terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

António Souto – Crónica (56)



… a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e a mudar-se. A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A ser errante.

Questão de azia
Há umas criaturas benquistas que, de há uns anos a esta parte, nos tentam mentalizar para o óbvio, que o tempo de um emprego para toda a vida é coisa do passado, que o trabalho hodierno, por força dos avanços científico-tecnológicos e da globalização, imprime uma dinâmica de deslocalização e de renovação, que a actualidade exige de nós uma disponibilidade total para a transumância, que o homem de hoje, qualificado e certificado, deve ser um ser aberto às novas e tentadoras ofertas, venham elas de onde vierem, do norte, do centro, do sul, do litoral à raia ou até mesmo a Marte. E a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e a mudar-se. A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A ser errante.
Contudo, de há uns anos a esta parte, há umas outras criaturas igualmente benquistas que nos tentam convencer de que viajamos demasiado, de que é preciso poupar nos rodopiares e de que é urgente sedentarizarmo-nos. O problema é que quando a gente se habitua à boa-vai-ela é uma carga de trabalhos, e daí verem-se as criaturas todas benquistas na obrigação salvífica de meter mãos à cabeça e, com a cabeça que têm, agir em conformidade, que é assim que se diz com determinação e propriedade, logo urdindo mondas e doutrinas, e, para nos refrear o ímpeto, metendo-nos por sobre as cabeças aturdidas mais uma dúzia e meia de pórticos de pagamento automático para nos delimitar a circulação.
E é assim que num caranguejar contínuo anda o país desatinado, tão como no tempo de Eça e de quantos se deixaram abater vencidos da vida.
«Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.»
«A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.»
«A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.»
A única diferença é que no país de hoje há ainda um terceiro tipo de criaturas benquistas que em deslavado ditério retórico nos questiona se aguentamos, e a gente, tão vencida como a outra, aguenta, aguenta e, para não responder à letra, espera pelas três ou pelas cinco da tarde e sai porta fora rumo à primeira pastelaria para, cortando a azia, comprar meia-dúzia de bolinhos em promoção a cinquenta cêntimos cada.
Apesar de tudo, ainda há males que vêm por bem!

Crónica de António Souto para o blog «Floresta do Sul» (número 56); crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52; 53;54; 55.