terça-feira, 16 de abril de 2013

António Souto – Crónica (57)


Uma semana tomada pela entrevista e pela borrasca. Os níveis sempre a subir, sempre a subir, raio de entrevista, raio de quadra. Há quem fale em povoações inteiras isoladas e sem padeiro, senhor, e foi preciso uma santa semana de enxurradas para que nos déssemos conta da retração e da miséria humana a que estamos votados.

Entre a páscoa e a pascoela
Uma semana santa entrevistada, uma semana santa chuvinhada, uma semana santa dominada pela água e pela expectativa. Diluviou praticamente de domingo a domingo e de norte a sul. E a entrevista, senhor, a entrevista.
Fui para cima esquivando-me a aguaceiros inopinados, vim para baixo envolto em neblina e tempestade. À ida, zunia a entrevista, à vinda, ecoava a visita pascal. Uma semana à maneira, só por ser santa. À chegada lá acima já se via uns campos alagados, coisa normal e patética; à chegada cá abaixo, tudo inundado, campos e trilhos, um quadro mais sério extravasando margens. Ele foi a entrevista, ele é agora o águeda e o vouga, ele é o alviela e o tejo, ele é o guadiana, tudo submergido numa narrativa preocupante.
Uma semana tomada pela entrevista e pela borrasca. Os níveis sempre a subir, sempre a subir, raio de entrevista, raio de quadra. Há quem fale em povoações inteiras isoladas e sem padeiro, senhor, e foi preciso uma santa semana de enxurradas para que nos déssemos conta da retração e da miséria humana a que estamos votados.
Uma entrevista, a entrevista, um alarido dos demos, o ajuste, uma semana de delonga, a molhadela antecipada. Moção e constituição só depois do tríduo, pouco mais que morrinha, até lá as nuvens não darão placitude, cheias, sim, e rombos, leitos galgados, e rombos, ilhas de criaturas pacientes, conformadas, e rombos, e para trás a entrevista, senhor, a aclaração que tardava, a narrativa, e mais rombos.
E com a comoção a demissão, e a chuva persistindo e a procela. Já a semana santa dá lugar à pascoela. E a declaração, senhor, a falha anímica, e bolonha trazido à baila, e a impudência de um título, o vício de etiqueta, a dança demandada, e as águas mil e as mil patranhas de abril pelas sargetas, e com elas relatórios e constituições, e rombos e buracos, e o pobre do mexilhão, senhor, que culpa tem das maturidades, das imaturidades e dos dilúvios, sim, senhor, perguntaremos, que culpa tem ele que só anseia pela primavera e pela acalmia.
Ah, semana santa sacratíssima, que procrastinas o juízo e amofinas a ventura nossa e o nosso impulso de juventude insigne, consente-nos ao menos a misericórdia sobrante do in albis como a apetecida bonança após a tempestade, que sempre assim foi e sempre assim será.
Enquanto isto, e atingido desprevenidamente esta manhã por um pé-d’água quando me dirigia para o trabalho, apressei-me a comprar no destino, a um vendedor de circunstância, um guarda-chuva avaro e maneirinho que me resguardasse da intempérie. Quis o acaso que o não utilizasse, por involuntária renúncia celeste, e deste modo ficasse sem comprovar a proficiência dos três eurinhos desbaratados. Seja como for, que fique lavrado que não tenciono requerer a fiscalização preventiva, e se o dito se desengonçar na sua primeira função, do mal, o menos, exonero-o e recomeço a narrativa.

Crónica de António Souto para o blog «Floresta do Sul» (número 57); crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52; 53;54; 55; 56.