se percebe muito bem é por que razão, sabendo todos como o moderníssimo fogo-de-artifício não tem canas, haja quem ainda desperdice tempo a apanhá-las.

Casos e acasos
Como se não houvesse já casos de sobra para nos entreter o miolo, este Abril que finda (sem ironia) foi pródigo em novos casos e casos repescados, recasos para alimentar pretextos e disfarçar a crise que nos vai amolgando. Para o caso, porém, pouco importa se muitos ou poucos, se frescos ou não, se bem ou mal intencionados, embora estejamos em crer que todos eles acusem enfermidade crónica de difícil emenda.
Caso buraco madeirense com muito artifício. Depois das contas esburacadas do continente, os olhares voltaram-se todos para o arquipélago. E por lá andam e andarão, de descoberta em descoberta, olhares atónitos de dívidas não saldadas. Diz quem lá manda que se não foram liquidadas em devido tempo é porque não foram facturadas, e se quem o diz é quem manda, quem é a gente de cá para duvidar da boa fé e das contas à moda da região, se ainda por cima é autónoma? Só não se percebe muito bem é por que razão, sabendo todos como o moderníssimo fogo-de-artifício não tem canas, haja quem ainda desperdice tempo a apanhá-las. Então não era já tempo de saber que depois de um Carnaval vem sempre um outro Réveillon?!
Caso Isaltino e o gozo de recorrer. Bem prega o bastonário que a justiça anda pelas ruas da amargura. O povinho descrente, que é cidadão comum, insiste que não se fia nela, mas toda a nobreza continua a achar que não, que tem confiança na justiça do nosso país. E a verdade é que o nosso país sempre teve boa justiça exemplar, durante o Estado Novo e não só, por isso é que todas as pessoas inconformadas podem recorrer, todas em pé de igualdade e com custas e custos muito ajustados a todas as bolsas. E também ninguém se pode queixar da falta de celeridade nos processos, o que há é um país de processos muito complicados, mesmo muito complicados, quase tão complicados como o próprio país. O povo é que, mesquinho, não alcança estes desembaraços, problema dele que, recorrendo todo o mundo, vê estranheza em haver recursos crónicos nuns quantos. Então mas não é no teimar que está o gozo?!
Caso Camarate e mais uma comissão de inquérito. Já lá vão nove, e nada de consistente. Agora, sim, dezoito páginas de um ex-espião e preso efetivo e a investigação tem pernas para andar. Venha, por isso, a décima comissão de inquérito e ponha-se um ponto final nesta urdidura de quase trinta e dois anos. Mas que venha depressa, e ligeira meta mãos à obra antes que o autor confesso volte atrás e jure que tudo não passou de entretenimento de quem se cansa de não fazer nada enjaulado em quatro paredes – não seria coisa inédita, que quando jornalistas de investigação se metem nestes imbróglios…
Caso Maddie e o achamento de mais 195 novos dados para investigação. Ora cá está mais um assunto que ganha fôlego. Um Portugal-Inglaterra (ou um Inglaterra-Portugal) com final sem prognóstico ao fim de cinco anos. O que é estranho é que enquanto a nossa Polícia Judiciária afirma não ter novas provas para reabrir o processo, a Scotland Yard garante ter quase duas centenas de dados novos. Uma fartura! Está bem, quer dizer, alguma coisa está mal, então mas com tamanha abundância de elementos convincentes estão à espera de quê, de fazer uma foto simulada todos os anos? Vá lá, abram mas é uma comissãozinha de inquérito!
Caso Santuário de Fátima e o milagre de despejar uma idosa. Esta história não lembraria ao diabo, passe o mau gosto. A senhora, agora com oitenta anos, vivia com a irmã num anexo de uma casa que aquela doara ao Santuário de Fátima. A irmã morreu há quatro anos, e esta decidiu continuar no anexo até, também, ao último chamamento. Mas o Santuário não foi em cantigas, doação é doação, e vá de avançar para o tribunal. O tribunal deu razão ao Santuário. A idosa tem mesmo de sair, a bem ou à força (isto somos nós a imaginar já o clero todo a empurrar a idosa pelo anexo fora, até porque a dita necessita de «apoio de terceiros»). E mais, como o Santuário exigia o pagamento retroactivo dos meses em que a idosa ocupou «abusivamente» o espaço, o tribunal também nisto concordou com o Santuário e condenou a idosa ao pagamento de catorze mil e cem euros de indemnização – trezentos eurinhos por cada mês em atraso. O tribunal deve ter agido bem, nem outra coisa se espera da justiça, que como acima se disse é boa e exemplar, mas o Santuário, para mais sendo de Fátima, bem podia perdoar. Esta graça, contudo, é reserva de Deus e a crise, pelos vistos, já alastrou ao céu…
Caso Abril com tolerância zero. Isto começa mesmo a ficar negro. Os cravos bem espargiram o hemiciclo no dia vinte e cinco em tom de encarnado, mas o cinzento das nuvens coseu-se a algumas palavras em jeito de ameaça. Um mês antes da cerimónia já tinha sido dado o sinal nuns breves confrontos no Chiado. O relatório, inequívoco, esclareceu que manifestantes desordeiros haviam provocado agentes da autoridade e destruído uma esplanada de café, justificando-se, por isso, a carga policial. E quem anda à chuva… Mas o feito, mesmo, nem foi a batalha campal, foram as palavras sinistras que anunciaram «tolerância zero para as manifestações do 25 de Abril», as palavras que ficaram a pairar para o primeiro de Maio e para todas as manifestações que houver pela troika fora. Há palavras que não combinam nada com o Abril que finda. Ou é porque finda (sem ironia)?

Crónica de Abril de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46.

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