sábado, 23 de junho de 2012
Corta-cabeças
Geraldo Geraldes, o Sem Pavor, na Aldeia de Valverde (Évora), junto ao lar de idosos e virado para o jardim infantil. Tipo perigoso.
segunda-feira, 4 de junho de 2012
António Souto – Crónica (48)
Tem
dentro dele uma história, uma história triste, de abandono em lugar de amparo e
de chuva em lugar de lágrimas, mas tem sobretudo no seu âmago a tessitura
aprimorada do texto, o rigor extremo do verbo, a delicadeza da palavra, a
harmonia do som, a consciência dos limites do silêncio, a liberdade dos
sentidos.
Conto exemplar
Já lá vão muitos anos desde que, por feliz
acaso, me chegou às mãos uma então muito recente antologia de contos de
Portugal e do Brasil, dezasseis ao todo, contidos e agradáveis de ler, e por
isso interessantes para um público estrangeiro, especialmente para jovens
estudantes franceses. Uma colectânea com a chancela Le Livre de Poche, na
colecção «Lire en…», no presente caso «en Portugais».
Foi há vinte e três anos, leccionava eu a nossa
língua e uma (a)mostra da nossa literatura em Estrasburgo, e desse conjunto de
contos houve um em particular que me seduziu. Um conto breve, mas muito rico,
muito burilado, muito realista, muito poético, muito exemplar. Li-o várias
vezes e o prazer de o ler crescia numa permanente descoberta de pintura
fascinante.
Ainda hoje o leio para alunos portugueses
quando lhes quero mostrar a arte de contar e quero que sintam (sentirão?) a
grandeza e a força das palavras. E a par, quase sempre, uma crónica de Lobo
Antunes, mestre também em condensar um mundo inteiro em meia dúzia de linhas.
Mas voltemos ao conto, àquele que, de forma
peculiar, me cativou. Leva por título «Uma vela para Dario» e narra-nos o
episódio de um cidadão comum que se sente mal em plena cidade, dá-lhe um
fanico, cai na calçada, alguns «passantes», com o pretexto de o ajudar, vão-lhe
roubando os poucos haveres que transporta, a população assiste comprazida ao
longo espectáculo da morte, um menino negro acende-lhe uma vela, a chuva cai, a
vela apaga-se.
Uma circunstância corriqueira para quem se
acostumou com o arrastar da vida a desacreditar na bondade do ser humano e na
sua reclamada solidariedade, um acontecimento que daria para um vulgar
apontamento de pasquim a somar a muitos outros que se esquecem antes de
terminada a leitura.
Porém, este caso é um conto. Este caso
tornou-se um conto. Este caso saiu da rua, saiu da cidade, fez-se texto e, por
magia, converteu-se em matéria poética. Pouco importa a tonalidade com que se
pinta a indiferença, a crueldade, a dor, ou, pensando bem, talvez assim importe
mais, e pela coloração da arte o sofrimento entre mais fundo, para lá dos
olhos, e o coração do leitor se revigore e a pessoa que é, também por magia,
passe a ser mais pessoa.
Regressemos ao nosso conto, chamemos-lhe
assim, agora nosso, porque partilhado. Tem dentro dele uma história, uma
história triste, de abandono em lugar de amparo e de chuva em lugar de
lágrimas, mas tem sobretudo no seu âmago a tessitura aprimorada do texto, o
rigor extremo do verbo, a delicadeza da palavra, a harmonia do som, a
consciência dos limites do silêncio, a liberdade dos sentidos. Exemplar,
portanto, como se disse já, e tudo condensado em seiscentas e vinte e seis
palavras.
Nunca li o livro de onde este conto foi
extraído («Vinte Contos Menores», Editora Record, 1979), por nunca me ter
cruzado com ele, sequer tive curiosidade em saber pormenores do seu autor;
poucos portugueses, de resto, terão tido notícias dele e da sua obra. E o
Brasil, contudo, aqui tão perto e em português também.
Não fora o «Prémio Camões» deste ano e não o
descobriríamos, avesso que é como poucos à notoriedade e ao mercantilismo
livresco que transfigura lugares-comuns em best
sellers. Em Curitiba continua, e continua escrevendo e esquivo nos seus sossegados
87 anos. Consta-se que não virá a Portugal receber o prémio, para fazer jus à
sua caturrice, mas dele não se livrará, porque é justo e devido. Um conto lhe bastaria. Parabéns, Dalton Trevisan!
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