… a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e
a mudar-se. A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A
ser errante.
Questão de azia
Há umas criaturas benquistas que, de há uns anos a esta
parte, nos tentam mentalizar para o óbvio, que o tempo de um emprego para toda
a vida é coisa do passado, que o trabalho hodierno, por força dos avanços
científico-tecnológicos e da globalização, imprime uma dinâmica de
deslocalização e de renovação, que a actualidade exige de nós uma
disponibilidade total para a transumância, que o homem de hoje, qualificado e
certificado, deve ser um ser aberto às novas e tentadoras ofertas, venham elas
de onde vierem, do norte, do centro, do sul, do litoral à raia ou até mesmo a
Marte. E a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e a mudar-se.
A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A ser errante.
Contudo, de há uns anos a esta parte, há umas outras
criaturas igualmente benquistas que nos tentam convencer de que viajamos
demasiado, de que é preciso poupar nos rodopiares e de que é urgente
sedentarizarmo-nos. O problema é que quando a gente se habitua à boa-vai-ela é
uma carga de trabalhos, e daí verem-se as criaturas todas benquistas na
obrigação salvífica de meter mãos à cabeça e, com a cabeça que têm, agir em
conformidade, que é assim que se diz com determinação e propriedade, logo
urdindo mondas e doutrinas, e, para nos refrear o ímpeto, metendo-nos por sobre
as cabeças aturdidas mais uma dúzia e meia de pórticos de pagamento automático
para nos delimitar a circulação.
E é assim que num caranguejar contínuo anda o país
desatinado, tão como no tempo de Eça e de quantos se deixaram abater vencidos
da vida.
«Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de
organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a
moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.»
«A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma
rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela
intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.»
«A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas
vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do
ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo
dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre,
de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena
enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores
ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o
privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se,
destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as
indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.»
A única diferença é que no país de hoje há ainda um terceiro
tipo de criaturas benquistas que em deslavado ditério retórico nos questiona se
aguentamos, e a gente, tão vencida como a outra, aguenta, aguenta e, para não
responder à letra, espera pelas três ou pelas cinco da tarde e sai porta fora
rumo à primeira pastelaria para, cortando a azia, comprar meia-dúzia de
bolinhos em promoção a cinquenta cêntimos cada.
Apesar de tudo, ainda há males que vêm por bem!
Crónica de António
Souto para o blog «Floresta do Sul» (número 56); crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,
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