sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
Alguns agradecimentos
Muito obrigado ao Pedro Almeida Vieira, pelo link para este blog e para o do romance «Uma Noite com o Fogo» no seu «Estrago da Nação» (o autor tem um novo livro, que pode ser conhecido aqui). Também ao Francisco, ao João e ao Pedro; sem esquecer a simpatia da minha editora, claro, no seu novo blog.
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Obviamente...
Obviamente que não vou comentar isto (mas que o Paulo Bento parece que tem problemas de QI, lá isso parece).
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Ainda o amor, por José Rodrigues dos Santos
Depois disto, mais isto…
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Esperou, por isso, mais uns dias para lhe fazer novas perguntas. Decidiu-se após uma noite em que tinha chovido muito. O dia acordara molhado, com o céu coberto por um manto de bronze gasoso; os telhados gotejavam ritmadamente para os passeios alagados, como se os pingos fossem notas de uma ária, uma suave melodia que fazia da conversa um dueto, ele o tenor e ela o soprano.
O chão estava ensopado, pelo que evitaram a lama acumulada na esquina onde habitualmente se encontravam e cruzaram a rua, contornando as poças de água barrentas e as bostas de bovino espalhadas pelo empedrado.
«Se o teu pai morreu quando eras miúda, vocês vivem de quê?», perguntou Luís quando pisaram terreno mais limpo do outro lado.
Esperou, por isso, mais uns dias para lhe fazer novas perguntas. Decidiu-se após uma noite em que tinha chovido muito. O dia acordara molhado, com o céu coberto por um manto de bronze gasoso; os telhados gotejavam ritmadamente para os passeios alagados, como se os pingos fossem notas de uma ária, uma suave melodia que fazia da conversa um dueto, ele o tenor e ela o soprano.
O chão estava ensopado, pelo que evitaram a lama acumulada na esquina onde habitualmente se encontravam e cruzaram a rua, contornando as poças de água barrentas e as bostas de bovino espalhadas pelo empedrado.
«Se o teu pai morreu quando eras miúda, vocês vivem de quê?», perguntou Luís quando pisaram terreno mais limpo do outro lado.
(excerto do romance «A Vida num Sopro», de José Rodrigues dos Santos)
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Livros
sábado, 21 de fevereiro de 2009
Podia ter sido tipo cinco a um
Podia ter sido muito melhor (tipo cinco a um), mas também podia ter acontecido algum desastre (se tivéssemos tido azar e se a falta de vergonha do árbitro ainda tivesse sido maior do que a que foi). O Sporting 3 (Liedson 2, Derlei), Benfica 2 desta noite... Primeira ideia, o Benfica tem mesmo uma equipa débil, sendo essa debilidade feita sobretudo por três ou quatro jogadores que tendo estatuto de estrelas acabam por trocar a mediocridade (Luisão, David Luiz e por aí adiante). Mas isso aqui nem interessa muito. O Sporting... Eu não tinha uma super-motivação para este jogo, depois da vitória cinzenta do Porto em Paços de Ferreira, mas estive no meu lugar a assistir. Continuamos na corrida, e agora é ver o que faremos na visita ao Porto daqui a uma semana. Com a capacidade de luta desta noite frente ao Benfica, pode ser que as coisas corram bem, mas nunca com um trambolho a arbitrar como o que agora nos calhou (uma grande penalidade, ou talvez duas, por marcar contra o Benfica, e mais umas espertezas que foi arranjando); e nem foi surpresa, porque a figura (Olegário Benquerença) já é bem conhecida como árbitro, pelos seus méritos, mas sobretudo pelos seus deméritos. No jogo, destaque, além da capacidade de luta da equipa como um todo, para as exibições de Liedson (genial), Derlei, Vukcevik (onde estaríamos agora se Paulo Bento, estupidamente, não tivesse andado meses a queimá-lo?) e Pereirinha. Tiago afastou a tremedeira que a presença de Rui Patrício sempre causa, e Polga (que num daqueles passes sem nexo, disparatados, até teve a sorte de fazer a bola ir parar a Derlei, que marcou o segundo golo), bom, Polga ia estragando tudo com a parvoíce da grande penalidade que arranjou sobre o hondorenho do Benfica e que ainda levou ao empate a um golo. Os festejos de Soares Franco no final parecerem-me pouco naturais, como se estivesse a representar alguma coisa ensaiada à pressa umas horas antes.
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O amor, por José Rodrigues dos Santos
O carro de bois avançava devagar pela rua, arrastando um carregamento de azeitonas negras, tão reluzentes que pareciam pérolas. O agricultor que conduzia o carro seguia à frente, enérgico e transpirando, as mãos a puxarem a correia que guiava a direcção do animal.
«Uga! Uga!», repetia o homem, incentivando o boi. «Para a frente, vamos! Arriba!»
Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso. Logo que o carro de bois passou, Luís cruzou para o outro passeio em ziguezague, evitando os excrementos de animais que se acumulavam pela via.
Foi então que a viu.
«Uga! Uga!», repetia o homem, incentivando o boi. «Para a frente, vamos! Arriba!»
Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso. Logo que o carro de bois passou, Luís cruzou para o outro passeio em ziguezague, evitando os excrementos de animais que se acumulavam pela via.
Foi então que a viu.
(excerto do romance «A Vida num Sopro», de José Rodrigues dos Santos)
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Foi há uns anos
Como cada vez ligo menos às notícias (a verdade é que já pouco passo das coisas da bola e dos livros), ainda nem percebi se aquilo que agora insinuam sobre José Sócrates e o apartamento tem a ver com alguma suposta fuga ao fisco ou se tem a ver com algum suposto suborno recebido em espécie. Mas esta nova confusão (com Sócrates é cada tiro cada melro) fez-me lembrar de uma asneira que fiz. Foi há uns anos. Comprei uma casa e a escritura foi feita pelo valor real, isto num tempo em que o próprio primeiro-ministro (o patético Guterres) dizia que em Portugal só os parvos é que pagavam impostos. Quando fui a uma repartição de finanças para pagar a sisa, o funcionário assim que se apercebeu do que eu ia lá fazer, agarrou na papelada e disse-me: «Então, vem pagar esta importanciazita?!» Nem olhei para ele, acabei de passar o cheque e a seguir comentei: «Zita, quer dizer…» Depois, fiz a asneira. Pedi uma folha de papel e ao fim de alguma insistência o homem lá me deu. Uma folha A4. Tinha acontecido havia pouco tempo a história de Murteira Nabo, ministro, ter burlado o próprio Estado que representava, ao comprar um apartamento, precisamente naquele imposto que eu estava a pagar. Eu não percebia como é que o tipo depois do que tinha feito saía de ministro para ir ganhar não sei quantas vezes mais na maior empresa pública portuguesa (a PT), pública ou pelo menos um bocadinho pública, pois nessa altura já tinha começado a ser vendida. Pensei nisso ao pagar o meu imposto, a «importanciazita», e então deixei uma carta para o ministro das finanças, o falecido Sousa Franco, que por esses tempos tinha aparecido num programa do Herman José com umas teorias para mim esquisitas sobre o pagamento de impostos. Deixei na carta aquilo que pensava do caso do ex-colega dele, premiado com a nomeação para a presidência da PT depois de conduta vergonhosa que tinha tido, e fiz o contraponto com o meu caso, ali a pagar a «importanciazita», mais um parvo, como dizia o primeiro-ministro. O funcionário confirmou a pessoa a quem era dirigida a carta e depois disse que ia «encaminhar». Não sei para onde a encaminhou. Sei apenas que nos três anos seguintes tive sempre as minhas contas com o fisco inspeccionadas. Ficou-me de emenda.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
O fenómeno
Comentava alguém hoje comigo que Salazar agora depois de morto é que se tornou sexualmente activo.
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domingo, 15 de fevereiro de 2009
Um bocadinho melhor
Ontem – Belenenses 1, Sporting 2 (Vukcevic, Hélder Postiga) – as coisas estiveram um bocadinho melhor do que nas últimas jornadas do campeonato. Mas ainda cheguei a pensar no pior. Foi bom ver Tiago na baliza (o guarda-redes que fez metade do campeonato do último título) em vez do problemático (e super-protegido) Rui Patrício. Isto tudo pouco depois de o mesmo Braga que há uma semana nos arrumou completamente não ter conseguido marcar um único golo ao guarda-redes do Leixões (Beto, atirado para fora do Sporting pela incompetência, pelo desleixo e pela ligeireza com que tantas vezes são tratados os assuntos por alguma da gente que lá vai aparecendo a mandar).
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Correntes D’Escritas
Os últimos dias, uns três ou quatro, preso por causa do fecho de mais uma edição da nova revista (textos para editar e para escrever, paginação para acompanhar e por aí adiante). Foram as minhas Correntes D’Escritas.
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Assim já fico mais descansado
«Nas 'democracias', os chefes dos governos, presidentes da república, ministros e secretários de Estado são servidores do povo. Por outras palavras, Brown, Sarkozy, Zapatero e Sócrates trabalham para nós.»
Nuno Rogeiro, no «Jornal de Notícias»
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sábado, 14 de fevereiro de 2009
O conselho em plena prisão
Depois de coisas como esta, a ideia com que se fica é a de que se Cavaco Silva pudesse demitir Dias Loureiro do Conselho de Estado, na volta nem o fazia, preferindo mudar o local da reunião para a própria prisão, se o seu antigo ministro lá fosse parar. Nem me parece que Cavaco tenha em privado chegado a dizer ao tipo que o melhor seria apresentar a demissão. Acredito mesmo que se por qualquer razão o tivesse feito o outro dava-lhe um berro e ele calava-se. Cada vez mais o BPN aparece como o fantasma dos detestáveis governos de Cavaco Silva.
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O mundo da edição e a literatura
Para ler aqui, um notável texto sobre o mundo da edição e sobre literatura, escrito pela minha antiga editora na Temas e Debates, Maria do Rosário Pedreira. «(…) as grandes editoras, frequentemente obrigados a um crescimento de x% ao ano pelos grupos a que pertencem ou pela agressividade da concorrência, optaram nos últimos anos por apostar sobretudo em produtos de venda rápida, importando sucessos internacionais ou publicando livros de «pivôs» da televisão, alternadeiras, ex-inspectores da Judiciária e outras figuras mediáticas. (…) Julgo também não me enganar se disser que o Nobel nunca poderá vir a ser ganho por Fátima Lopes ou que, na história da literatura portuguesa, nunca viremos a ler, ainda que numa nota de rodapé, o nome de Carolina Salgado. E, se daqui a cinquenta anos a RTP se lembrar de repetir o polémico programa dos Grandes Portugueses, ainda estarão seguramente entre as primeiras figuras Camões e Pessoa, mas não me parece, com toda a boa-vontade, que surjam os nomes de Virgílio Castelo ou Moita Flores. (…)»
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
António Souto – Crónica (8)
Oitava crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»).
Esta é a da edição de Janeiro de 2009.
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Sofrimento próprio e alheio
Aqueles que nunca sofreram não sabem nada, não conhecem nem os bens nem os males, ignoram os homens, ignoram-se a si próprios. (François Fénelon)
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Hospital. Serviço de neurocirurgia. Enfermaria, três dias; bloco operatório, cuidados intermédios e enfermaria, uma dúzia deles. Duas semanas de cogitação e de aprendizagem. Traumatismos cranianos, aneurismas, neurinomas, acidentes vasculares cerebrais, algumas hérnias, quase tudo cabeças recortadas, suturadas e grampeadas. Cenário de ficção ao jeito de Steven Spielberg.
Medem-se os sinais vitais, fazem-se pensos, posicionam-se acamados, aspiram-se doentes com secreções, dá-se a medicação, mudam-se garrafas com alimentação por sonda, substituem-se os soros, substituem-se lençóis e fronhas e pijamas, fazem-se gestos de carinho, uma palavra de conforto, um afago na mão ou no rosto, deseja-se uma boa noite…
E a noite, continuamente, uma eternidade. Quem passa todo o tempo no quarto perde a noção do dia. As luzes quase sempre acesas. Lá para a uma ou duas da manhã apagam-se, mas ficam as do corredor, em vigília, ou as da sala dos enfermeiros (ou das enfermeiras, a maior parte), também velando.
Lá para as seis e meia, sete horas, de novo as lâmpadas de néon como castigo. Medem-se as tensões, as saturações, as temperaturas. Distribui-se a roupa da cama. Poisam-se ao lado os pijamas, as bacias de inox e as toalhas para o banho dos mais debilitados. Os outros, podendo, e autorizados, irão por seu pé, ou em cadeira de rodas, acompanhados, à casa de banho. Primeiro os que estão na calha para o bloco operatório. Às sete e meia, mais coisa menos coisa, em jejum desde a meia-noite, estão já lavados e com a bata cobrindo-lhes a nudez envergonhada. Tomam um comprimidinho para relaxar e aguardam serenamente que os maqueiros venham. A partir das oito podem chegar a qualquer momento.
Comigo, chegaram passava já das nove. Foi só o tempo de descer de uma cama e subir para outra, um pouco mais estreita. Às nove e dez (marcava um relógio de parede) estava numa antecâmara do bloco. Colocaram-me um acesso na mão esquerda para o soro. Reconheci o anestesista assistente que me visitara na véspera. Reparei ainda que a anestesista de serviço, presumo, me injectou qualquer coisa. Depois, encostaram-me a maca a uma larga persiana que começou subindo. A curiosidade fez-me olhar de soslaio para descortinar a sala de operações. O vazio.
Seis horas terá durado a intervenção. Acordei tarde. Um pouco enjoado e com tubos molestando-me. A meu pedido, e assegurados da sua dispensabilidade, foram retirados a sonda nasogástrica e o outro tubinho destinado ao oxigénio. Mantiveram a algália, três acessos (um deles numa artéria, que um aparelho incansavelmente monitoriza) e o sistema (com um cateter do braço esquerdo ao coração). Cuidados intermédios. Sala com mais quatro doentes. A cabeça e o pescoço doridos. A recuperação faz-se, lenta. A saída dali só não é mais rápida por falta de vagas na enfermaria. Três dias depois, os nestuns, os cerelaques e as sopas gelatinosas dão finalmente lugar às refeições normais e às rotinas que antes conhecera na enfermaria.
O «capecete» é retirado da cabeça. As suturas no crânio e no pescoço dão nas vistas. Junto-me aos demais pacientes de cascos recortados, suturados e grampeados. Participo agora no filme, já não como figurante, mas como personagem por uns dias principal. Os primeiros passos, os sessenta e sete passos para um lado e para o outro do corredor. O começo da autonomia. Os repastos e as visitas na sala do refeitório. A rotina, agora, na liberdade.
Fala-se com um vizinho, com outro e com outro. Gente jovem e menos jovem, mulheres e homens. Ouvem-se histórias distintas de desmaios, de quedas, de atropelos, de imprevistos. Acasos, adversidades, tragédias. Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.
No dia da alta, à despedida, sentimos no sorriso de cada enfermeira e de cada auxiliar um rasgo de saudades. Estranhamente.
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Aqueles que nunca sofreram não sabem nada, não conhecem nem os bens nem os males, ignoram os homens, ignoram-se a si próprios. (François Fénelon)
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Hospital. Serviço de neurocirurgia. Enfermaria, três dias; bloco operatório, cuidados intermédios e enfermaria, uma dúzia deles. Duas semanas de cogitação e de aprendizagem. Traumatismos cranianos, aneurismas, neurinomas, acidentes vasculares cerebrais, algumas hérnias, quase tudo cabeças recortadas, suturadas e grampeadas. Cenário de ficção ao jeito de Steven Spielberg.
Medem-se os sinais vitais, fazem-se pensos, posicionam-se acamados, aspiram-se doentes com secreções, dá-se a medicação, mudam-se garrafas com alimentação por sonda, substituem-se os soros, substituem-se lençóis e fronhas e pijamas, fazem-se gestos de carinho, uma palavra de conforto, um afago na mão ou no rosto, deseja-se uma boa noite…
E a noite, continuamente, uma eternidade. Quem passa todo o tempo no quarto perde a noção do dia. As luzes quase sempre acesas. Lá para a uma ou duas da manhã apagam-se, mas ficam as do corredor, em vigília, ou as da sala dos enfermeiros (ou das enfermeiras, a maior parte), também velando.
Lá para as seis e meia, sete horas, de novo as lâmpadas de néon como castigo. Medem-se as tensões, as saturações, as temperaturas. Distribui-se a roupa da cama. Poisam-se ao lado os pijamas, as bacias de inox e as toalhas para o banho dos mais debilitados. Os outros, podendo, e autorizados, irão por seu pé, ou em cadeira de rodas, acompanhados, à casa de banho. Primeiro os que estão na calha para o bloco operatório. Às sete e meia, mais coisa menos coisa, em jejum desde a meia-noite, estão já lavados e com a bata cobrindo-lhes a nudez envergonhada. Tomam um comprimidinho para relaxar e aguardam serenamente que os maqueiros venham. A partir das oito podem chegar a qualquer momento.
Comigo, chegaram passava já das nove. Foi só o tempo de descer de uma cama e subir para outra, um pouco mais estreita. Às nove e dez (marcava um relógio de parede) estava numa antecâmara do bloco. Colocaram-me um acesso na mão esquerda para o soro. Reconheci o anestesista assistente que me visitara na véspera. Reparei ainda que a anestesista de serviço, presumo, me injectou qualquer coisa. Depois, encostaram-me a maca a uma larga persiana que começou subindo. A curiosidade fez-me olhar de soslaio para descortinar a sala de operações. O vazio.
Seis horas terá durado a intervenção. Acordei tarde. Um pouco enjoado e com tubos molestando-me. A meu pedido, e assegurados da sua dispensabilidade, foram retirados a sonda nasogástrica e o outro tubinho destinado ao oxigénio. Mantiveram a algália, três acessos (um deles numa artéria, que um aparelho incansavelmente monitoriza) e o sistema (com um cateter do braço esquerdo ao coração). Cuidados intermédios. Sala com mais quatro doentes. A cabeça e o pescoço doridos. A recuperação faz-se, lenta. A saída dali só não é mais rápida por falta de vagas na enfermaria. Três dias depois, os nestuns, os cerelaques e as sopas gelatinosas dão finalmente lugar às refeições normais e às rotinas que antes conhecera na enfermaria.
O «capecete» é retirado da cabeça. As suturas no crânio e no pescoço dão nas vistas. Junto-me aos demais pacientes de cascos recortados, suturados e grampeados. Participo agora no filme, já não como figurante, mas como personagem por uns dias principal. Os primeiros passos, os sessenta e sete passos para um lado e para o outro do corredor. O começo da autonomia. Os repastos e as visitas na sala do refeitório. A rotina, agora, na liberdade.
Fala-se com um vizinho, com outro e com outro. Gente jovem e menos jovem, mulheres e homens. Ouvem-se histórias distintas de desmaios, de quedas, de atropelos, de imprevistos. Acasos, adversidades, tragédias. Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.
No dia da alta, à despedida, sentimos no sorriso de cada enfermeira e de cada auxiliar um rasgo de saudades. Estranhamente.
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Quase todos os nomes
Li há dias uma entrevista de Isabel da Nóbrega (revista «Tabu», do «Sol»). Gostei muito da entrevista, e recomendo a sua leitura. Mas não é esta recomendação que agora me leva a escrever isto. Não, escrevo por causa de uma das respostas da escritora e cronista, que durante muitos anos foi companheira de José Saramago.
Há dois romances de Saramago que para mim são inesquecíveis: o «Levantado do Chão» e o «Memorial do Convento». Os outros, falha minha, certamente, nunca me prenderam por aí além, apesar das tentativas com vários deles. Nessas tentativas ganhei uma aversão especial a um, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», tantas vezes falado, por tantas pessoas; inclusive creio que Saramago conheceu a actual mulher por causa desse romance, que a levou a viajar até Lisboa para lhe fazer uma entrevista. A história, lembro-me da leitura das primeiras páginas, chateava-me, mas na volta nem era bem a história, era o nome escolhido para uma personagem: Marcenda. Como tantas das personagens de Saramago, aquela tinha um nome que me parecia uma escolha pouco feliz.
Agora, na entrevista de Isabel da Nóbrega, lembrei-me do meu problema com os nomes de Saramago. Na resposta fica-se a saber como ela salvou o Nobel de mais um estampanço. Deixo aqui um excerto… «Quanto à Blimunda [protagonista de ‘Memorial do Convento’]: ele escreveu o livro, eu disse que não queria lê-lo senão no fim e, quando comecei a ler, o que vi? O nome [Baltasar]» Sete-Sóis e ela era Mariana Amália. E eu: ‘Mariana Amália?! Mas ele endoideceu! Não há direito de pôr Mariana Amália na figura desta mulher.’ Chamei-o: ‘Está lindo, está tudo certo menos uma coisa que tens de emendar – Mariana Amália. Tem paciência, quando foste à biblioteca e recolheste nomes de época, hás-de ter encontrado um que se possa ver’. Ele voltou para a secretária – isto para aí à uma da manhã –, e daí a um bocado apareceu e começou a dizer nomes. Ouvi ‘Blimunda’, pedi-lhe que voltasse atrás e, quando repetiu o nome: Ó Zé, parece impossível! Como é que tinhas este nome na tua lista e não viste que aquela mulher é exactamente Blimunda?’. Pegou no manuscrito, que era enorme, e foi emendar tudo, tirar Mariana Amália e pôr Blimunda.»
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Há dois romances de Saramago que para mim são inesquecíveis: o «Levantado do Chão» e o «Memorial do Convento». Os outros, falha minha, certamente, nunca me prenderam por aí além, apesar das tentativas com vários deles. Nessas tentativas ganhei uma aversão especial a um, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», tantas vezes falado, por tantas pessoas; inclusive creio que Saramago conheceu a actual mulher por causa desse romance, que a levou a viajar até Lisboa para lhe fazer uma entrevista. A história, lembro-me da leitura das primeiras páginas, chateava-me, mas na volta nem era bem a história, era o nome escolhido para uma personagem: Marcenda. Como tantas das personagens de Saramago, aquela tinha um nome que me parecia uma escolha pouco feliz.
Agora, na entrevista de Isabel da Nóbrega, lembrei-me do meu problema com os nomes de Saramago. Na resposta fica-se a saber como ela salvou o Nobel de mais um estampanço. Deixo aqui um excerto… «Quanto à Blimunda [protagonista de ‘Memorial do Convento’]: ele escreveu o livro, eu disse que não queria lê-lo senão no fim e, quando comecei a ler, o que vi? O nome [Baltasar]» Sete-Sóis e ela era Mariana Amália. E eu: ‘Mariana Amália?! Mas ele endoideceu! Não há direito de pôr Mariana Amália na figura desta mulher.’ Chamei-o: ‘Está lindo, está tudo certo menos uma coisa que tens de emendar – Mariana Amália. Tem paciência, quando foste à biblioteca e recolheste nomes de época, hás-de ter encontrado um que se possa ver’. Ele voltou para a secretária – isto para aí à uma da manhã –, e daí a um bocado apareceu e começou a dizer nomes. Ouvi ‘Blimunda’, pedi-lhe que voltasse atrás e, quando repetiu o nome: Ó Zé, parece impossível! Como é que tinhas este nome na tua lista e não viste que aquela mulher é exactamente Blimunda?’. Pegou no manuscrito, que era enorme, e foi emendar tudo, tirar Mariana Amália e pôr Blimunda.»
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Fazer de conta
Mário Crespo, ontem, no «Jornal de Notícias».
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Está bem... façamos de conta
Façamos de conta que nada aconteceu no Freeport. Que não houve invulgaridades no processo de licenciamento e que despachos ministeriais a três dias do fim de um governo são coisa normal. Que não houve tios e primos a falar para sobrinhas e sobrinhos e a referir montantes de milhões (contos, libras, euros?). Façamos de conta que a Universidade que licenciou José Sócrates não está fechada no meio de um caso de polícia com arguidos e tudo.
Façamos de conta que José Sócrates sabe mesmo falar Inglês. Façamos de conta que é de aceitar a tese do professor Freitas do Amaral de que, pelo que sabe, no Freeport está tudo bem e é em termos quid juris irrepreensível. Façamos de conta que aceitamos o mestrado em Gestão com que na mesma entrevista Freitas do Amaral distinguiu o primeiro-ministro e façamos de conta que não é absurdo colocá-lo numa das "melhores posições no Mundo" para enfrentar a crise devido aos prodígios académicos que Freitas do Amaral lhe reconheceu. Façamos de conta que, como o afirma o professor Correia de Campos, tudo isto não passa de uma invenção dos média. Façamos de conta que o "Magalhães" é a sério e que nunca houve alunos/figurantes contratados para encenar acções de propaganda do Governo sobre a educação. Façamos de conta que a OCDE se pronunciou sobre a educação em Portugal considerando-a do melhor que há no Mundo. Façamos de conta que Jorge Coelho nunca disse que "quem se mete com o PS leva". Façamos de conta que Augusto Santos Silva nunca disse que do que gostava mesmo era de "malhar na Direita" (acho que Klaus Barbie disse o mesmo da Esquerda). Façamos de conta que o director do Sol não declarou que teve pressões e ameaças de represálias económicas se publicasse reportagens sobre o Freeport. Façamos de conta que o ministro da Presidência Pedro Silva Pereira não me telefonou a tentar saber por "onde é que eu ia começar" a entrevista que lhe fiz sobre o Freeport e não me voltou a telefonar pouco antes da entrevista a dizer que queria ser tratado por ministro e sem confianças de natureza pessoal. Façamos de conta que Edmundo Pedro não está preocupado com a "falta de liberdade". E Manuel Alegre também. Façamos de conta que não é infinitamente ridículo e perverso comparar o Caso Freeport ao Caso Dreyfus. Façamos de conta que não aconteceu nada com o professor Charrua e que não houve indagações da Polícia antes de manifestações legais de professores. Façamos de conta que é normal a sequência de entrevistas do Ministério Público e são normais e de boa prática democrática as declarações do procurador-geral da República. Façamos de conta que não há SIS. Façamos de conta que o presidente da República não chamou o PGR sobre o Freeport e quando disse que isto era assunto de Estado não queria dizer nada disso. Façamos de conta que esta democracia está a funcionar e votemos. Votemos, já que temos a valsa começada, e o nada há-de acabar-se como todas as coisas. Votemos Chaves, Mugabe, Castro, Eduardo dos Santos, Kabila ou o que quer que seja. Votemos por unanimidade porque de facto não interessa. A continuar assim, é só a fazer de conta que votamos.
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Está bem... façamos de conta
Façamos de conta que nada aconteceu no Freeport. Que não houve invulgaridades no processo de licenciamento e que despachos ministeriais a três dias do fim de um governo são coisa normal. Que não houve tios e primos a falar para sobrinhas e sobrinhos e a referir montantes de milhões (contos, libras, euros?). Façamos de conta que a Universidade que licenciou José Sócrates não está fechada no meio de um caso de polícia com arguidos e tudo.
Façamos de conta que José Sócrates sabe mesmo falar Inglês. Façamos de conta que é de aceitar a tese do professor Freitas do Amaral de que, pelo que sabe, no Freeport está tudo bem e é em termos quid juris irrepreensível. Façamos de conta que aceitamos o mestrado em Gestão com que na mesma entrevista Freitas do Amaral distinguiu o primeiro-ministro e façamos de conta que não é absurdo colocá-lo numa das "melhores posições no Mundo" para enfrentar a crise devido aos prodígios académicos que Freitas do Amaral lhe reconheceu. Façamos de conta que, como o afirma o professor Correia de Campos, tudo isto não passa de uma invenção dos média. Façamos de conta que o "Magalhães" é a sério e que nunca houve alunos/figurantes contratados para encenar acções de propaganda do Governo sobre a educação. Façamos de conta que a OCDE se pronunciou sobre a educação em Portugal considerando-a do melhor que há no Mundo. Façamos de conta que Jorge Coelho nunca disse que "quem se mete com o PS leva". Façamos de conta que Augusto Santos Silva nunca disse que do que gostava mesmo era de "malhar na Direita" (acho que Klaus Barbie disse o mesmo da Esquerda). Façamos de conta que o director do Sol não declarou que teve pressões e ameaças de represálias económicas se publicasse reportagens sobre o Freeport. Façamos de conta que o ministro da Presidência Pedro Silva Pereira não me telefonou a tentar saber por "onde é que eu ia começar" a entrevista que lhe fiz sobre o Freeport e não me voltou a telefonar pouco antes da entrevista a dizer que queria ser tratado por ministro e sem confianças de natureza pessoal. Façamos de conta que Edmundo Pedro não está preocupado com a "falta de liberdade". E Manuel Alegre também. Façamos de conta que não é infinitamente ridículo e perverso comparar o Caso Freeport ao Caso Dreyfus. Façamos de conta que não aconteceu nada com o professor Charrua e que não houve indagações da Polícia antes de manifestações legais de professores. Façamos de conta que é normal a sequência de entrevistas do Ministério Público e são normais e de boa prática democrática as declarações do procurador-geral da República. Façamos de conta que não há SIS. Façamos de conta que o presidente da República não chamou o PGR sobre o Freeport e quando disse que isto era assunto de Estado não queria dizer nada disso. Façamos de conta que esta democracia está a funcionar e votemos. Votemos, já que temos a valsa começada, e o nada há-de acabar-se como todas as coisas. Votemos Chaves, Mugabe, Castro, Eduardo dos Santos, Kabila ou o que quer que seja. Votemos por unanimidade porque de facto não interessa. A continuar assim, é só a fazer de conta que votamos.
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O comportamento elástico
José Sócrates visto por um outro José, o Pacheco Pereira (na «Quadratura do Círculo, da SIC Notícias): «Um homem que tem um comportamento face à verdade, digamos assim, elástico.»
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José Sócrates
Preocupante (para não dizer assustador)
O jogo de ontem com o Braga (Sporting 2 – Derlei, Izmailov –, Braga 3), é a isso que me refiro ao utilizar o adjectivo preocupante. Uma derrota justíssima que poderia ter sido uma vitória fácil com um árbitro dos que apareceram na roubalheira do luz (Benfica - Braga) e na da visita do Porto ao estádio do arquitecto Souto Moura (Braga - Porto). Mas não, nada de árbitros dispostos a roubar o Braga; o que apareceu foi um tipo que quando falhou fê-lo em prejuízo do Sporting. E lá perdemos, com um empurrãozinho da equipa de arbitragem mas sobretudo devido à exibição da equipa, má, muito má. Uma equipa que mais uma vez apareceu em campo com alguns maus jogadores (Polga, Rui Patrício, Caneira e a nova descoberta Daniel Carriço – que parece ficar «bem» ao lado de Polga) e com o desinteressado Rochemback. Paulo Bento, a par das suas qualidades, que as tem, deixou mais uma vez à vista o seu problema de inteligência. O velho problema do QI, a que tantas vezes já me referi.
Parece-me um fim de ciclo, não daqueles ciclos em que um grupo de incompetentes se vai embora, mas algo pior. De repente, parece-me que o Sporting já não é o clube grande que era. Já o esquartejaram o suficiente para que não o seja. Foi o que pensei ao ver a derrota de ontem, uma derrota que tem muito – não é só o problema do QI de Paulo Bento –, uma derrota que tem muito, dizia, de Filipe Soares Franco. O homem dos bombeiros do Estoril, que já tinha um lugar na história do Sporting por ter preferido que o clube não chegasse ao primeiro lugar do campeonato (para poupar nos prémios aos jogadores e mesmo assim ir à Liga dos Campeões), coisa que nenhum presidente antes tinha feito, esse homem reforça agora tal lugar com a situação em que deixa o clube, com os adeptos afastados, não de costas viradas para o clube mas de costas viradas para ele e para a gente de que se rodeou. O Sporting de Filipe Soares Franco nunca foi bem o Sporting, mas de vez em quando como que renascia, só que agora já nem de vez em quando. Filipe Soares Franco vai-se embora, e ainda bem. Pode estar aí uma oportunidade, se ele não conseguir deixar um dos do género a fazer como ele tem feito.
Curiosamente, na véspera deste jogo com o Braga Filipe Soares Franco dava uma longa entrevista ao «Record», umas das muitas longas entrevistas que lá vai arranjando. Parecia que estava a gozar. O homem que queria o segundo lugar para o clube, que teve a lata de aparecer em público a dizer isso em vez de reservar um desejo tão despropositado para o recato da sua família, agora nesta entrevista já falou da Liga dos Campeões, da possibilidade de ganhá-la, esquecendo-se de que tinha daí a umas horas um jogo para ganhar à belíssima equipa do Braga. Mesmo assim ainda falou de querer ter o estádio cheio, quarenta e cinco mil pessoas, mais uma vez sem perceber que um estádio de futebol não se enche com clientes (como ele e a sua direcção consideram os sportinguistas) mas com adeptos. Não sei se algum dia esta gente vai saber o que é um adepto.
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Parece-me um fim de ciclo, não daqueles ciclos em que um grupo de incompetentes se vai embora, mas algo pior. De repente, parece-me que o Sporting já não é o clube grande que era. Já o esquartejaram o suficiente para que não o seja. Foi o que pensei ao ver a derrota de ontem, uma derrota que tem muito – não é só o problema do QI de Paulo Bento –, uma derrota que tem muito, dizia, de Filipe Soares Franco. O homem dos bombeiros do Estoril, que já tinha um lugar na história do Sporting por ter preferido que o clube não chegasse ao primeiro lugar do campeonato (para poupar nos prémios aos jogadores e mesmo assim ir à Liga dos Campeões), coisa que nenhum presidente antes tinha feito, esse homem reforça agora tal lugar com a situação em que deixa o clube, com os adeptos afastados, não de costas viradas para o clube mas de costas viradas para ele e para a gente de que se rodeou. O Sporting de Filipe Soares Franco nunca foi bem o Sporting, mas de vez em quando como que renascia, só que agora já nem de vez em quando. Filipe Soares Franco vai-se embora, e ainda bem. Pode estar aí uma oportunidade, se ele não conseguir deixar um dos do género a fazer como ele tem feito.
Curiosamente, na véspera deste jogo com o Braga Filipe Soares Franco dava uma longa entrevista ao «Record», umas das muitas longas entrevistas que lá vai arranjando. Parecia que estava a gozar. O homem que queria o segundo lugar para o clube, que teve a lata de aparecer em público a dizer isso em vez de reservar um desejo tão despropositado para o recato da sua família, agora nesta entrevista já falou da Liga dos Campeões, da possibilidade de ganhá-la, esquecendo-se de que tinha daí a umas horas um jogo para ganhar à belíssima equipa do Braga. Mesmo assim ainda falou de querer ter o estádio cheio, quarenta e cinco mil pessoas, mais uma vez sem perceber que um estádio de futebol não se enche com clientes (como ele e a sua direcção consideram os sportinguistas) mas com adeptos. Não sei se algum dia esta gente vai saber o que é um adepto.
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Antes de a história começar
Através do link ali do lado direito dá para ver que o meu novo romance já está disponível (desde hoje), pelo menos numa livraria on-line (nas outras talvez só daqui a uns dias). Ou seja, esta é uma boa altura para colocar aqui o texto de entrada, uma espécie de pré-capítulo que antecede os 26 capítulos daquela noite no meio do fogo, há uns anos. É este…
Há muito tempo que escrevia este livro. Alguns anos. Mas escrevia-o apenas na minha mente, com o que pensava, com tudo aquilo que ia recordando. Se tivesse conseguido reunir as palavras necessárias para contar a história, se as tivesse encontrado, escolhido, até se tivesse inventado algumas para na volta fazer boa figura, tudo haveria de ser, digamos assim, mais normal. Era uma vez… Eu, de noite, uma noite muito quente, abafada, próximo do que julgava insuportável, uma noite com o fogo. Como se vivesse sempre essa noite. Como se ela tivesse passado a existir de uma forma definitiva. Um filme a voltar inevitavelmente ao princípio. A ideia de haver um tipo de cinema circular, ou aos círculos, marcado por um momento um bocadinho forçado, mas apenas um momento, fugaz, aquele em que de repente se passava do fim para o princípio e tudo voltava a acontecer. Tudo, desde o princípio. Eu ainda em casa, depois de ligar a televisão. Teriam passado dez ou quinze segundos sobre o aparecimento das imagens no ecrã. Não mais do que isso. Era de noite na televisão, como era de noite naquele sítio, o da casa. A minha casa. Estavam em directo com as notícias. Tudo ardia, dava até a ideia de que a câmara filmava bem dentro das chamas; mas não, nem ela nem quem a segurava corriam qualquer risco. Era a objectiva que fazia o milagre, como se naquele momento não houvesse mais nada no mundo em que gastar milagres. Eu ouvia o barulho do telefone, insistente, mas não ia atender. Estava preso ao ecrã, mais do que pelas chamas, por causa da palavra que aparecia num dos cantos. O nome do lugar da minha infância. E o barulho do telefone, sem parar. Quando finalmente atendi, surgiu a voz da minha mãe. Perguntava se já sabia. Apenas isso. E eu já sabia, tinha acabado de saber. Tinha acabado de ver. O fogo. O lugar da minha infância, naquela noite, invadido pelo fogo.É este o livro que tantas vezes escrevi dentro da cabeça. O livro aqui já com as palavras, as que antes não consegui reunir, as que durante alguns anos não encontrei, as que não fui capaz de escolher. Até as palavras que sempre me pareceram impossíveis de inventar. Ainda nem passaram duas horas sobre as imagens vistas na televisão e sobre o que escutei da minha mãe, pelo telefone. Uma boa parte do Alentejo já ficou para trás, sempre com o carro apressado nas estradas distribuídas quase ao calhas pela planície. Sempre à procura do trajecto mais a direito, uma estrada nacional, uma estrada municipal, por vezes uma que nem isso – e a auto-estrada, essa sempre a direito, longe, lá do outro lado, nada em caminho. Tenho bem à minha frente os montes que se seguem à planície, uma fronteira. Tão tarde na noite o normal seria nem conseguir vê-los. Mas vejo, vejo-os sem dificuldade, os seus contornos bem definidos. A história pode agora começar.
Há muito tempo que escrevia este livro. Alguns anos. Mas escrevia-o apenas na minha mente, com o que pensava, com tudo aquilo que ia recordando. Se tivesse conseguido reunir as palavras necessárias para contar a história, se as tivesse encontrado, escolhido, até se tivesse inventado algumas para na volta fazer boa figura, tudo haveria de ser, digamos assim, mais normal. Era uma vez… Eu, de noite, uma noite muito quente, abafada, próximo do que julgava insuportável, uma noite com o fogo. Como se vivesse sempre essa noite. Como se ela tivesse passado a existir de uma forma definitiva. Um filme a voltar inevitavelmente ao princípio. A ideia de haver um tipo de cinema circular, ou aos círculos, marcado por um momento um bocadinho forçado, mas apenas um momento, fugaz, aquele em que de repente se passava do fim para o princípio e tudo voltava a acontecer. Tudo, desde o princípio. Eu ainda em casa, depois de ligar a televisão. Teriam passado dez ou quinze segundos sobre o aparecimento das imagens no ecrã. Não mais do que isso. Era de noite na televisão, como era de noite naquele sítio, o da casa. A minha casa. Estavam em directo com as notícias. Tudo ardia, dava até a ideia de que a câmara filmava bem dentro das chamas; mas não, nem ela nem quem a segurava corriam qualquer risco. Era a objectiva que fazia o milagre, como se naquele momento não houvesse mais nada no mundo em que gastar milagres. Eu ouvia o barulho do telefone, insistente, mas não ia atender. Estava preso ao ecrã, mais do que pelas chamas, por causa da palavra que aparecia num dos cantos. O nome do lugar da minha infância. E o barulho do telefone, sem parar. Quando finalmente atendi, surgiu a voz da minha mãe. Perguntava se já sabia. Apenas isso. E eu já sabia, tinha acabado de saber. Tinha acabado de ver. O fogo. O lugar da minha infância, naquela noite, invadido pelo fogo.É este o livro que tantas vezes escrevi dentro da cabeça. O livro aqui já com as palavras, as que antes não consegui reunir, as que durante alguns anos não encontrei, as que não fui capaz de escolher. Até as palavras que sempre me pareceram impossíveis de inventar. Ainda nem passaram duas horas sobre as imagens vistas na televisão e sobre o que escutei da minha mãe, pelo telefone. Uma boa parte do Alentejo já ficou para trás, sempre com o carro apressado nas estradas distribuídas quase ao calhas pela planície. Sempre à procura do trajecto mais a direito, uma estrada nacional, uma estrada municipal, por vezes uma que nem isso – e a auto-estrada, essa sempre a direito, longe, lá do outro lado, nada em caminho. Tenho bem à minha frente os montes que se seguem à planície, uma fronteira. Tão tarde na noite o normal seria nem conseguir vê-los. Mas vejo, vejo-os sem dificuldade, os seus contornos bem definidos. A história pode agora começar.
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Etiquetas:
Literatura,
Romance «Uma Noite com o Fogo»
Muito a correr
Os dois últimos jogos do Sporting. Frustração na Trofa no passado fim-de-semana (Trofense 0, Sporting 0) e o campeonato de novo mais longe. Incompetência (até do árbitro) e alguma falta de sorte ditaram o resultado. Ontem, as meias-finais da Taça da Liga, a organização presidida por Hermínio Loureiro, que também ontem vi a passar numa rua de Lisboa, coisa que me deixou surpreendido, não por ele andar na rua mas por ser quase tão baixo como o António Vitorino; uma cabazada a um Porto de coxos (Sporting 4 – Romagnoli 2, Derlei 2 –, Porto 1) e a passagem à final para jogar contra o Benfica, que é sempre melhor do que ter de jogar contra o Guimarães. Os dois golos de Derlei foram fantásticos (destaque ainda para a exibição de Vukcevic e sobretudo para a de Pereirinha, num jogo em que aconteceu um milagre, o de haver uma grande penalidade sobre Andersson Polga, não sei se inventada ou não, mas assinalada, logo sobre ele que é especialista em cometê-las).
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