quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Antes de a história começar

Através do link ali do lado direito dá para ver que o meu novo romance já está disponível (desde hoje), pelo menos numa livraria on-line (nas outras talvez só daqui a uns dias). Ou seja, esta é uma boa altura para colocar aqui o texto de entrada, uma espécie de pré-capítulo que antecede os 26 capítulos daquela noite no meio do fogo, há uns anos. É este…

Há muito tempo que escrevia este livro. Alguns anos. Mas escrevia-o apenas na minha mente, com o que pensava, com tudo aquilo que ia recordando. Se tivesse conseguido reunir as palavras necessárias para contar a história, se as tivesse encontrado, escolhido, até se tivesse inventado algumas para na volta fazer boa figura, tudo haveria de ser, digamos assim, mais normal. Era uma vez… Eu, de noite, uma noite muito quente, abafada, próximo do que julgava insuportável, uma noite com o fogo. Como se vivesse sempre essa noite. Como se ela tivesse passado a existir de uma forma definitiva. Um filme a voltar inevitavelmente ao princípio. A ideia de haver um tipo de cinema circular, ou aos círculos, marcado por um momento um bocadinho forçado, mas apenas um momento, fugaz, aquele em que de repente se passava do fim para o princípio e tudo voltava a acontecer. Tudo, desde o princípio. Eu ainda em casa, depois de ligar a televisão. Teriam passado dez ou quinze segundos sobre o aparecimento das imagens no ecrã. Não mais do que isso. Era de noite na televisão, como era de noite naquele sítio, o da casa. A minha casa. Estavam em directo com as notícias. Tudo ardia, dava até a ideia de que a câmara filmava bem dentro das chamas; mas não, nem ela nem quem a segurava corriam qualquer risco. Era a objectiva que fazia o milagre, como se naquele momento não houvesse mais nada no mundo em que gastar milagres. Eu ouvia o barulho do telefone, insistente, mas não ia atender. Estava preso ao ecrã, mais do que pelas chamas, por causa da palavra que aparecia num dos cantos. O nome do lugar da minha infância. E o barulho do telefone, sem parar. Quando finalmente atendi, surgiu a voz da minha mãe. Perguntava se já sabia. Apenas isso. E eu já sabia, tinha acabado de saber. Tinha acabado de ver. O fogo. O lugar da minha infância, naquela noite, invadido pelo fogo.É este o livro que tantas vezes escrevi dentro da cabeça. O livro aqui já com as palavras, as que antes não consegui reunir, as que durante alguns anos não encontrei, as que não fui capaz de escolher. Até as palavras que sempre me pareceram impossíveis de inventar. Ainda nem passaram duas horas sobre as imagens vistas na televisão e sobre o que escutei da minha mãe, pelo telefone. Uma boa parte do Alentejo já ficou para trás, sempre com o carro apressado nas estradas distribuídas quase ao calhas pela planície. Sempre à procura do trajecto mais a direito, uma estrada nacional, uma estrada municipal, por vezes uma que nem isso – e a auto-estrada, essa sempre a direito, longe, lá do outro lado, nada em caminho. Tenho bem à minha frente os montes que se seguem à planície, uma fronteira. Tão tarde na noite o normal seria nem conseguir vê-los. Mas vejo, vejo-os sem dificuldade, os seus contornos bem definidos. A história pode agora começar.
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