Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima.
.
.
Palavras cruzadas
Faz agora um ano tomava posse um novo governo. Renascia então uma nova esperança com o sossegar de tensões e com a promessa de um novo ciclo. Infelizmente, os mercados mundiais trocaram-nos as voltas e esfumaram o tremeluzir de confiança e de convencimento apregoados, e vai daí, cai-nos em cima a crise. E a crise, como sempre acontece, deixa mossas. Em quase todos, grandes como pequenos, embora nos pequenos e médios seja a pancada maior e de cura mais difícil. Não será de espantar, por isso, que daqui a nada esteja meio Portugal inevitavelmente deprimido. É que a depressão (tal como o fado) há muito existe, e sendo triste, tenderá a agravar-se.
Dizem as estatísticas que um em cada cinco portugueses sofre deste mal, e não parece que as estatísticas contemplem já com rigor a crise galopante que em breve tornará ainda mais adversas as condições de vida. E se à crise juntarmos todos os outros factores que os especialistas consideram determinantes, não haverá anti-depressivos suficientes e suficientemente fortes que nos socorram.
Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima. Mas não, D. Manuel I tinha os sonhos bem mais curtos e, como dizia o poeta, não consta que soubesse de eleições.
.
E porque veio o vate à colação, este é incontestavelmente um país deles – uns por mestria, outros por arrojo. E se D. Dinis, sendo rei, não se inibiu de cultivar a arte, nem Aleixo, sendo iletrado, não deixou de ser artista, por que razão não há-de um qualquer artífice de lhe tomar o pulso? Pelos vistos, basta apanhar a inspiração a jeito, assim como quem apanha o transporte em hora de ponta.
Foi o que aconteceu a um procurador em dia de julgamento. Chegou atrasado à barra e entendeu justificar-se, perante a juíza, com argumentos versificados, nada menos do que uma dezena de quadras lavradas no metro, entre o domicílio e o tribunal. E para memória futura, que na história da literatura só cabem alguns, vá de as ditar para a acta. O jornal «Expresso» (23/09), noticiando o facto de a magistrada não ter apreciado a habilidade poética, reproduziu quatro delas. Nós, com a devida vénia, e para aquilatar dos predicados, reproduzimos três: «Os comboios já vão cheios/ muitos se levantam cedo/ nas mulheres aprecio os seios/ mas têm outro enredo // Vejo brancos e pretos/ nacionais e estrangeiros/ alguns vivem em guetos/ outros em lugares foleiros // São sete e pouco da manhã/ viajo de metro para o trabalho/ fi-lo ontem, farei-o (sic) amanhã/ só sou aquilo que valho.
Nem D. Dinis, que não tinha gramática, nem Aleixo, que a não aprendeu, se atreveram a tanto nem deram da pátria língua tanto desacerto, que nem a rima se aproveita de tão desgastada. Um atentado, portanto. E não se julgue que o procurador saiu há pouco dos bancos da faculdade, não senhor, leva já largos anos de profissão em matéria de justiça, e, segundo o hebdomadário, que o cita, para cima de «mil poemas escritos». É obra!
.
E se estas duas notas aqui ficam em crónica, é só porque, primeiro, não havia mais assunto que à partida a justificasse – que há ocasiões em que as palavras não vêm à tona –, e, segundo, porque, ditosamente, as conversações em torno de um orçamento prenunciado e a notícia de que «cerca de 250 mil portugueses sem emprego e sem o décimo segundo ano vão ser chamados no próximo mês para acções de qualificação nos centros de Novas Oportunidades» inspiraram o mote.
Qual o nexo entre umas e outras? Decifre o leitor.
.
Crónica de Outubro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.
.
Palavras cruzadas
Faz agora um ano tomava posse um novo governo. Renascia então uma nova esperança com o sossegar de tensões e com a promessa de um novo ciclo. Infelizmente, os mercados mundiais trocaram-nos as voltas e esfumaram o tremeluzir de confiança e de convencimento apregoados, e vai daí, cai-nos em cima a crise. E a crise, como sempre acontece, deixa mossas. Em quase todos, grandes como pequenos, embora nos pequenos e médios seja a pancada maior e de cura mais difícil. Não será de espantar, por isso, que daqui a nada esteja meio Portugal inevitavelmente deprimido. É que a depressão (tal como o fado) há muito existe, e sendo triste, tenderá a agravar-se.
Dizem as estatísticas que um em cada cinco portugueses sofre deste mal, e não parece que as estatísticas contemplem já com rigor a crise galopante que em breve tornará ainda mais adversas as condições de vida. E se à crise juntarmos todos os outros factores que os especialistas consideram determinantes, não haverá anti-depressivos suficientes e suficientemente fortes que nos socorram.
Se ao menos em vez de à Índia tivéssemos chegado primeiro à Lua, talvez hoje ela fosse nossa e nos pudéssemos lá refugiar. À sede não morreríamos, que afinal se crê haver por aquelas excelsas paragens muita água, e a ser verdade que por lá abunda igualmente prata, sempre poderíamos ter matéria de troca para nos amolecer os impostos e alçar a auto-estima. Mas não, D. Manuel I tinha os sonhos bem mais curtos e, como dizia o poeta, não consta que soubesse de eleições.
.
E porque veio o vate à colação, este é incontestavelmente um país deles – uns por mestria, outros por arrojo. E se D. Dinis, sendo rei, não se inibiu de cultivar a arte, nem Aleixo, sendo iletrado, não deixou de ser artista, por que razão não há-de um qualquer artífice de lhe tomar o pulso? Pelos vistos, basta apanhar a inspiração a jeito, assim como quem apanha o transporte em hora de ponta.
Foi o que aconteceu a um procurador em dia de julgamento. Chegou atrasado à barra e entendeu justificar-se, perante a juíza, com argumentos versificados, nada menos do que uma dezena de quadras lavradas no metro, entre o domicílio e o tribunal. E para memória futura, que na história da literatura só cabem alguns, vá de as ditar para a acta. O jornal «Expresso» (23/09), noticiando o facto de a magistrada não ter apreciado a habilidade poética, reproduziu quatro delas. Nós, com a devida vénia, e para aquilatar dos predicados, reproduzimos três: «Os comboios já vão cheios/ muitos se levantam cedo/ nas mulheres aprecio os seios/ mas têm outro enredo // Vejo brancos e pretos/ nacionais e estrangeiros/ alguns vivem em guetos/ outros em lugares foleiros // São sete e pouco da manhã/ viajo de metro para o trabalho/ fi-lo ontem, farei-o (sic) amanhã/ só sou aquilo que valho.
Nem D. Dinis, que não tinha gramática, nem Aleixo, que a não aprendeu, se atreveram a tanto nem deram da pátria língua tanto desacerto, que nem a rima se aproveita de tão desgastada. Um atentado, portanto. E não se julgue que o procurador saiu há pouco dos bancos da faculdade, não senhor, leva já largos anos de profissão em matéria de justiça, e, segundo o hebdomadário, que o cita, para cima de «mil poemas escritos». É obra!
.
E se estas duas notas aqui ficam em crónica, é só porque, primeiro, não havia mais assunto que à partida a justificasse – que há ocasiões em que as palavras não vêm à tona –, e, segundo, porque, ditosamente, as conversações em torno de um orçamento prenunciado e a notícia de que «cerca de 250 mil portugueses sem emprego e sem o décimo segundo ano vão ser chamados no próximo mês para acções de qualificação nos centros de Novas Oportunidades» inspiraram o mote.
Qual o nexo entre umas e outras? Decifre o leitor.
.
Crónica de Outubro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.
.