sexta-feira, 30 de março de 2007
quarta-feira, 28 de março de 2007
Kasparov e Saramago
O antigo campeão mundial de xadrez Garry Kasparov esteve em Portugal há não muito tempo. Uns meses, três ou quatro. Ouvi-o falar numa conferência para gestores. Estratégia, tomada de decisão, inovação, empreendedorismo, por coisas como estas andou o discurso de Kasparov. A certa altura, surpreendeu-me ao falar de José Saramago; a propósito de inovação. Não o fez pela opção única do Nobel português de escrever com uma pontuação bem peculiar, marcada sobretudo pela frugalidade, que permite uma leitura ao ritmo da própria respiração. Não, foi por algo que também será propício à inovação, à capacidade de inovar: as dificuldades da vida, principalmente aquelas que são experimentadas em criança. Para isso, recorreu a uma frase de Saramago… «As crianças crescem melhor à sombra do que ao sol.» Kasparov não referiu, no entanto, uma sombra absolutamente fantástica do criador de «Memorial do Convento», a de uma figueira junto da qual, nas tardes de Verão, o rapazito Saramago se deitava muitas vezes, para se proteger do calor. A mesma figueira que depois, a cada noite, o voltava a acolher; a ele, Saramago, que embalado pelas histórias do avô via as estrelas por entre os ramos. Como escreve no discurso de Estocolmo… «No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…»
sábado, 24 de março de 2007
Um outro blog
Ali ao lado, na «Nota Biográfica», está o link para um outro blog que criei. Chama-se «Mundo RH». Ainda só lá coloquei um texto, do qual retirei para aqui este excerto… «Chamava-se Agostinho da Silva esse filósofo e pelo tempo em que deu essa resposta estava a ser como que redescoberto, ou talvez apenas descoberto, depois de durante décadas ter sido por cá ignorado. Gozava os últimos anos da sua vida, numa casa da zona do Príncipe Real, em Lisboa, com alguns gatos por companheiros e com a lida da casa a ser assegurada pela empregada de uma amiga que vivia perto. A empregada chamava-se Manuela e eu lembro-me de a ver de vez em quando em casa de pessoas conhecidas, numas visitas a correr, invariavelmente a falar do ‘senhor professor’ e dos gatos, e sempre bem disposta, sorridente, por vezes a soltar uma gargalhada, e por vezes também a meter nas frases uma expressão brejeira ou até um palavrão. Isto era no final da década de 1980…»
Borges ou Maradona?
Há uns anos fui a Madrid fazer uma entrevista a Jorge Valdano, então director desportivo do Real Madrid. Foi uma entrevista sobre gestão e liderança, e acabou por ficar bem longa. A certa altura a conversa passou pela literatura – eu tinha acabado de ler uma colectânea de contos editada em Portugal pela Relógio d’Água, e Valdano era um dos participantes. Deixo a seguir essa pequena parte da entrevista…
Há um conto seu, numa colectânea em que participam escritores famosos, no qual fala de um guarda-redes que defendeu um penalty no último minuto de um jogo, mas que depois entrou na baliza para ir buscar o boné, levando a bola bem segura nas mãos... Isso aconteceu mesmo ou foi você que inventou?
Eu ouvi contar isso desde pequeno, mas não é uma situação real.
De qualquer forma, seria uma situação possível no futebol...
Sim, por isso a contei. Uma das muitas histórias de perdedores... Mostra as duas faces do futebol em poucos segundos, o herói e o proscrito.
Como se sentiu no meio de uma parada de estrelas da literatura? Foi mais difícil do que jogar ao lado de Maradona ou Burruchaga, por exemplo?
Bom, o futebol é o meu mundo…
Todos aqueles escritores adoram futebol. Javier Marías, Alfredo Brice Etchnique...
Eu sinto-me muito bem com eles. Tenho muitos amigos na literatura, de todas as gerações. Sinto-me muito bem no meio de gente como Mario Benedetti, Francisco Umbral, Manuel Vásquez-Montalban...
Javier Marias é do Real Madrid...
Sim, é adepto do Real Madrid.
...
Há um conto seu, numa colectânea em que participam escritores famosos, no qual fala de um guarda-redes que defendeu um penalty no último minuto de um jogo, mas que depois entrou na baliza para ir buscar o boné, levando a bola bem segura nas mãos... Isso aconteceu mesmo ou foi você que inventou?
Eu ouvi contar isso desde pequeno, mas não é uma situação real.
De qualquer forma, seria uma situação possível no futebol...
Sim, por isso a contei. Uma das muitas histórias de perdedores... Mostra as duas faces do futebol em poucos segundos, o herói e o proscrito.
Como se sentiu no meio de uma parada de estrelas da literatura? Foi mais difícil do que jogar ao lado de Maradona ou Burruchaga, por exemplo?
Bom, o futebol é o meu mundo…
Todos aqueles escritores adoram futebol. Javier Marías, Alfredo Brice Etchnique...
Eu sinto-me muito bem com eles. Tenho muitos amigos na literatura, de todas as gerações. Sinto-me muito bem no meio de gente como Mario Benedetti, Francisco Umbral, Manuel Vásquez-Montalban...
Javier Marias é do Real Madrid...
Sim, é adepto do Real Madrid.
...
A verdade é que eu gosto muito de escrever, mas gosto ainda mais de ler. Enfim, se tivesse de escolher entre ser Borges ou ser Maradona, haveria sempre de optar por ser Maradona.
sexta-feira, 23 de março de 2007
Pequenas histórias - 6
Rosa foge
Nunca foi assim, desde tempos – como diriam alguns profetas, perdão, alguns patetas, perdão de novo, alguns poetas, e também poetisas, é claro, apesar de a palavra não ser aconselhada em certos círculos – imemoriais; nunca foi de facto assim, desde tempos imemoriais. Mas agora uma rosa foge, e foge para o lado esquerdo. Na verdade, a fuga é para a direita, isto vendo as coisas a partir da roseira, que tem uma parede atrás. Toma-se o lado esquerdo como o que acolheu a fuga por via das tendências eleitorais, ou antes, eleitoralistas, como diriam alguns profetas, ou eleitoraleiras, como diria um, e apenas um, dos patetas (poetas e poetisas, neste caso, não têm por hábito pronunciar-se).
Nunca foi assim, desde tempos – como diriam alguns profetas, perdão, alguns patetas, perdão de novo, alguns poetas, e também poetisas, é claro, apesar de a palavra não ser aconselhada em certos círculos – imemoriais; nunca foi de facto assim, desde tempos imemoriais. Mas agora uma rosa foge, e foge para o lado esquerdo. Na verdade, a fuga é para a direita, isto vendo as coisas a partir da roseira, que tem uma parede atrás. Toma-se o lado esquerdo como o que acolheu a fuga por via das tendências eleitorais, ou antes, eleitoralistas, como diriam alguns profetas, ou eleitoraleiras, como diria um, e apenas um, dos patetas (poetas e poetisas, neste caso, não têm por hábito pronunciar-se).
Alarvis affair
Pensava não referir mais o assunto aqui, mas tem de ser. Soube ontem que afinal aquela parvoíce do Algarve com dois éles poderia ter dado noutra coisa. Parece que em discussão estiveram três alternativas: o tal «Allgarve», um estranho «Algarvis» e um estranhíssimo «Algarve Affair». Soube também (tinha-me passado completamente ao lado) que o mesmo Pinho dos dois éles (e respectiva tropa, obviamente) já no ano passado tinha feito algo parecido, numa campanha para o país todo, intitulada «Portugall Summer» (ao que se diz, nas duas primeiras semanas de Agosto, já o «summer» ia adiantado, terão sido torrados um milhão e meio de euros).
quinta-feira, 22 de março de 2007
De novo segunda edição
De novo segunda edição, de novo com um ministro (???). Há dias fiz segunda edição com Correia de Campos, o que nos quer tratar da saúde, agora faço com Manuel Pinho, o das inovações (ou quem sabe, por exemplo, das iNoVaÇõEs). Repito um post sobre ele (de 14 de Outubro de 2006). Razão para a repetição: aquela idiotice do Algarve com dois éles que deu em alarve, para o ministro, já se vê (ver post «Alarve», de 17 deste mês); Pinho subverteu o nome da minha região, mas eu já em tempos tinha subvertido o nome de Pinho (talvez por isso a vingançazita, à má fila, na minha região, em vez de ser apenas em mim). Eis o post…
Fidel Pinho
O ministro da Economia, Manuel Pinho, anunciou o fim da crise em Portugal; foi ontem, de modo que tudo deve ter mesmo melhorado de um dia para o outro. Lembro-me de que há poucos anos, em Cuba, através de um diploma do governo, foi decretada a alegria em toda a ilha a partir do dia da sua publicação (e o diploma obrigava toda a gente a ficar alegre, senão…)
Fidel Pinho
O ministro da Economia, Manuel Pinho, anunciou o fim da crise em Portugal; foi ontem, de modo que tudo deve ter mesmo melhorado de um dia para o outro. Lembro-me de que há poucos anos, em Cuba, através de um diploma do governo, foi decretada a alegria em toda a ilha a partir do dia da sua publicação (e o diploma obrigava toda a gente a ficar alegre, senão…)
Pequenas histórias - 5
Resistiu um pequeno ramo, e três chamas regressam pela cinza dentro, como se quisessem fazer dela nova cinza, na volta cinza mais pura, não vá – quando chegarem as três ao fim da aventura, a muitos hectómetros dali, já bem nos arrabaldes do inferno –, não vá, dizia, o diabo tecê-las.
terça-feira, 20 de março de 2007
Textos sobre livros - 20
Livro: «Verão em Baden-Baden», de Leonid Tsípkin (Gótica, 215 pp.)
A imortalidade
O romance que deslumbrou Susan Sontag, ao ponto de considerá-lo uma das «obras mais belas, exaltantes e originais» da literatura do século XX. Bastam as primeiras frases para se perceber a razão desse deslumbramento. Frases longas, onde se respira.
Leonid Tsípskin não viveu o tempo suficiente para assistir à publicação em livro de «Verão em Baden-Baden». Morreu em 1982, no dia em que completava 66 anos, vítima de um ataque cardíaco. Era um conceituado investigador na área da Medicina, mas em 1977, quando o filho e a nora conseguiram vistos de saída da então URSS, foi despromovido para investigador principiante, vendo o salário reduzido em 75%. É nesta altura que Tsípkin começa a escrever o romance, terminando-o em 1980. Insiste em sair do país, mas recebe a informação de que nunca será autorizado a emigrar. Em Março de 1982, é informado de que deixava de pertencer ao instituto onde era então um «principiante», exactamente no mesmo dia em que, dos Estados Unidos, o filho lhe transmite a notícia de que «Verão em Baden-Baden» ia ser publicado em fascículos numa revista. O primeiro capítulo sai a 13 de Março, Tsípkin morre uma semana depois, a 20.
Estas são informações da introdução escrita por Susan Sontag, que manteve contactos com o filho e com a nora de Leonid Tsípkin, através dos quais conseguir perceber como foi a vida do escritor e como nos últimos anos ele «criou um pequeno corpo de prosa de um alcance e de uma complexidade cada vez maiores». Tsípkin escreveu pequenos textos, alguns contos e dois romances autobiográficos, «A Ponte Sobre o Norartakir» e «Verão em Baden-Baden». O filho fala da ânsia do pai por escrever, mas refere o receio que ele tinha de enviar os textos para editores ou de os mostrar a outras pessoas fora de um círculo muito restrito, para evitar problemas com o KGB ou perder o emprego.
Foi por isso sem perspectivas de vir a ser publicado que Leonid Tsípkin se dedicou à escrita nos últimos anos de vida (especialmente nos últimos 11); apenas prosa, quando em tempos já se tinha aventurado pela poesia. Talvez tenha sido a literatura o seu refúgio, mesmo sabendo que ela poderia ser apenas isso, um refúgio. E talvez nisto (ou melhor, no resultado, na sua obra) esteja a prova maior do seu amor à literatura. No caso de «Verão em Baden-Baden», isso torna-se duplamente evidente, porque a narrativa de Tsípkin acompanha um dos seus ídolos, Dostoievski (que odiava judeus). Tsípkin, filho de judeus russos, parte de comboio a caminho de Leninegrado (em tempos e de novo agora Sampetersburgo) e tira da maleta o diário de Anna Grigórievna, a jovem mulher de Dostoievski. Não se sabe quando, mas poderá ser uma data qualquer dos anos finais da vida de Tsípkin. É o começo do livro… Algumas linhas passadas, o casal Dostoievski (estão recém-casados) parte de Sampetersburgo, no ano de 1867. Depois, bom, depois é a grande literatura, a descobrir, página a página, frases que parecem não acabar, mas respira-se. Como Tsípkin, ainda hoje, sempre.
A imortalidade
O romance que deslumbrou Susan Sontag, ao ponto de considerá-lo uma das «obras mais belas, exaltantes e originais» da literatura do século XX. Bastam as primeiras frases para se perceber a razão desse deslumbramento. Frases longas, onde se respira.
Leonid Tsípskin não viveu o tempo suficiente para assistir à publicação em livro de «Verão em Baden-Baden». Morreu em 1982, no dia em que completava 66 anos, vítima de um ataque cardíaco. Era um conceituado investigador na área da Medicina, mas em 1977, quando o filho e a nora conseguiram vistos de saída da então URSS, foi despromovido para investigador principiante, vendo o salário reduzido em 75%. É nesta altura que Tsípkin começa a escrever o romance, terminando-o em 1980. Insiste em sair do país, mas recebe a informação de que nunca será autorizado a emigrar. Em Março de 1982, é informado de que deixava de pertencer ao instituto onde era então um «principiante», exactamente no mesmo dia em que, dos Estados Unidos, o filho lhe transmite a notícia de que «Verão em Baden-Baden» ia ser publicado em fascículos numa revista. O primeiro capítulo sai a 13 de Março, Tsípkin morre uma semana depois, a 20.
Estas são informações da introdução escrita por Susan Sontag, que manteve contactos com o filho e com a nora de Leonid Tsípkin, através dos quais conseguir perceber como foi a vida do escritor e como nos últimos anos ele «criou um pequeno corpo de prosa de um alcance e de uma complexidade cada vez maiores». Tsípkin escreveu pequenos textos, alguns contos e dois romances autobiográficos, «A Ponte Sobre o Norartakir» e «Verão em Baden-Baden». O filho fala da ânsia do pai por escrever, mas refere o receio que ele tinha de enviar os textos para editores ou de os mostrar a outras pessoas fora de um círculo muito restrito, para evitar problemas com o KGB ou perder o emprego.
Foi por isso sem perspectivas de vir a ser publicado que Leonid Tsípkin se dedicou à escrita nos últimos anos de vida (especialmente nos últimos 11); apenas prosa, quando em tempos já se tinha aventurado pela poesia. Talvez tenha sido a literatura o seu refúgio, mesmo sabendo que ela poderia ser apenas isso, um refúgio. E talvez nisto (ou melhor, no resultado, na sua obra) esteja a prova maior do seu amor à literatura. No caso de «Verão em Baden-Baden», isso torna-se duplamente evidente, porque a narrativa de Tsípkin acompanha um dos seus ídolos, Dostoievski (que odiava judeus). Tsípkin, filho de judeus russos, parte de comboio a caminho de Leninegrado (em tempos e de novo agora Sampetersburgo) e tira da maleta o diário de Anna Grigórievna, a jovem mulher de Dostoievski. Não se sabe quando, mas poderá ser uma data qualquer dos anos finais da vida de Tsípkin. É o começo do livro… Algumas linhas passadas, o casal Dostoievski (estão recém-casados) parte de Sampetersburgo, no ano de 1867. Depois, bom, depois é a grande literatura, a descobrir, página a página, frases que parecem não acabar, mas respira-se. Como Tsípkin, ainda hoje, sempre.
segunda-feira, 19 de março de 2007
Pequenas histórias - 4
Andam companheiros por perto, a cheirar, a carregar pauzinhos, de olhos nos gatos, aos pulos na ânsia de irem passear para o lago dos patos ou até, com um pouco de sorte, o lago de alguma cegonha perdida das rotas de Alcácer. Mas eu não quero saber. Não estou cá. Tenho a certeza de que não estou cá. Dormi para longe, para uma terra onde os pequenos biscoitos são aos milhares e onde nem exigem que me sente para ter a honra de abocanhá-los. E posso abocanhar aos cinco e aos seis de cada vez nessa terra de maravilhas e perfeições, e sem que por isso me considerem aí um animalzinho fuçanga e exagerado.
A campanha do Algarve com dois éles
Na sequência do post que coloquei aqui no passado Sábado, 17 (intitulado «Alarve»), deixo a seguir o texto de um «requerimento parlamentar» que recebi do deputado algarvio José Mendes Bota, requerimento esse dirigido ao «Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República» e tendo como referência o seguinte: «Allgarve – entre a gralha e a ofensa à identidade cultural de uma região»…
No passado dia 16 de Março, no certame «Algarve Convida», promovido em Lisboa pela Região de Turismo, o ministro da Economia e Inovação fez a apresentação pública de uma campanha promocional do Algarve, anunciada como um «projecto de Valorização do Algarve 2007 e a sua marca».
De forma inesperada, o nome da região foi apresentado de forma desvirtuada, adoptando um anglicismo desajustado, desnecessário e descaracterizador da sua identidade cultural.
As reacções que esta questão suscitou não deixam dúvidas sobre a rejeição que a ideia suscitou na sociedade algarvia, a qual tem manifestado um vivo repúdio por mais esta desconsideração do poder central para com a região que, segundo a pomposa campanha ontem apresentada pelo ministro da Economia e Inovação, deixará de ser conhecida internacionalmente por Algarve, para se passar a chamar «Allgarve».
Os argumentos em sua defesa são insuficientes. Não necessitamos do abcesso inglês «all», para designar «todo o Algarve». Desde sempre, quando se fala do Algarve, está subentendido todo o Algarve, e não apenas uma sua parte.
Há muitas décadas que a marca Algarve está consolidada no mercado, e proceder a esta alteração só poderá servir para destruir um nome que, a par do Vinho do Porto, é dos poucos de que Portugal se pode orgulhar à escala mundial.
Independentemente dos eventuais méritos dos conteúdos da campanha promocional, só o respectivo título é merecedor de uma profunda rejeição.
Não estão em causa os eventos previstos, nem as acções promocionais em si, nem os meios financeiros colocados, sem favor algum, ao serviço da promoção do Algarve. Está em causa, tão-somente, o nome «Allgarve». E é esse que tem de ser removido, pois constitui uma afronta ao bom e verdadeiro nome do Algarve, um golpe na coerência de uma marca consolidada internacionalmente há muitos anos, mais um estrangeirismo descaracterizador da nossa identidade cultural, e uma demonstração de falta de bom gosto e de bom senso.
Como deputado eleito pelo Algarve, requeiro a V. Exa. que se digne obter do governo informação sobre se está ou não disponível para suspender temporariamente esta campanha promocional, até se redefinir um título que reponha a dignidade e o respeito pelo nome da região.
Segue-se local e data (Assembleia da República, 19 de Março de 2007) e o nome do autor do requerimento (José Mendes Bota).
Ali ao lado
Ali na coluna ao lado, mesmo no final, coloquei algumas coisas sobre a «floresta do sul»...
(…) onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos. Corças, aí, nem vê-las, esquilos tão-pouco, e martas ainda menos, tudo animais que eu costumava associar ao Jardim Zoológico de Lisboa. Bom, martas se calhar nem ao Jardim Zoológico. A minha floresta do Sul, a minha floresta de sempre, essa era outra, com escalavardos, com ouriços-cacheiros, com lontras, com escorpiões, dos amarelos e dos pretos, com javalis, até com um ou outro texugo de vez em quando. E nela as pessoas andavam pelos caminhos traçados ao sabor de impulsos de muitos e muitos anos, porque era aí que trabalhavam, ou passavam a caminho do trabalho, ou porque tinham de apanhar uns matos para prepararem a cama dos animais de criação.
(…) onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos. Corças, aí, nem vê-las, esquilos tão-pouco, e martas ainda menos, tudo animais que eu costumava associar ao Jardim Zoológico de Lisboa. Bom, martas se calhar nem ao Jardim Zoológico. A minha floresta do Sul, a minha floresta de sempre, essa era outra, com escalavardos, com ouriços-cacheiros, com lontras, com escorpiões, dos amarelos e dos pretos, com javalis, até com um ou outro texugo de vez em quando. E nela as pessoas andavam pelos caminhos traçados ao sabor de impulsos de muitos e muitos anos, porque era aí que trabalhavam, ou passavam a caminho do trabalho, ou porque tinham de apanhar uns matos para prepararem a cama dos animais de criação.
domingo, 18 de março de 2007
Textos sobre livros - 19
Livro: «A Planície em Chamas», de Juan Rulfo (Cavalo de Ferro, 150 pp.)
O valor de uma galinha
A solidão, a violência e a morte, num conjunto de contos que muita gente já considerou incomparáveis. Como a escrita do seu autor.
Da escrita de Juan Rulfo disse um dia Carlos Fuentes ser «a máxima expressão da literatura mexicana». Também para ele, Rulfo (nascido em 1917, no México, tendo morrido em 1986 na capital do país) era incomparável. Muito se tem falado de que parte da obra que escreveu ficou perdida, nomeadamente contos. Resta a consolação de, além deste volume de contos, «A Planície em Chamas», ter deixado para toda a humanidade o extraordinário romance «Pedro Páramo» (publicado pela primeira vez no México em 1955), que não conheceu edição portuguesa durante décadas (depois de ter sido traduzido em 1969); acabaria por ser editado cá em 2004 (também pela Cavalo de ferro).
Em «A Planície em Chamas» (contos escritos na década de 40 e início da de 50 do século passado), o que se encontra são pobres-diabos, perdidos num mundo onde falta tudo menos a terra seca e dura e o Sol a queimar como fogo. É esse o cenário escolhido por Rulfo para as suas histórias atravessadas pela solidão, pela violência e pela morte. Ou talvez nem se trate de uma escolha, talvez tenha sido a única opção de Rulfo ao colocar no papel as suas personagens. Por onde poderiam elas andar a não ser por sítios assim?
Repare-se no início de alguns dos dezassete contos: «Depois de tantas horas a caminhar sem encontrar nem uma sombra de árvore…», logo o primeiro; «Aqui vai tudo de mal a pior.»; «Natália meteu-se nos braços da mãe e chorou longo tempo…»; «Estou sentado junto do esgoto esperando que as rãs saiam.»; «– Diz-lhes que não me matem, Justino!» É muitas vezes assim, tudo triste, triste, apenas triste. Mas a escrita de Rulfo não envolve o leitor nessa tristeza. Observa-se as personagens, as suas vidas, os seus dramas, e pensa-se. É sobretudo esse o efeito destes contos, fazem pensar, nem que seja ao acompanhar o percurso de um grupo de camponeses pela terra árida da planície que queima como se dela saíssem chamas. «– Ouve lá, Teban, onde conseguiste essa galinha?/ – É a minha – diz ele./ – Não a trazias antes. Onde a compraste, hã?/ – Não a comprei, é a galinha do meu curral./ – Então trouxeste-a de abastecimento, não?/ – Não, trago-a para a cuidar. A minha casa ficou sozinha e sem ninguém para lhe dar de comer; por isso a trouxe. Sempre que saio para longe carrego com ela.» Quanto não pode valer uma galinha para os pobres diabos que Rulfo tornou imortais?
O valor de uma galinha
A solidão, a violência e a morte, num conjunto de contos que muita gente já considerou incomparáveis. Como a escrita do seu autor.
Da escrita de Juan Rulfo disse um dia Carlos Fuentes ser «a máxima expressão da literatura mexicana». Também para ele, Rulfo (nascido em 1917, no México, tendo morrido em 1986 na capital do país) era incomparável. Muito se tem falado de que parte da obra que escreveu ficou perdida, nomeadamente contos. Resta a consolação de, além deste volume de contos, «A Planície em Chamas», ter deixado para toda a humanidade o extraordinário romance «Pedro Páramo» (publicado pela primeira vez no México em 1955), que não conheceu edição portuguesa durante décadas (depois de ter sido traduzido em 1969); acabaria por ser editado cá em 2004 (também pela Cavalo de ferro).
Em «A Planície em Chamas» (contos escritos na década de 40 e início da de 50 do século passado), o que se encontra são pobres-diabos, perdidos num mundo onde falta tudo menos a terra seca e dura e o Sol a queimar como fogo. É esse o cenário escolhido por Rulfo para as suas histórias atravessadas pela solidão, pela violência e pela morte. Ou talvez nem se trate de uma escolha, talvez tenha sido a única opção de Rulfo ao colocar no papel as suas personagens. Por onde poderiam elas andar a não ser por sítios assim?
Repare-se no início de alguns dos dezassete contos: «Depois de tantas horas a caminhar sem encontrar nem uma sombra de árvore…», logo o primeiro; «Aqui vai tudo de mal a pior.»; «Natália meteu-se nos braços da mãe e chorou longo tempo…»; «Estou sentado junto do esgoto esperando que as rãs saiam.»; «– Diz-lhes que não me matem, Justino!» É muitas vezes assim, tudo triste, triste, apenas triste. Mas a escrita de Rulfo não envolve o leitor nessa tristeza. Observa-se as personagens, as suas vidas, os seus dramas, e pensa-se. É sobretudo esse o efeito destes contos, fazem pensar, nem que seja ao acompanhar o percurso de um grupo de camponeses pela terra árida da planície que queima como se dela saíssem chamas. «– Ouve lá, Teban, onde conseguiste essa galinha?/ – É a minha – diz ele./ – Não a trazias antes. Onde a compraste, hã?/ – Não a comprei, é a galinha do meu curral./ – Então trouxeste-a de abastecimento, não?/ – Não, trago-a para a cuidar. A minha casa ficou sozinha e sem ninguém para lhe dar de comer; por isso a trouxe. Sempre que saio para longe carrego com ela.» Quanto não pode valer uma galinha para os pobres diabos que Rulfo tornou imortais?
Pequenas histórias - 3
As folhas, onde estarão elas agora? Que transformações lhes terão chegado? As minhas folhas. Todas. E os ramos pequenos. E os pássaros pequenos desses ramos. E os passarocos dos ramos grandes, águias, mochos, corujas, até dois ou três gatos com manias a raiar a perversão. Nada… Agora o tempo é outro. Nem chove. Nem me molha a águia, perdão, a água mineral. Nem a outra, a que costumava bater à maluca já nem malembra durante quantos meses do ano. Desisto. Já não resisto. Para quê? Para encarar algum dia um fogo? Ou um tarado metido a serrador?
As coisas pela positiva
Porto – 0, Sporting – 1 (Rodrigo Tello). Bom, toda a gente deve ter visto. Por isso, dizer o quê? Pouca coisa… E ainda bem, porque é sinal de que correu tudo pelo melhor. Eu estava à espera de um jogo controlado, talvez um empate a um golo, ou talvez a zero. Mas qualquer coisa me dizia que o Sporting até poderia ganhar. Com o desenrolar do jogo, que vi muito tranquilo (como tinha visto a primeira parte do jogo com o Porto em Alvalade), fui percebendo que as coisas poderiam acabar bem. Mas ao mesmo tempo, e sobretudo depois, já com o jogo ganho, não consegui deixar de pensar nos falhanços que ao longo da época foram arrastando a equipa para esta posição. Mas vamos ver as coisas pela positiva… O jogo de ontem mostrou que é possível o Sporting ter uma equipa competitiva, personalizada, lutadora. Se se mantiver assim, e se tivermos a sorte de os outros perderem uns pontos aqui e ali, ainda poderemos lutar até ao fim.
Uma última nota, sobre os jogadores em relação aos quais tenho escrito coisas muito negativas. Ontem não se notou uma razão para que escreva coisas dessas. Caneira lutou, esforçou-se como os colegas e se falhou um ou outro lance falhou porque não há quem não falhe. Talvez não fosse má ideia fazê-lo jogar – quando jogasse – a central e não por um dos corredores laterais, onde por vezes se torna penoso ver a sua incapacidade ofensiva. Polga… Deu-me que pensar. A mesma capacidade de luta, as mesmas limitações técnicas, mas – não sei por quê – transmitiu uma ideia de segurança, não aquela de que a qualquer momento pode ter uma falha que resulte num golo do adversário; até uma entrada à maluca que teve (nos últimos segundos) me pareceu que foi a única opção possível. Ricardo… Nem uma falha. Aliás, nos últimos jogos não tem falhado e isso até me vai fazendo esquecer os muitos momentos maus que já teve no Sporting. E Custódio, até Custódio… Entrou quase no fim e nem reparei que andasse a passo de caracol como era habitual quando jogava. Ou seja, ontem foi toda a equipa que me deixou impressionado, foram todos os jogadores, melhores e piores, que me conquistaram.
Uma última nota, sobre os jogadores em relação aos quais tenho escrito coisas muito negativas. Ontem não se notou uma razão para que escreva coisas dessas. Caneira lutou, esforçou-se como os colegas e se falhou um ou outro lance falhou porque não há quem não falhe. Talvez não fosse má ideia fazê-lo jogar – quando jogasse – a central e não por um dos corredores laterais, onde por vezes se torna penoso ver a sua incapacidade ofensiva. Polga… Deu-me que pensar. A mesma capacidade de luta, as mesmas limitações técnicas, mas – não sei por quê – transmitiu uma ideia de segurança, não aquela de que a qualquer momento pode ter uma falha que resulte num golo do adversário; até uma entrada à maluca que teve (nos últimos segundos) me pareceu que foi a única opção possível. Ricardo… Nem uma falha. Aliás, nos últimos jogos não tem falhado e isso até me vai fazendo esquecer os muitos momentos maus que já teve no Sporting. E Custódio, até Custódio… Entrou quase no fim e nem reparei que andasse a passo de caracol como era habitual quando jogava. Ou seja, ontem foi toda a equipa que me deixou impressionado, foram todos os jogadores, melhores e piores, que me conquistaram.
sábado, 17 de março de 2007
Alarve
Leio no «Expresso» e custa-me a acreditar… «O ministro da Economia apresentou hoje, em Lisboa, na feira ‘Algarve Convida’, um novo conceito de marketing que o Turismo de Portugal vai desenvolver durante três anos, com um primeiro orçamento de três milhões de euros para 2007. A magia do acrescento de um ‘l’ na palavra Algarve deverá permitir um marketing internacional mais agressivo, usando o ‘all’ – palavra inglesa para tudo – como chamariz para um turismo de qualidade multifacetado no sul do país./ O objectivo, segundo o ministro Manuel Pinho, será a focalização na atracção de turistas para eventos de qualidade artística, para o golfe e para investimento em segundas residências no Algarve.»
Bom, de caminho li também uma coisa da agência Lusa (talvez devesse chamar-se Llusa, para captar a comunicação espanhola e dos países de língua castelhana do outro lado do Atlântico). Refere-se ao deputado algarvio Mendes Bota… «O líder do PSD-Algarve, Mendes Bota, exigiu hoje a suspensão da nova marca Allgarve, apresentada pelo ministro da Economia, até que se redefina outra designação. O social-democrata considera que a actual proposta se trata de uma ‘ofensa’ aos algarvios./ (…)/ Num comunicado divulgado hoje, Mendes Bota classifica a criação da marca como ‘mais um atentado do poder central contra a região’ e defende que há muitas décadas que a marca Algarve está consolidada no mercado./ ‘Proceder a esta alteração só poderá servir para destruir um brand name que, a par do vinho do Porto, é dos poucos de que Portugal se pode orgulhar à escala mundial’, afirma o social-democrata./ Apesar de reconhecer mérito no conteúdo da campanha promocional, Mendes Bota rejeita veementemente o título Allgarve, que considera tratar-se de ‘mais uma descaracterização cultural da região’ e uma manifestação de ‘péssimo gosto’ e ‘falta de bom senso’. Mais, segundo o social-democrata, quando é apresentada por um ministro que, depois de ‘colocar em risco o Algarve às mãos dos magnatas do petróleo’, se permite ‘derramar dinheiro a brincar com o nome do Algarve e dos algarvios’, que passarão a chamar-se ‘all-garvios’./ Mendes Bota pediu ainda a todos os autarcas do PSD representados na Região de Turismo do Algarve que convoquem uma reunião daquele órgão para repudiar a campanha e recusar colaborar com ela, até que seja reposta a ‘dignidade’ e o ‘respeito’ pelo nome da região./ O programa apresentado por Manuel Pinho advém de investimentos da responsabilidade do Turismo de Portugal e destina-se a concretizar um conjunto de eventos de diversas áreas com o objectivo de ‘oferecer experiências marcantes em vários domínios’ aos visitantes./ Por isso, a opção pela marca Allgarve, reflectindo diversidade, glamour e credibilidade, é acompanhada do slogan ‘experiências que marcam’, num programa que vai prolongar-se, pelo menos, por três anos, como garantiram os responsáveis governamentais do sector.»
Se um dia for preciso promover Manuel Pinho no estrangeiro (talvez até não fosse má ideia tentar exportá-lo), poderia também partir-se da palavra «Algarve» para a sua divulgação um pouco por todo o mundo, ou pelo menos naquele que por vezes é qualificado como terceiro. Só que em vez de se acrescentar uma letra poder-se-ia retirar uma letra, no caso o «g». Depois, bastaria fazer uns folhetos, e talvez nem fosse preciso pensar muito; «Alarve – Experiências que Marcam» poderia servir muito bem.
Bom, de caminho li também uma coisa da agência Lusa (talvez devesse chamar-se Llusa, para captar a comunicação espanhola e dos países de língua castelhana do outro lado do Atlântico). Refere-se ao deputado algarvio Mendes Bota… «O líder do PSD-Algarve, Mendes Bota, exigiu hoje a suspensão da nova marca Allgarve, apresentada pelo ministro da Economia, até que se redefina outra designação. O social-democrata considera que a actual proposta se trata de uma ‘ofensa’ aos algarvios./ (…)/ Num comunicado divulgado hoje, Mendes Bota classifica a criação da marca como ‘mais um atentado do poder central contra a região’ e defende que há muitas décadas que a marca Algarve está consolidada no mercado./ ‘Proceder a esta alteração só poderá servir para destruir um brand name que, a par do vinho do Porto, é dos poucos de que Portugal se pode orgulhar à escala mundial’, afirma o social-democrata./ Apesar de reconhecer mérito no conteúdo da campanha promocional, Mendes Bota rejeita veementemente o título Allgarve, que considera tratar-se de ‘mais uma descaracterização cultural da região’ e uma manifestação de ‘péssimo gosto’ e ‘falta de bom senso’. Mais, segundo o social-democrata, quando é apresentada por um ministro que, depois de ‘colocar em risco o Algarve às mãos dos magnatas do petróleo’, se permite ‘derramar dinheiro a brincar com o nome do Algarve e dos algarvios’, que passarão a chamar-se ‘all-garvios’./ Mendes Bota pediu ainda a todos os autarcas do PSD representados na Região de Turismo do Algarve que convoquem uma reunião daquele órgão para repudiar a campanha e recusar colaborar com ela, até que seja reposta a ‘dignidade’ e o ‘respeito’ pelo nome da região./ O programa apresentado por Manuel Pinho advém de investimentos da responsabilidade do Turismo de Portugal e destina-se a concretizar um conjunto de eventos de diversas áreas com o objectivo de ‘oferecer experiências marcantes em vários domínios’ aos visitantes./ Por isso, a opção pela marca Allgarve, reflectindo diversidade, glamour e credibilidade, é acompanhada do slogan ‘experiências que marcam’, num programa que vai prolongar-se, pelo menos, por três anos, como garantiram os responsáveis governamentais do sector.»
Se um dia for preciso promover Manuel Pinho no estrangeiro (talvez até não fosse má ideia tentar exportá-lo), poderia também partir-se da palavra «Algarve» para a sua divulgação um pouco por todo o mundo, ou pelo menos naquele que por vezes é qualificado como terceiro. Só que em vez de se acrescentar uma letra poder-se-ia retirar uma letra, no caso o «g». Depois, bastaria fazer uns folhetos, e talvez nem fosse preciso pensar muito; «Alarve – Experiências que Marcam» poderia servir muito bem.
Pequenas histórias - 2
Lá adiante, onde não chega o teu olhar, bem nas profundezas, termina uma corda invisível, e que não se sente, e na qual ninguém tropeça. Prende alguns anjos a esta terra triste, para que não se afastem, para que não se ponham com ideias de ir atrás de qualquer peixe que lhes pareça mais agradável, ou de alguma sereia que goste de perseguições. Já não teríamos anjos perto da costa sem a ajuda da velha âncora.
A propósito
A propósito do post anterior, recupero agora um texto que escrevi em finais de Outubro de 2001. É o suporte de uma crónica de rádio (numa colaboração semanal que mantive durante três épocas do nosso futebol). Dias da Cunha andava pelo Sporting, Pinto da Costa pelo Porto (obviamente), João Malheiro pelo Benfica (mas não era presidente) e Boloni pelo Sporting (a treinar).
O presidente que não é…
O presidente que não é mais do que um D. Quixote do pontapé na bola, o doutor Dias da Cunha, lá vai insistindo em levar a água aos moinhos de vento. Se antes contava anedotas do Entreposto, agora vai narrando a qualquer jornalista que lhe apareça pela frente toda a sua saga em nome do monarca que tem muita honra em servir, o senhor Pinto da Costa. Tanta honra, ou mais, até, do que aquela que parece ter o senhor João Malheiro na defesa das águias, que depois de terem estado em vias de extinção parecem agora vir a recuperar.
O famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha investia de lança em riste contra os moinhos de vento que só ele via. O outro, o doutor Dias da Cunha, sem lança mas com palavreado de gume bem amolado e com um balde de água em cada mão, lá anda agora a recuperar os velhos romances de cavalariça, perdão, de cavalaria. Carrega água, carrega água, e depois fica de boca aberta quando lhe perguntam onde estão as azenhas, que ninguém mais as vê a não ser ele. «Azenhas?!», acaba por estranhar o doutor Dias da Cunha. Eu cá só vejo entrepostos, ou antes, só vejo moinhos de vento, e é para lá que carrego a minha água, com um balde em cada mão!
Às vezes, algum jornalista mais incisivo ainda lhe pergunta pelo Sancho Pança, mas ele, nada, nem se descose. «Sancho Pança?! Qual Sancho Pança, amigo?», pergunta com ar assarapantado. E o jornalista: «Então, o seu escudeiro...» E o doutor Dias da Cunha: «Escudeiro, mas que escudeiro, ainda por cima agora, em tempos de morte do escudo e de chegada do euro!» Só depois de muitas insistências é que acabará por dizer: «Bem, isso do Sancho Pança, se me está a falar da substituição do senhor Boloni, o melhor é perguntar na sade; eu não sei de nada, mas podem muito bem andar em negociações com o senhor Marinho Peres.»
O presidente que não é…
O presidente que não é mais do que um D. Quixote do pontapé na bola, o doutor Dias da Cunha, lá vai insistindo em levar a água aos moinhos de vento. Se antes contava anedotas do Entreposto, agora vai narrando a qualquer jornalista que lhe apareça pela frente toda a sua saga em nome do monarca que tem muita honra em servir, o senhor Pinto da Costa. Tanta honra, ou mais, até, do que aquela que parece ter o senhor João Malheiro na defesa das águias, que depois de terem estado em vias de extinção parecem agora vir a recuperar.
O famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha investia de lança em riste contra os moinhos de vento que só ele via. O outro, o doutor Dias da Cunha, sem lança mas com palavreado de gume bem amolado e com um balde de água em cada mão, lá anda agora a recuperar os velhos romances de cavalariça, perdão, de cavalaria. Carrega água, carrega água, e depois fica de boca aberta quando lhe perguntam onde estão as azenhas, que ninguém mais as vê a não ser ele. «Azenhas?!», acaba por estranhar o doutor Dias da Cunha. Eu cá só vejo entrepostos, ou antes, só vejo moinhos de vento, e é para lá que carrego a minha água, com um balde em cada mão!
Às vezes, algum jornalista mais incisivo ainda lhe pergunta pelo Sancho Pança, mas ele, nada, nem se descose. «Sancho Pança?! Qual Sancho Pança, amigo?», pergunta com ar assarapantado. E o jornalista: «Então, o seu escudeiro...» E o doutor Dias da Cunha: «Escudeiro, mas que escudeiro, ainda por cima agora, em tempos de morte do escudo e de chegada do euro!» Só depois de muitas insistências é que acabará por dizer: «Bem, isso do Sancho Pança, se me está a falar da substituição do senhor Boloni, o melhor é perguntar na sade; eu não sei de nada, mas podem muito bem andar em negociações com o senhor Marinho Peres.»
sexta-feira, 16 de março de 2007
Tinha de copiar
Isto eu tinha de copiar… Um comentário do meu amigo Carlos Antunes (um grande sportinguista, como provavelmente já não há muitos) no blog «O Leão da Estrela» (link ali nos «Percursos Habituais»). É o seguinte, a propósito das coisas que o ex-presidente do Sporting (Dias da Cunha) disse ontem do actual (Soares Franco), de ter muito para revelar, mas não para já…
«Espero que o Dr. Dias da Cunha, quando resolver falar, explique então:
- como deu cabo de um dos principais grupos económicos portugueses (Entreposto), criado a partir de Moçambique nos anos 60 pelo seu pai, o senhor Dias da Cunha, a ponto de ter sido corrido da gestão desse mesmo grupo pelo Dr. Gamito (CIP), um anónimo professor da cidade da Beira (Moçambique) contratado pelo pai do Dr. Dias da Cunha para o ajudar na gestão das empresas, diferendo que ainda hoje se arrasta nos tribunais portugueses;
- como ao mesmo tempo que quase ia desbaratando o grupo criado pelo pai se tornou no maior accionista privado/ não institucional do Grupo BCP, a ponto de ter assento no conselho superior desta instituição bancária;
- por que é que (será que tudo isto não tem ligação) tornou o Sporting refém do Grupo BCP, avalizando a título pessoal o endividamento quase exclusivo do Sporting perante aquele grupo na construção das infra-estruturas desportivas (Academia e Estádio), a ponto de o clube deixar de ter qualquer margem de manobra perante o BCP, que se dá ao luxo de impor as regras de contratação de jogadores (em que a eventual mais-valia de venda de jogadores só pode ser destinada à compra de novos atletas uma vez previamente satisfeitos os compromissos com aquela instituição bancária);
- se, no fundo, esta fúria do Dr. Dias da Cunha contra o Dr. Soares Franco mais não é do que uma luta dentro do Sporting entre o Grupo BCP (representado pelo Dr. Dias da Cunha) e o Grupo BES (representado pelo Dr. Soares Franco).»
«Espero que o Dr. Dias da Cunha, quando resolver falar, explique então:
- como deu cabo de um dos principais grupos económicos portugueses (Entreposto), criado a partir de Moçambique nos anos 60 pelo seu pai, o senhor Dias da Cunha, a ponto de ter sido corrido da gestão desse mesmo grupo pelo Dr. Gamito (CIP), um anónimo professor da cidade da Beira (Moçambique) contratado pelo pai do Dr. Dias da Cunha para o ajudar na gestão das empresas, diferendo que ainda hoje se arrasta nos tribunais portugueses;
- como ao mesmo tempo que quase ia desbaratando o grupo criado pelo pai se tornou no maior accionista privado/ não institucional do Grupo BCP, a ponto de ter assento no conselho superior desta instituição bancária;
- por que é que (será que tudo isto não tem ligação) tornou o Sporting refém do Grupo BCP, avalizando a título pessoal o endividamento quase exclusivo do Sporting perante aquele grupo na construção das infra-estruturas desportivas (Academia e Estádio), a ponto de o clube deixar de ter qualquer margem de manobra perante o BCP, que se dá ao luxo de impor as regras de contratação de jogadores (em que a eventual mais-valia de venda de jogadores só pode ser destinada à compra de novos atletas uma vez previamente satisfeitos os compromissos com aquela instituição bancária);
- se, no fundo, esta fúria do Dr. Dias da Cunha contra o Dr. Soares Franco mais não é do que uma luta dentro do Sporting entre o Grupo BCP (representado pelo Dr. Dias da Cunha) e o Grupo BES (representado pelo Dr. Soares Franco).»
quinta-feira, 15 de março de 2007
Pequenas histórias - 1
de braços longos
As vacas, guardadas pelas árvores de braços longos, enquanto não chegam nem o maioral nem o cão, cansados, os dois muito cansados das voltas que foram dar à cidade, o maioral nos departamentos de subsídios – à criação, ao desenvolvimento, à farinha e, entre outros, à boa compleição – e o cão em coisas mais terra-a-terra, como os caixotes de lixo ou alguma sarjeta bem abastecida. As árvores fazem-se obedecer, em silêncio, como se mandassem na planície por simples determinação dos deuses. E nem uma cobra sequer o desconhecesse.
As vacas, guardadas pelas árvores de braços longos, enquanto não chegam nem o maioral nem o cão, cansados, os dois muito cansados das voltas que foram dar à cidade, o maioral nos departamentos de subsídios – à criação, ao desenvolvimento, à farinha e, entre outros, à boa compleição – e o cão em coisas mais terra-a-terra, como os caixotes de lixo ou alguma sarjeta bem abastecida. As árvores fazem-se obedecer, em silêncio, como se mandassem na planície por simples determinação dos deuses. E nem uma cobra sequer o desconhecesse.
Numa rua de Évora
Numa rua de Évora, um homem a caminhar. Calmamente. Tem uns livros debaixo do braço; pelo menos é essa a ideia que dá. A verdade é que não se percebe bem o que leva. Já comecei a habituar-me a esta imagem, ou melhor, a este bocadinho de imagem. «A livraria do senhor Sapinho Júnior ficava perto da Praça do Giraldo, o centro da cidade. Eu imaginava que seria numa das muitas ruelas que pareciam esperar pelos transeuntes para de repente os aprisionarem com um avanço das paredes dos edifícios, que nalgumas zonas tinham pouco mais de dois metros a separá-las.»
quarta-feira, 14 de março de 2007
Uma entrevista
Não é a entrevista que fiz com o Ondjaki, que referi no post anterior, mas uma outra. Uma vez entrevistei a Margarida Rebelo Pinto para a revista que dirijo («Pessoal»). Foi no início de 2004, tinha acabado de sair o seu romance «I'm In Love With a Pop Star». Começava assim…
Margarida Rebelo Pinto
«Há sempre um Tulius Detritus»
Tulius Detritus, esclareça-se, para quem não leu «A Grande Zaragata», de Asterix, é «uma personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia». O esclarecimento tem por base uma opinião de Margarida Rebelo Pinto, quando fala do ambiente que se vive em muitas empresas. Conheceu poucas, especialmente das grandes, onde o ambiente fosse saudável, e mesmo nessas havia sempre o tal Tulius Detritus.
Mas isso foi há alguns anos, ou melhor, há alguns anos atrás, como agora existe muito quem diga no Portugal pós-modernista. Margarida Rebelo Pinto andava então pelo mundo das empresas, mas agora, nesse Portugal pós-modernista, já escritora e com vendas a tocar o meio milhão de exemplares, é ela o pomo da discórdia. Não porque se comporte como a personagem da «Zaragata» de Asterix, mas porque por mais leitores que tenha há quem não lhe reconheça o mérito. «Vulgarólogos» e «impotentes literários», assim os caracteriza uma mulher que fala da sua carreira como se estivesse a apresentar um plano de acção para uma empresa a sério.
Estamos numa publicação ligada a temas de gestão, portanto, ao mundo das empresas. Esse mundo raramente aparece reflectido na literatura portuguesa. O que acha que contribui para que ele não seja um cenário literário, digamos assim, tradicional?
Os escritores portugueses, em geral, vivem sob um certo isolamento e há uma cultura, ou ditadura, literária que dita os temas e os ambientes sobre os quais se deve escrever para se ser reconhecido. Nisso, como em tantas outras coisas, o país e a sua cultura estão atrasados e são ainda muito provincianos.
Os seus livros são um pouco uma excepção. Neles desfilam personagens que trabalham, que têm profissões, não apenas o costumeiro médico, ou o professor, ou o empregado de escritório, que às vezes dá para tudo... O que é que a levou a tomar essa opção?
Eu escrevo sobre o que conheço; como trabalhei mais de 10 anos na imprensa e em agências multinacionais de publicidade, é normal que vá buscar a esses ambientes personagens que, afinal, têm a ver com a nossa existência quotidiana.
E que mundo é este das empresas, para si? Uma personagem sua dizia a certa altura: «quando olho para trás e me lembro que dei sete anos da minha vida às maiores multinacionais do mercado até me dá náuseas.» Será um mundo saudável?
De forma alguma. As empresas podem ser verdadeiros infernos, se os líderes não as souberem gerir do ponto de vista humano. E não há nada mais difícil de gerir do que pessoas… Conheci poucas empresas grandes com ambiente saudável e mesmo nessas havia sempre um Tulius Detritus – aquela personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia em «A Grande Zaragata», do Asterix. Por outro lado, há pequenas e médias empresas muito saudáveis, onde o factor humano é uma prioridade. A Oficina do Livro, por exemplo, é assim: toda a gente gosta do que faz, sabe qual o seu papel, há espírito de equipa e de entreajuda. Mas são pouco mais de 10 pessoas.
Bom, a entrevista não acaba assim. Há muito mais. Está a versão completa no portal «RHonline», mais concretamente aqui.
Margarida Rebelo Pinto
«Há sempre um Tulius Detritus»
Tulius Detritus, esclareça-se, para quem não leu «A Grande Zaragata», de Asterix, é «uma personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia». O esclarecimento tem por base uma opinião de Margarida Rebelo Pinto, quando fala do ambiente que se vive em muitas empresas. Conheceu poucas, especialmente das grandes, onde o ambiente fosse saudável, e mesmo nessas havia sempre o tal Tulius Detritus.
Mas isso foi há alguns anos, ou melhor, há alguns anos atrás, como agora existe muito quem diga no Portugal pós-modernista. Margarida Rebelo Pinto andava então pelo mundo das empresas, mas agora, nesse Portugal pós-modernista, já escritora e com vendas a tocar o meio milhão de exemplares, é ela o pomo da discórdia. Não porque se comporte como a personagem da «Zaragata» de Asterix, mas porque por mais leitores que tenha há quem não lhe reconheça o mérito. «Vulgarólogos» e «impotentes literários», assim os caracteriza uma mulher que fala da sua carreira como se estivesse a apresentar um plano de acção para uma empresa a sério.
Estamos numa publicação ligada a temas de gestão, portanto, ao mundo das empresas. Esse mundo raramente aparece reflectido na literatura portuguesa. O que acha que contribui para que ele não seja um cenário literário, digamos assim, tradicional?
Os escritores portugueses, em geral, vivem sob um certo isolamento e há uma cultura, ou ditadura, literária que dita os temas e os ambientes sobre os quais se deve escrever para se ser reconhecido. Nisso, como em tantas outras coisas, o país e a sua cultura estão atrasados e são ainda muito provincianos.
Os seus livros são um pouco uma excepção. Neles desfilam personagens que trabalham, que têm profissões, não apenas o costumeiro médico, ou o professor, ou o empregado de escritório, que às vezes dá para tudo... O que é que a levou a tomar essa opção?
Eu escrevo sobre o que conheço; como trabalhei mais de 10 anos na imprensa e em agências multinacionais de publicidade, é normal que vá buscar a esses ambientes personagens que, afinal, têm a ver com a nossa existência quotidiana.
E que mundo é este das empresas, para si? Uma personagem sua dizia a certa altura: «quando olho para trás e me lembro que dei sete anos da minha vida às maiores multinacionais do mercado até me dá náuseas.» Será um mundo saudável?
De forma alguma. As empresas podem ser verdadeiros infernos, se os líderes não as souberem gerir do ponto de vista humano. E não há nada mais difícil de gerir do que pessoas… Conheci poucas empresas grandes com ambiente saudável e mesmo nessas havia sempre um Tulius Detritus – aquela personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia em «A Grande Zaragata», do Asterix. Por outro lado, há pequenas e médias empresas muito saudáveis, onde o factor humano é uma prioridade. A Oficina do Livro, por exemplo, é assim: toda a gente gosta do que faz, sabe qual o seu papel, há espírito de equipa e de entreajuda. Mas são pouco mais de 10 pessoas.
Bom, a entrevista não acaba assim. Há muito mais. Está a versão completa no portal «RHonline», mais concretamente aqui.
segunda-feira, 12 de março de 2007
Textos sobre livros – 18
A propósito do post ali de baixo, com mais um bocadinho do meu livro… Entre tantos escritores que lá aparecem está o angolano Ondjaki. A certa altura, por exemplo, alguém diz assim: «Bom, eu queria resolver logo o assunto do escritor Ondjaki, mas surgiu aqui uma situação inesperada. Posso voltar a ligar-lhe um pouco mais tarde?» Eu uma vez escrevi sobre um livro de Ondjaki, e antes já o tinha entrevistado. Deixo a seguir o texto sobre o livro, o último que ele publicou. A entrevista, bom, essa pode ser que um dia a coloque aqui.
Livro: «E Se Amanhã o Medo», de Ondjaki (Caminho, 102 pp.)
Um sorriso leve
Segundo livro de contos de Ondjaki, um jovem autor de Angola que nos últimos anos tem vindo a publicar com frequência, entre ficção, poesia e até uma narrativa para crianças. Pequenas histórias plenas de magia, desembaraço e imaginação que nos fazem quase sempre chegar um sorriso.
Uma das vinte histórias de «E Se Amanhã o Medo» chama-se «Amarela». Pedi ao autor se ele a podia escrever para uma revista que dirijo e ele acedeu. Saiu há alguns meses e na altura, como agora, maravilhou-me. Trata de uma «consulta de viajante» e eu ouvi Ondjaki contá-la há pouco mais de um ano [escrevi este texto em meados de 2005], num convento que fica no alto de uma colina, em Montemor-o-Novo. O debate era sobre viagens e Ondjaki, na primeira intervenção, que se pretendia curta, falou dessa consulta, feita antes de uma viagem. Era para falar pouco, mas acabou por falar muito, pois contou a história, deixando a assistência maravilhada. Creio que algumas pessoas foram comprar o seu romance acabado de sair na altura, «Quantas Madrugadas Tem a Noite», à venda numa feira do livro que estava a decorrer no convento, pela maravilha de terem ouvido aquele contador de histórias, um contador que depois foi convidado para integrar a apresentação de um livro de Clara Pinto Correia onde participaram a autora e José Eduardo Agualusa. E assobiou, fartou-se de assobiar enquanto Clara Pinto Correia cantava. E antes, já me esquecia, durante o debate, já tinha descoberto ali, em directo, que era primo de um dos outros participantes, o médico Fernando Nobre, presidente da Assistência Médica Internacional (AMI).
Tudo isto se passou em duas horas, uma sucessão de acontecimentos. A mesma sensação fica de «E Se Amanhã o Medo»; há sempre coisas a acontecer com Ondjaki, e ele se quiser escreve uma história logo a seguir. Poderia ser um contador de histórias, contando-as a toda a hora. A imaginação não pára. Vi-o, também em Montemor-o-Novo, numa escola, a apresentar o seu livro infantil, «Ynari, a Menina das Cinco Tranças», e ele contou aos miúdos uma história de um amigo de infância que saltava de guarda-chuva de uma janela alta, fazendo de pára-quedista. Acredito que um dia hei-de vê-la num livro, em algumas páginas, ou pequenina, bem pequenina, como a da filha de um piloto japonês que em «E Se Amanhã o Medo» me fascinou. O piloto preparava-se para o derradeiro voo. Ao despedir-se da família «crê-se que chegou a dizer: Bem, é certo que não voltarão a ver-me!» Mas «a filha mais nova, a que menos chorava», disse que haveria sempre de voltar a vê-lo, nos seus sonhos. «O piloto japonês sorriu.» Deve ter sido um sorriso leve, pensativo, como aqueles que nos chegam no final de muitas das histórias deste livro.
Livro: «E Se Amanhã o Medo», de Ondjaki (Caminho, 102 pp.)
Um sorriso leve
Segundo livro de contos de Ondjaki, um jovem autor de Angola que nos últimos anos tem vindo a publicar com frequência, entre ficção, poesia e até uma narrativa para crianças. Pequenas histórias plenas de magia, desembaraço e imaginação que nos fazem quase sempre chegar um sorriso.
Uma das vinte histórias de «E Se Amanhã o Medo» chama-se «Amarela». Pedi ao autor se ele a podia escrever para uma revista que dirijo e ele acedeu. Saiu há alguns meses e na altura, como agora, maravilhou-me. Trata de uma «consulta de viajante» e eu ouvi Ondjaki contá-la há pouco mais de um ano [escrevi este texto em meados de 2005], num convento que fica no alto de uma colina, em Montemor-o-Novo. O debate era sobre viagens e Ondjaki, na primeira intervenção, que se pretendia curta, falou dessa consulta, feita antes de uma viagem. Era para falar pouco, mas acabou por falar muito, pois contou a história, deixando a assistência maravilhada. Creio que algumas pessoas foram comprar o seu romance acabado de sair na altura, «Quantas Madrugadas Tem a Noite», à venda numa feira do livro que estava a decorrer no convento, pela maravilha de terem ouvido aquele contador de histórias, um contador que depois foi convidado para integrar a apresentação de um livro de Clara Pinto Correia onde participaram a autora e José Eduardo Agualusa. E assobiou, fartou-se de assobiar enquanto Clara Pinto Correia cantava. E antes, já me esquecia, durante o debate, já tinha descoberto ali, em directo, que era primo de um dos outros participantes, o médico Fernando Nobre, presidente da Assistência Médica Internacional (AMI).
Tudo isto se passou em duas horas, uma sucessão de acontecimentos. A mesma sensação fica de «E Se Amanhã o Medo»; há sempre coisas a acontecer com Ondjaki, e ele se quiser escreve uma história logo a seguir. Poderia ser um contador de histórias, contando-as a toda a hora. A imaginação não pára. Vi-o, também em Montemor-o-Novo, numa escola, a apresentar o seu livro infantil, «Ynari, a Menina das Cinco Tranças», e ele contou aos miúdos uma história de um amigo de infância que saltava de guarda-chuva de uma janela alta, fazendo de pára-quedista. Acredito que um dia hei-de vê-la num livro, em algumas páginas, ou pequenina, bem pequenina, como a da filha de um piloto japonês que em «E Se Amanhã o Medo» me fascinou. O piloto preparava-se para o derradeiro voo. Ao despedir-se da família «crê-se que chegou a dizer: Bem, é certo que não voltarão a ver-me!» Mas «a filha mais nova, a que menos chorava», disse que haveria sempre de voltar a vê-lo, nos seus sonhos. «O piloto japonês sorriu.» Deve ter sido um sorriso leve, pensativo, como aqueles que nos chegam no final de muitas das histórias deste livro.
domingo, 11 de março de 2007
Os montes mesmo a sério
Mais um bocadinho do meu romance que sairá no próximo mês de Maio (ed. AMBAR, colecção «Literatura Universal»). Já escrevi aqui que se passa no Alentejo, nomeadamente em Évora e também Montemor-o-Novo, mas por vezes acontecem umas saídas, para Lisboa, para Santarém, até para a minha terra, nas serranias do Algarve (com montes mesmo a sério, como os da foto). Por exemplo:
(...) Já era o Alentejo próximo da serra algarvia, com uns montes de vez em quando, antes dos montes mesmo a sério da Serra de Monchique; aqueles montes que a par com os da Serra do Caldeirão pareciam querer proteger o Algarve de alguma doença que a planície lhe pudesse pegar, ou como se quisessem eles mesmos não deixar saltar para a planície algo de que tivessem orgulho, que quisessem à força de rochas e terra, tanta terra, guardar apenas para as gentes do extremo sul e que nem pelas estradas, ou pela auto-estrada, fosse capaz de passar. Os montes grandes da Serra de Monchique, despidos pelos incêndios dos últimos anos, despidos a cada Verão, com as chamas a queimarem perante os olhares dos mirones que já começavam a criar a moda do turismo do fogo, perante os olhares dos bombeiros que só as combatiam no resguardo das estradas de alcatrão, perante os olhares de cada político pulha, daqueles que andavam de um lado para o outro a fazer marcação cerrada às câmaras das televisões e de faro fixado num qualquer odor que à pressa imaginavam libertar-se dos gravadores dos jornalistas. (…)
(...) Já era o Alentejo próximo da serra algarvia, com uns montes de vez em quando, antes dos montes mesmo a sério da Serra de Monchique; aqueles montes que a par com os da Serra do Caldeirão pareciam querer proteger o Algarve de alguma doença que a planície lhe pudesse pegar, ou como se quisessem eles mesmos não deixar saltar para a planície algo de que tivessem orgulho, que quisessem à força de rochas e terra, tanta terra, guardar apenas para as gentes do extremo sul e que nem pelas estradas, ou pela auto-estrada, fosse capaz de passar. Os montes grandes da Serra de Monchique, despidos pelos incêndios dos últimos anos, despidos a cada Verão, com as chamas a queimarem perante os olhares dos mirones que já começavam a criar a moda do turismo do fogo, perante os olhares dos bombeiros que só as combatiam no resguardo das estradas de alcatrão, perante os olhares de cada político pulha, daqueles que andavam de um lado para o outro a fazer marcação cerrada às câmaras das televisões e de faro fixado num qualquer odor que à pressa imaginavam libertar-se dos gravadores dos jornalistas. (…)
sábado, 10 de março de 2007
A realidade
De volta à realidade, depois da ficção ali de baixo… Sporting – 3 (João Moutinho, Yannick Djalo 2), Estrela da Amadora – 1. Dá gosto ver um jogador normal (Abel) no lugar de Caneira (castigado para este jogo); a mesma coisa para Miguel Veloso (pode ser que Custódio tenha ficado mesmo esquecido e acabe por ser transferido para algum clube que vá na conversa); e Polga, será que enquanto estiver no plantel alguma vez o veremos trocado por um verdadeiro defesa central?
Justificar os ordenados
Paulo Bento, como há dias referi, agora deu-lhe para a asneira. Citado pelo «Record», disse que «considera que a melhor forma dos [de os] jogadores leoninos ultrapassarem o incómodo de ver os vencimentos divulgados na imprensa» seria «’justificarem em campo aquilo que ganham’».
Imaginemos então que justificavam já com o Estrela da Amadora. Por exemplo, uma equipa habitual de Paulo Bento… Ricardo (Rui Patrício aos 80 minutos); Caneira, Polga (Miguel Veloso aos 89 minutos), Tonel e Tello; Custódio (cap.), João Moutinho, Romagnoli e Nani (Carlos Martins aos 20 minutos); Liedson e Bueno.
Imagine-se o que poderia acontecer no jogo de hoje, se todos justificassem o que ganham… Poderia o Sporting ganhar, por exemplo, por seis a um? Talvez. E as notas seguintes, poderiam elas ser bem mais do que apenas um sonho? De novo talvez.
- Liedson (110.000 euros): cinco minutos em campo, dois golos; pode-se perguntar o que teria acontecido ao Estrela da Amadora se o árbitro não lhe tivesse dado ordem de expulsão.
- Bueno (73.000 euros): foi um autêntico leão; sozinho no ataque depois do vermelho a Liedson (amarelo a festejar o primeiro golo aos três minutos tirando a camisola, segundo amarelo e consequente vermelho por ter tirado os calções no segundo, aos cinco minutos, ainda por cima com um estádio cheio de mulheres); mesmo sozinho, Bueno desbaratou a defesa adversária, marcou um golo e ainda atirou três bolas ao poste e uma à barra; não se percebe como é que era suplente de Pauleta em Paris.
- Nani (12.000 euros): mais uma vez ficou a perceber-se por que é que ninguém concorda com a sua inclusão no plantel; vinte minutos em campo quase sem tocar na bola; bem substituído por Carlos Martins (30.000 euros, exibição agradável).
- Romagnoli (66.000 euros): o maestro da equipa e o ídolo dos adeptos; passa muita coisa por ele na equipa do Sporting (além de euros, obviamente).
- João Moutinho (32.000 euros): tarda a afirmar-se na equipa; pouco aplicado, mais uma vez ouviu alguns assobios das bancadas, mas tem a desculpa de desta vez a assistência ter sido maioritariamente feminina.
- Custódio (26.000 euros): mesmo com o seu habitual receio em aventurar-se para terrenos mais avançados, foi o capitão de que a equipa precisava (autoritário, enérgico, lutador, carismático); por vezes fica a sensação de que compensa aquilo que não joga com aquilo que manda os outros jogarem.
- Tello (25.000 euros): cumpriu na defesa e ainda desceu algumas vezes pelo seu corredor, causando algum embaraço na defesa adversária.
- Tonel (24.000 euros): certas limitações foram sempre compensadas pela presença do seu brilhante colega do eixo da defesa.
- Polga (54.000 euros): como diria Rui Oliveira e Costa, «empolgante»; anulou o ponta-de-lança do Estrela da Amadora, disfarçou as limitações de Tonel, construiu jogadas capazes de deixar envergonhado, por exemplo, Ricardo Carvalho, e em duas das múltiplas descidas ao ataque marcou dois golos (cabeceamento num canto e remate de longe depois de uma cavalgada de uns bons cinquenta metros); substituído a um minuto do fim para a ovação merecida (não se percebe como na altura da sua contratação houve dúvidas entre o brilhante Polga e um outro central brasileiro, Anderson, um jogador limitadíssimo, embora esforçado, que Scolari levou ao mundial de 2002).
- Caneira (68.000 euros): simplesmente fantástico (raça, velocidade, brilhantismo, técnica, magia…); anulou o extremo esquerdo da Amadora, ajudou no centro da defesa e desceu pelo seu corredor como uma autêntica gazela, sem falhar nem um dos centros que fez (várias dezenas); duas cerejas no topo do bolo desta exibição, o golo depois de driblar seis adversários e picar a bola por cima do guarda-redes e a grande penalidade que converteu de forma irrepreensível (como Panenka na final do Europeu de 1976 e Hélder Postiga contra a Inglaterra em 2004); percebe-se agora por que é que o Valência mandou este genial futebolista para um campeonato obscuro como o português, a ver se assim (longe dos olhares dos grandes da Europa) o consegue manter nos seus quadros.
- Ricardo (75.000 euros): pouco ou nenhum trabalho (tinha à sua frente o intransponível Polga); substituído a dez minutos do fim porque (segundo depois confessou) já estava um pouco enervado com os piropos das milhares de fãs que tinha nas bancadas; o seu substituto (Rui Patrício, 2.000 euros) não chegaria a tocar na bola (até à saída de Polga o Estrela da Amadora nem se aproximou da baliza do Sporting, mas depois – com Caneira fora do campo a receber assistência – aconteceu algo que ninguém poderia imaginar, já nos descontos um jogador amadorense isolou-se e o jovem guarda-redes desmaiou de susto, sofrendo o Sporting um golo, ou melhor, um auto-golo, porque Tonel ainda empurrou a bola para a própria baliza depois do remate do adversário); nas bancadas comentava-se que até se compreendia tantos nervos numa estreia, ainda por cima com a idade de júnior, mas que se tivesse sido o brilhante Ricardo a estrear-se, nem que fosse com a idade de juvenil, até uma grande penalidade haveria de defender.
Bom, resultado final… Sporting – 7, Estrela da Amadora – 1 (Liedson 2, Bueno, Polga 2, Caneira 2; Tonel na própria baliza).
Uma nota mais… Em relação a Paulo Bento não se conseguiu perceber se teve ou não mérito nesta estrondosa vitória (o seu salário não foi divulgado, nem o do seu treinador principal que faz o papel de adjunto). Já Filipe Soares Franco, esse sim, esse teve mérito, pelo que se imagina que ganha por ser presidente do Sporting (Carlos Freitas, Rui Meireles, Miguel Salema Garção e outros com cargos parecidos no clube – sade? – também deverão ter tido algum mérito).
Imaginemos então que justificavam já com o Estrela da Amadora. Por exemplo, uma equipa habitual de Paulo Bento… Ricardo (Rui Patrício aos 80 minutos); Caneira, Polga (Miguel Veloso aos 89 minutos), Tonel e Tello; Custódio (cap.), João Moutinho, Romagnoli e Nani (Carlos Martins aos 20 minutos); Liedson e Bueno.
Imagine-se o que poderia acontecer no jogo de hoje, se todos justificassem o que ganham… Poderia o Sporting ganhar, por exemplo, por seis a um? Talvez. E as notas seguintes, poderiam elas ser bem mais do que apenas um sonho? De novo talvez.
- Liedson (110.000 euros): cinco minutos em campo, dois golos; pode-se perguntar o que teria acontecido ao Estrela da Amadora se o árbitro não lhe tivesse dado ordem de expulsão.
- Bueno (73.000 euros): foi um autêntico leão; sozinho no ataque depois do vermelho a Liedson (amarelo a festejar o primeiro golo aos três minutos tirando a camisola, segundo amarelo e consequente vermelho por ter tirado os calções no segundo, aos cinco minutos, ainda por cima com um estádio cheio de mulheres); mesmo sozinho, Bueno desbaratou a defesa adversária, marcou um golo e ainda atirou três bolas ao poste e uma à barra; não se percebe como é que era suplente de Pauleta em Paris.
- Nani (12.000 euros): mais uma vez ficou a perceber-se por que é que ninguém concorda com a sua inclusão no plantel; vinte minutos em campo quase sem tocar na bola; bem substituído por Carlos Martins (30.000 euros, exibição agradável).
- Romagnoli (66.000 euros): o maestro da equipa e o ídolo dos adeptos; passa muita coisa por ele na equipa do Sporting (além de euros, obviamente).
- João Moutinho (32.000 euros): tarda a afirmar-se na equipa; pouco aplicado, mais uma vez ouviu alguns assobios das bancadas, mas tem a desculpa de desta vez a assistência ter sido maioritariamente feminina.
- Custódio (26.000 euros): mesmo com o seu habitual receio em aventurar-se para terrenos mais avançados, foi o capitão de que a equipa precisava (autoritário, enérgico, lutador, carismático); por vezes fica a sensação de que compensa aquilo que não joga com aquilo que manda os outros jogarem.
- Tello (25.000 euros): cumpriu na defesa e ainda desceu algumas vezes pelo seu corredor, causando algum embaraço na defesa adversária.
- Tonel (24.000 euros): certas limitações foram sempre compensadas pela presença do seu brilhante colega do eixo da defesa.
- Polga (54.000 euros): como diria Rui Oliveira e Costa, «empolgante»; anulou o ponta-de-lança do Estrela da Amadora, disfarçou as limitações de Tonel, construiu jogadas capazes de deixar envergonhado, por exemplo, Ricardo Carvalho, e em duas das múltiplas descidas ao ataque marcou dois golos (cabeceamento num canto e remate de longe depois de uma cavalgada de uns bons cinquenta metros); substituído a um minuto do fim para a ovação merecida (não se percebe como na altura da sua contratação houve dúvidas entre o brilhante Polga e um outro central brasileiro, Anderson, um jogador limitadíssimo, embora esforçado, que Scolari levou ao mundial de 2002).
- Caneira (68.000 euros): simplesmente fantástico (raça, velocidade, brilhantismo, técnica, magia…); anulou o extremo esquerdo da Amadora, ajudou no centro da defesa e desceu pelo seu corredor como uma autêntica gazela, sem falhar nem um dos centros que fez (várias dezenas); duas cerejas no topo do bolo desta exibição, o golo depois de driblar seis adversários e picar a bola por cima do guarda-redes e a grande penalidade que converteu de forma irrepreensível (como Panenka na final do Europeu de 1976 e Hélder Postiga contra a Inglaterra em 2004); percebe-se agora por que é que o Valência mandou este genial futebolista para um campeonato obscuro como o português, a ver se assim (longe dos olhares dos grandes da Europa) o consegue manter nos seus quadros.
- Ricardo (75.000 euros): pouco ou nenhum trabalho (tinha à sua frente o intransponível Polga); substituído a dez minutos do fim porque (segundo depois confessou) já estava um pouco enervado com os piropos das milhares de fãs que tinha nas bancadas; o seu substituto (Rui Patrício, 2.000 euros) não chegaria a tocar na bola (até à saída de Polga o Estrela da Amadora nem se aproximou da baliza do Sporting, mas depois – com Caneira fora do campo a receber assistência – aconteceu algo que ninguém poderia imaginar, já nos descontos um jogador amadorense isolou-se e o jovem guarda-redes desmaiou de susto, sofrendo o Sporting um golo, ou melhor, um auto-golo, porque Tonel ainda empurrou a bola para a própria baliza depois do remate do adversário); nas bancadas comentava-se que até se compreendia tantos nervos numa estreia, ainda por cima com a idade de júnior, mas que se tivesse sido o brilhante Ricardo a estrear-se, nem que fosse com a idade de juvenil, até uma grande penalidade haveria de defender.
Bom, resultado final… Sporting – 7, Estrela da Amadora – 1 (Liedson 2, Bueno, Polga 2, Caneira 2; Tonel na própria baliza).
Uma nota mais… Em relação a Paulo Bento não se conseguiu perceber se teve ou não mérito nesta estrondosa vitória (o seu salário não foi divulgado, nem o do seu treinador principal que faz o papel de adjunto). Já Filipe Soares Franco, esse sim, esse teve mérito, pelo que se imagina que ganha por ser presidente do Sporting (Carlos Freitas, Rui Meireles, Miguel Salema Garção e outros com cargos parecidos no clube – sade? – também deverão ter tido algum mérito).
sexta-feira, 9 de março de 2007
O que se paga no Sporting
Reproduzo a seguir a lista de vencimentos de jogadores da equipa profissional do Sporting (e não só da do Sporting, como se pode ver por algumas informações entre parênteses), divulgada pelo site Sportugal.pt. Uma rápida leitura dá para perceber logo uma das razões para a equipa estar no estado em que está. A mesma rápida leitura dá também para perceber que o Sporting é gerido por gente que não tem a mínima ideia do que é gerir pessoas, seja em que organização for, muito menos num clube de futebol. O que está a verde são comentários meus.
Liedson - 110 mil euros
Liedson - 110 mil euros
Ricardo - 75 mil euros (devia pagar o ordenado de Tiago e Rui Patrício para jogar no Sporting)
Bueno - 73 mil euros (devia pagar o ordenado de Alecsandro para jogar no Sporting)
Caneira - 68 mil euros (devia pagar o ordenado de João Moutinho, Nani, Djaló e Pereirinha para jogar no Sporting)
Romagnoli - 66 mil euros (devia pagar o ordenado de Carlos Martins para jogar no Sporting)
Polga - 54 mil euros (devia pagar 90% do ordenado de Liedson para jogar no Sporting)
Paredes - 54 mil euros (devia pagar, a meias com Farnerud, o ordenado de Miguel Veloso para jogar no Sporting)
Alecsandro - 52 mil euros (devia pagar o ordenado de Ronny para jogar no Sporting)
Farnerud - 44 mil euros (devia pagar, a meias com Paredes, o ordenado de Miguel Veloso para jogar no Sporting)
J. Moutinho - 32 mil euros
Pinilla - 30 mil euros (talvez até pudesse estar no Sporting)
C. Martins - 30 mil euros
Abel - 30 mil euros
Custódio - 26 mil euros (devia pagar os ordenados de Paulo Bento e restante equipa técnica para jogar no Sporting, além de 10% do ordenado de Liedson)
R. Tello - 25 mil euros
J. Alves - 25 mil euros
L. Loureiro - 25 mil euros (emprestado ao E. Amadora) (quem sabe não poderia ser pago directamente por Filipe Soares Franco)
Tonel - 24 mil euros
Tiago - 22 mil euros
Ronny - 21 mil euros
M. Veloso - 20 mil euros
Djaló - 20 mil euros
M. Garcia - 17 mil euros
Varela - 13 mil euros (emprestado ao V. Setúbal) (talvez pudesse pagar o ordenado de André Marques)
Nani - 12 mil euros
Pereirinha - 10 mil euros
André Marques - 10 mil euros (emprestado ao O. Moscavide) (talvez pudesse pagar o ordenado de Rui Patrício e assim aliviar um pouco Ricardo)
Nuno Santos - 9 mil euros (emprestado ao V. Guimarães) (talvez o Guimarães lhe pudesse pagar)
Wender - 6 mil euros (vinculado ao Sp. Braga) (talvez os seis mil euros devessem ser pagos por José Peseiro, que arranjou a confusão)
R. Patrício - 2 mil euros (júnior, foi titular com o Marítimo)
Textos sobre livros – 17
Livro: «Na Pista da Dança», de Fernando Sobral (Teorema, 184 pp.)
Saiu um novo romance de Fernando Sobral. Chama-se «O Navio do Ópio» e a edição é da Oficina do Livro. Ainda não li (ou antes, li um bocadinho, porque espreitei um ficheiro com umas trinta páginas que em tempos o autor me enviou). O que deixo a seguir é um pequenino texto sobre um romance anterior de Fernando Sobral, chamado «Na Pista da Dança» e de cuja leitura gostei muito.
«Na Pista da Dança», assim se chama, primeiro romance do jornalista Fernando Sobral (saiu em 2000), oferece-nos a possibilidade de olhar para um mundo de onde a ficção costuma andar afastada. Pelo menos a ficção portuguesa. É o mundo da música, entre o rock e a tecnho, no meio de copos, raves, sexo e droga, com a Internet e a cada vez mais velha e gasta nova economia sempre de soslaio. No Barreiro, na ressaca da grande aventura industrial da margem sul do Tejo. «Os subúrbios têm segredos», pode ler-se na badana. «Escondem muitas coisas que não nos querem dizer. Sabem demasiadas coisas que não nos podem revelar. São territórios que muitos julgam conhecer, mas que nunca conhecerão.» Pior ainda, e pegando numa imagem feliz do autor, «se são subúrbios com subúrbios à volta».
Um mundo povoado de gente pouco afeita a grandes combates, sem paciência para mais revoluções. O mundo deste livro. «O Barreiro já não era nem uma cidade industrial nem um subúrbio. Pelo contrário, tornara-se, a pouco e pouco, um território deserto, ocupado ao fim de semana pelos jovens dos subúrbios que se tinham criado à volta.» O mundo de Rita, a jovem vocalista dos Croma, que não acredita em bruxas, embora admita que se alguma vez existiram no Barreiro «já foram todas de barco para Lisboa». E o mundo de David Guerra, ou apenas David, regressado de Cabo Verde com a ideia fixa de fazer uma editora discográfica, que talvez alguém se encarregue de transformar numa dotcom.
No Ás de Copas, o «bar da moda» do «subúrbio com subúrbios à volta», David e Rita… «Ela sentou-se e David não deixou de a achar bonita. Morena, muito morena, com uns olhos verdes que pareciam ainda mais brilhantes naquele cruzamento de cores do bar./ – Desculpe ter pensado neste sítio, mas é quase sempre um hábito para mim nos últimos tempos. – Não faz mal. Eu não conhecia. Foi aqui que mataram aquela rapariga, há uns anos, não foi?/ David acenou com a cabeça. Perguntou-lhe o que queria beber e pediu dois runs. O dela é Cuba Livre. Depois falou-lhe da sua ideia de fundar uma editora. Um sonho que estava quase a concretizar-se. A culpa é de ter passado anos a ouvir rock, entre ganzas e cervejas. Ia chamar-se Pirotechnia. Rita riu. Eu não gosto muito de tecnho, disse. Nem eu espero que goste, disse David. A única razão porque se chama assim é porque gosto de fazer trocadilhos com as palavras.» É apenas o primeiro encontro dos dois. Num bar do «subúrbio com subúrbios à volta».
Já fora do pequeno texto sobre «Na Pista da Dança», uma nota relativa ao autor. Fernando Sobral começou no jornalismo no «DN Jovem», o histórico suplemento do «Diário de Notícias», tendo trabalhado depois nos jornais «Semanário», «O Independente» e «Diário Económico». Foi também chefe de redacção do jornal «Se7e». Actualmente, é jornalista do «Jornal de Negócios» e colaborador do «Correio da Manhã» e da revista «Sábado».
Saiu um novo romance de Fernando Sobral. Chama-se «O Navio do Ópio» e a edição é da Oficina do Livro. Ainda não li (ou antes, li um bocadinho, porque espreitei um ficheiro com umas trinta páginas que em tempos o autor me enviou). O que deixo a seguir é um pequenino texto sobre um romance anterior de Fernando Sobral, chamado «Na Pista da Dança» e de cuja leitura gostei muito.
«Na Pista da Dança», assim se chama, primeiro romance do jornalista Fernando Sobral (saiu em 2000), oferece-nos a possibilidade de olhar para um mundo de onde a ficção costuma andar afastada. Pelo menos a ficção portuguesa. É o mundo da música, entre o rock e a tecnho, no meio de copos, raves, sexo e droga, com a Internet e a cada vez mais velha e gasta nova economia sempre de soslaio. No Barreiro, na ressaca da grande aventura industrial da margem sul do Tejo. «Os subúrbios têm segredos», pode ler-se na badana. «Escondem muitas coisas que não nos querem dizer. Sabem demasiadas coisas que não nos podem revelar. São territórios que muitos julgam conhecer, mas que nunca conhecerão.» Pior ainda, e pegando numa imagem feliz do autor, «se são subúrbios com subúrbios à volta».
Um mundo povoado de gente pouco afeita a grandes combates, sem paciência para mais revoluções. O mundo deste livro. «O Barreiro já não era nem uma cidade industrial nem um subúrbio. Pelo contrário, tornara-se, a pouco e pouco, um território deserto, ocupado ao fim de semana pelos jovens dos subúrbios que se tinham criado à volta.» O mundo de Rita, a jovem vocalista dos Croma, que não acredita em bruxas, embora admita que se alguma vez existiram no Barreiro «já foram todas de barco para Lisboa». E o mundo de David Guerra, ou apenas David, regressado de Cabo Verde com a ideia fixa de fazer uma editora discográfica, que talvez alguém se encarregue de transformar numa dotcom.
No Ás de Copas, o «bar da moda» do «subúrbio com subúrbios à volta», David e Rita… «Ela sentou-se e David não deixou de a achar bonita. Morena, muito morena, com uns olhos verdes que pareciam ainda mais brilhantes naquele cruzamento de cores do bar./ – Desculpe ter pensado neste sítio, mas é quase sempre um hábito para mim nos últimos tempos. – Não faz mal. Eu não conhecia. Foi aqui que mataram aquela rapariga, há uns anos, não foi?/ David acenou com a cabeça. Perguntou-lhe o que queria beber e pediu dois runs. O dela é Cuba Livre. Depois falou-lhe da sua ideia de fundar uma editora. Um sonho que estava quase a concretizar-se. A culpa é de ter passado anos a ouvir rock, entre ganzas e cervejas. Ia chamar-se Pirotechnia. Rita riu. Eu não gosto muito de tecnho, disse. Nem eu espero que goste, disse David. A única razão porque se chama assim é porque gosto de fazer trocadilhos com as palavras.» É apenas o primeiro encontro dos dois. Num bar do «subúrbio com subúrbios à volta».
Já fora do pequeno texto sobre «Na Pista da Dança», uma nota relativa ao autor. Fernando Sobral começou no jornalismo no «DN Jovem», o histórico suplemento do «Diário de Notícias», tendo trabalhado depois nos jornais «Semanário», «O Independente» e «Diário Económico». Foi também chefe de redacção do jornal «Se7e». Actualmente, é jornalista do «Jornal de Negócios» e colaborador do «Correio da Manhã» e da revista «Sábado».
quinta-feira, 8 de março de 2007
Palhaço indigno e outras coisas do Sporting
Outro comentário, deixado ali abaixo, sobre o «palhaço indigno», expressão criada por Eduardo Barroso durante um descontrolo que teve na última segunda-feira em directo na Antena 1… «Um palhaço indigno é todo o espectador de futebol que se recuse a aceitar o futebol como aquilo que deveria ser sempre: apenas um jogo./ O Pedro Tochas é um grande palhaço (premiado internacionalmente). Mas há palhaços que são indignos. Aqueles que não percebem que um sorriso de criança pode ser uma coisa preciosa./ O futebol está cheio de bandalhos. Não metam os palhaços nisto. Ricos ou pobres.»
Apesar de não ser novidade para mim, não consegui deixar de intrigar-me com a despropositada parcialidade de Eduardo Barroso (a teima de que Liedson não merecia ter sido expulso em Leiria). Não basta o Sporting estar completamente descredibilizado pelos seus responsáveis, ainda aparecem os adeptos com estatuto de comentador a dizer asneiras em programas de grande audiência. Como se não bastasse, depois de ouvir a figura triste de Eduardo Barroso, dei com Rui Oliveira e Costa na televisão a insistir no assunto e depois a meter-se a opinar sobre alguns jogadores do Sporting. Ajudou-me a perceber que muitas vezes são os próprios adeptos do clube que ajudam a afundá-lo ainda mais, pela parcialidade e pelo desconhecimento que revelam. A certa altura, Rui Oliveira e Costa meteu-se a jogar com as palavras e a falar do empolgante Polga no jogo de Leiria, presumo que por causa de uma das corridas à maluca do medíocre, embora esforçado, central do Sporting. Caneira, outro do género de Polga, com a agravante de lhe faltar a capacidade de luta do colega, não foi referido, mas creio que poderia muito bem ter sido, se a Rui Oliveira e Costa tivessem dado mais uns minutos de análise. Mesmo assim, este comentador ainda teve tempo para lamentar a substituição de Romagnoli pelo, como ele dizia, «Parreirinha». Os comentadores do Porto e do Benfica bem que tentaram corrigi-lo, mas ele nada, insistia no «Parreirinha». «Parreirinha» para aqui, «Parreirinha» para ali… E por isso o jovem substituto de Romagnoli, Bruno Pereirinha, ficou por nomear no programa.
Nisto do «Parreirinha» (provavelmente na foto acima), Rui Oliveira e Costa fez-me lembrar um dirigente do Sporting (creio que um que em tempos se especializou em navios de cruzeiro atracados, vazios e alugados a peso de ouro) que uma vez numa entrevista a um jornal se meteu a falar da festa que fez no jogo do título de 1982, ainda um jovem, em Alvalade e curiosamente contra o Leiria; um jogo com uma vitória por três a zero. Dizia que nunca mais se haveria de esquecer dessa festa. Mas não, não era nada disso; ele já se tinha esquecido. A festa foi a do título de 1979. A de 1982 foi bem diferente, embora a vitória tenha sido também por três a zero, ou antes, zero a três; foi num jogo no Estoril, na ante-penúltima jornada, sendo um dos golos marcado de muito longe. Depois ainda haveria um jogo de sete a um (em Alvalade com o Rio Ave, talvez prenúncio dos sete a um de quatro anos depois com o Benfica) e na despedida do campeonato uma derrota nas Antas por dois a zero, com um avançado portista minúsculo (Jacques) a ganhar por um golo (o que marcou nesse jogo) a Bola de Prata a Jordão (27 contra 26). Seria pedir muito, pela tradição destes últimos anos, a um dirigente do Sporting que se recordasse destas coisas correctamente. E a Rui Oliveira e Costa? E, já agora, a Eduardo Barroso, o criador da expressão «palhaço indigno»? Seria também pedir muito? A verdade é que não sei.
Apesar de não ser novidade para mim, não consegui deixar de intrigar-me com a despropositada parcialidade de Eduardo Barroso (a teima de que Liedson não merecia ter sido expulso em Leiria). Não basta o Sporting estar completamente descredibilizado pelos seus responsáveis, ainda aparecem os adeptos com estatuto de comentador a dizer asneiras em programas de grande audiência. Como se não bastasse, depois de ouvir a figura triste de Eduardo Barroso, dei com Rui Oliveira e Costa na televisão a insistir no assunto e depois a meter-se a opinar sobre alguns jogadores do Sporting. Ajudou-me a perceber que muitas vezes são os próprios adeptos do clube que ajudam a afundá-lo ainda mais, pela parcialidade e pelo desconhecimento que revelam. A certa altura, Rui Oliveira e Costa meteu-se a jogar com as palavras e a falar do empolgante Polga no jogo de Leiria, presumo que por causa de uma das corridas à maluca do medíocre, embora esforçado, central do Sporting. Caneira, outro do género de Polga, com a agravante de lhe faltar a capacidade de luta do colega, não foi referido, mas creio que poderia muito bem ter sido, se a Rui Oliveira e Costa tivessem dado mais uns minutos de análise. Mesmo assim, este comentador ainda teve tempo para lamentar a substituição de Romagnoli pelo, como ele dizia, «Parreirinha». Os comentadores do Porto e do Benfica bem que tentaram corrigi-lo, mas ele nada, insistia no «Parreirinha». «Parreirinha» para aqui, «Parreirinha» para ali… E por isso o jovem substituto de Romagnoli, Bruno Pereirinha, ficou por nomear no programa.
Nisto do «Parreirinha» (provavelmente na foto acima), Rui Oliveira e Costa fez-me lembrar um dirigente do Sporting (creio que um que em tempos se especializou em navios de cruzeiro atracados, vazios e alugados a peso de ouro) que uma vez numa entrevista a um jornal se meteu a falar da festa que fez no jogo do título de 1982, ainda um jovem, em Alvalade e curiosamente contra o Leiria; um jogo com uma vitória por três a zero. Dizia que nunca mais se haveria de esquecer dessa festa. Mas não, não era nada disso; ele já se tinha esquecido. A festa foi a do título de 1979. A de 1982 foi bem diferente, embora a vitória tenha sido também por três a zero, ou antes, zero a três; foi num jogo no Estoril, na ante-penúltima jornada, sendo um dos golos marcado de muito longe. Depois ainda haveria um jogo de sete a um (em Alvalade com o Rio Ave, talvez prenúncio dos sete a um de quatro anos depois com o Benfica) e na despedida do campeonato uma derrota nas Antas por dois a zero, com um avançado portista minúsculo (Jacques) a ganhar por um golo (o que marcou nesse jogo) a Bola de Prata a Jordão (27 contra 26). Seria pedir muito, pela tradição destes últimos anos, a um dirigente do Sporting que se recordasse destas coisas correctamente. E a Rui Oliveira e Costa? E, já agora, a Eduardo Barroso, o criador da expressão «palhaço indigno»? Seria também pedir muito? A verdade é que não sei.
terça-feira, 6 de março de 2007
O lateral
Este post não é sobre o treinador que aparece na foto, mas sobre outro, precisamente o que hoje foi eliminado por ele. Entre muitas das considerações que o treinador eliminado fez retive uma sobre o golo que deu a vitória ao Chelsea sobre o Porto. Disse Jesualdo Ferreira que aquele golo era típico das equipas inglesas. Achei piada. Um cruzamento longo para a área, os centrais do Porto às aranhas, um jogador da Costa do Marfim cabeceia para um da Ucrânia, que por sua vez cabeceia para um da Alemanha, e este faz o golo. Assim aconteceu a vitória do Chelsea, uma equipa treinada por um português (que tem adjuntos de Portugal e do Brasil) e pertencente a um multimilionário russo. Mas atenção, o cruzamento foi feito por um defesa lateral inglês.
Ainda aquilo do palhaço indigno
Ainda a propósito do que escrevi ali abaixo, depois do empate do Sporting em Leiria e do descontrolo radiofónico de Eduardo Barroso, deixo aqui excertos de duas das mensagens que recebi a propósito da pergunta que fiz, se alguém me sabia dizer o que é um palhaço indigno. A primeira apareceu nos comentários ao post. A segunda foi apenas para o meu endereço de e-mail. Primeira: «Um palhaço indigno é aquele que devia ser expulso da Ordem dos Palhaços, a qual se não há devia de haver, até porque o país está cheio deles, mais até dos indignos, porque os dignos ainda se dignam ganhar a vida dignissimamente. O palhaço indigno faz falsas palhaçadas, porque devia estar quieto e não torrar o dinheiro e o juízo ao portuga. O palhaço indigno é digno de profundo desprezo.» Segunda, mais um reparo do que uma resposta: «Atenção, há palhaços muito dignos. Em miúdo adorava vê-los a calcorrear os palcos circulares, cheios de cor e de música…»
Textos sobre livros – 16
Livro: «Parque Gorki», de Martin Cruz Smith (Edições ASA, 456 pp.)
Num mundo desaparecido
Um dos mais notáveis romances sobre um mundo desaparecido, o da Guerra-fria, escrito poucos anos antes da queda do Muro de Berlim e da derrocado da União Soviética. «Parque Gorki» é o primeiro título de uma trilogia do escritor norte-americano Martin Cruz Smith.
Uma noite escura. Um Inverno ameno. Os faróis ofuscantes da carrinha de uma brigada de homicídios. Estamos em Moscovo, no célebre Parque Gorki. Da neve que cobre o parque surgem três cadáveres. Talvez «um trio embriagado de vodka que morrera alegremente de frio». Seria um trabalho comum para a brigada de homicídios. Mas não, os três cadáveres têm também por perto, e com um estranho interesse, gente do KGB. Não são bêbados mortos de frio, são três desconhecidos, com os rostos e os dedos mutilados; quem lhes levou a vida parece ter querido esconder as suas identidades para sempre, esconder tantas coisas.
É a partir deste episódio que começa uma investigação do polícia criado por Martin Cruz Smith, representado no grande ecrã – no caso de «Parque Gorki» – por William Hurt (o romance, escrito no início da década de 1980 foi rapidamente adaptado ao cinema por Michael Apted, tendo Hurt a seu lado nomes como Lee Marvin, Joana Pacula ou Brian DeNehy). Chama-se Arkadi Renko esse polícia e é filho de um herói soviético da segunda guerra mundial, a quem parece ter desiludido. «A estas horas podias ser general. O filho do Govorov comanda a região militar de Moscovo inteira. Com o meu nome ainda podias ter subido mais alto. Bem, eu sabia que não tinhas tomates para comandar a unidade de blindados mas, pelo menos, podias ter-te tornado um desses imbecis da secreta.» Isto diz o general ao filho, já «comido de cancro, bichoso», comido também pelas recordações, devorado por elas, sem um mínimo de piedade.
Mas Arkadi Renko não é bem o que diz o velho general. O pacato polícia, que tem por missão investigar os crimes banais de uma cidade que a ditadura comunista transformou num lugar onde nada acontece, vai viver a aventura da sua vida, estranhamente uma aventura que não parece representar nada de novo para ele. A procura da verdade vai levá-lo para bem longe do seu mundo limitado, e ele mantém-se imperturbável, seja com a vida pessoal completamente de pantanas, seja às voltas com o KGB, seja bem longe, no coração da própria América.
Esta primeira aventura de Renko (a ASA prevê publicar proximamente as outras duas, «Havana Bay» e «Red Star») acaba por constituir um retrato por vezes minucioso de uma União Soviética em decadência, devassada pelos espartilhos do regime de Moscovo, pela corrupção das elites e por uma miséria que parece endémica. É sem dúvida uma viagem apaixonante a um mundo desaparecido, o da Guerra-Fria, um mundo de cuja implosão ficaram muitos estilhaços. Recomenda-se cuidado nos pormenores, pois a história que Martin Cruz Smith conta tem por vezes aspectos à primeira vista um pouco confusos.
Num mundo desaparecido
Um dos mais notáveis romances sobre um mundo desaparecido, o da Guerra-fria, escrito poucos anos antes da queda do Muro de Berlim e da derrocado da União Soviética. «Parque Gorki» é o primeiro título de uma trilogia do escritor norte-americano Martin Cruz Smith.
Uma noite escura. Um Inverno ameno. Os faróis ofuscantes da carrinha de uma brigada de homicídios. Estamos em Moscovo, no célebre Parque Gorki. Da neve que cobre o parque surgem três cadáveres. Talvez «um trio embriagado de vodka que morrera alegremente de frio». Seria um trabalho comum para a brigada de homicídios. Mas não, os três cadáveres têm também por perto, e com um estranho interesse, gente do KGB. Não são bêbados mortos de frio, são três desconhecidos, com os rostos e os dedos mutilados; quem lhes levou a vida parece ter querido esconder as suas identidades para sempre, esconder tantas coisas.
É a partir deste episódio que começa uma investigação do polícia criado por Martin Cruz Smith, representado no grande ecrã – no caso de «Parque Gorki» – por William Hurt (o romance, escrito no início da década de 1980 foi rapidamente adaptado ao cinema por Michael Apted, tendo Hurt a seu lado nomes como Lee Marvin, Joana Pacula ou Brian DeNehy). Chama-se Arkadi Renko esse polícia e é filho de um herói soviético da segunda guerra mundial, a quem parece ter desiludido. «A estas horas podias ser general. O filho do Govorov comanda a região militar de Moscovo inteira. Com o meu nome ainda podias ter subido mais alto. Bem, eu sabia que não tinhas tomates para comandar a unidade de blindados mas, pelo menos, podias ter-te tornado um desses imbecis da secreta.» Isto diz o general ao filho, já «comido de cancro, bichoso», comido também pelas recordações, devorado por elas, sem um mínimo de piedade.
Mas Arkadi Renko não é bem o que diz o velho general. O pacato polícia, que tem por missão investigar os crimes banais de uma cidade que a ditadura comunista transformou num lugar onde nada acontece, vai viver a aventura da sua vida, estranhamente uma aventura que não parece representar nada de novo para ele. A procura da verdade vai levá-lo para bem longe do seu mundo limitado, e ele mantém-se imperturbável, seja com a vida pessoal completamente de pantanas, seja às voltas com o KGB, seja bem longe, no coração da própria América.
Esta primeira aventura de Renko (a ASA prevê publicar proximamente as outras duas, «Havana Bay» e «Red Star») acaba por constituir um retrato por vezes minucioso de uma União Soviética em decadência, devassada pelos espartilhos do regime de Moscovo, pela corrupção das elites e por uma miséria que parece endémica. É sem dúvida uma viagem apaixonante a um mundo desaparecido, o da Guerra-Fria, um mundo de cuja implosão ficaram muitos estilhaços. Recomenda-se cuidado nos pormenores, pois a história que Martin Cruz Smith conta tem por vezes aspectos à primeira vista um pouco confusos.
Alguém me sabe dizer o que é um palhaço indigno?
Leiria – 0, Sporting – 0. Cheguei há bocado a casa (ou como diria o Alberto João Jardim, «há pedaço»). De Lisboa até aqui (é depois da estrada que coloco na foto), entre outros programas ouvi um da Antena 1 sobre futebol, com um comentador do Porto, outro do Benfica e outro do Sporting. O do Sporting era (acho que sempre tem sido) Eduardo Barroso. Estava de cabeça perdida e ameaçava mesmo desistir de participar em programas do género daquele (e incitava outros sportinguistas comentadores a fazerem o mesmo). O problema era o jogo de ontem, sobretudo a confusão que antecedeu a expulsão de Liedson. Não concordava com ela. Achava que Liedson não agrediu ninguém. Depois já achava que sim, mas que não era bem uma agressão e que por isso não dava para cartão vermelho; já só pensava no amarelo a Rossato, um defesa brasileiro do Leiria (um amarelo muito estranho, de facto), e num penalty a favor do Sporting, que bem poderia ter ajudado. Eduardo Barroso disparava «palhaços» a torto e a direito, ainda por cima «indignos», além, é claro, de «palhaçadas». O árbitro, o fiscal de linha que avisou o árbitro da agressão de Liedson, o agredido defesa do Leiria que ajudou à festa, tudo uns «palhaços», só que dos «indignos». Mas alguém me sabe dizer o que é um palhaço indigno?
É óbvio que Liedson foi bem expulso. Contrariamente ao que pensei logo a seguir, mesmo assim a equipa aguentou-se e poderia muito bem ter ganho nas calmas (e se alguns jogadores no momento de rematar tivessem tido calma). A ideia com que fiquei após o jogo foi a de que o Sporting está mesmo numa fase má para a qual parece não haver solução. Paulo Bento, a quem – volto a dizer – sempre apoiei para treinador, parece-me ultrapassado pelos acontecimentos e agora até já diz uma ou outra parvoíce no fim dos jogos. Os responsáveis do clube (ou da sade, ou lá o que é), desses é melhor nem falar para não ficar ainda mais pessimista. Com esses responsáveis (?) os problemas são bem mais graves do que aqueles dos desequilíbrios da equipa, em que à mistura com verdadeiros craques aparecem jogadores absolutamente medíocres. Temo que o Sporting esteja mesmo numa situação muito complicada, e mais do que apenas ao nível da equipa de futebol. Os problemas parecem-me estar a um nível global, com a gestão entregue a gente que cada vez mais se mostra absolutamente incapaz.
É óbvio que Liedson foi bem expulso. Contrariamente ao que pensei logo a seguir, mesmo assim a equipa aguentou-se e poderia muito bem ter ganho nas calmas (e se alguns jogadores no momento de rematar tivessem tido calma). A ideia com que fiquei após o jogo foi a de que o Sporting está mesmo numa fase má para a qual parece não haver solução. Paulo Bento, a quem – volto a dizer – sempre apoiei para treinador, parece-me ultrapassado pelos acontecimentos e agora até já diz uma ou outra parvoíce no fim dos jogos. Os responsáveis do clube (ou da sade, ou lá o que é), desses é melhor nem falar para não ficar ainda mais pessimista. Com esses responsáveis (?) os problemas são bem mais graves do que aqueles dos desequilíbrios da equipa, em que à mistura com verdadeiros craques aparecem jogadores absolutamente medíocres. Temo que o Sporting esteja mesmo numa situação muito complicada, e mais do que apenas ao nível da equipa de futebol. Os problemas parecem-me estar a um nível global, com a gestão entregue a gente que cada vez mais se mostra absolutamente incapaz.
domingo, 4 de março de 2007
Segunda edição
Quarta-feira, 12 de Julho de 2006. Nesse dia publiquei aqui um pequeno texto intitulado «Não devia contar isto». Publico-o agora de novo. Parece-me actual, sobretudo devido às teimas do tipo que se pode ver na fotografia aqui ao lado; teimas em retirar a hipótese de milhares de portugueses terem acesso a serviços de saúde, mesmo que muito maus. Uma nota para um pormenor da fotografia. No púlpito aparece a expressão «novas fronteiras»; vem mesmo a propósito, pois as teimas que referi podem muito bem, com o passar do tempo, dar origem a novas fronteiras para Portugal, fazendo com que toda a zona interior passe a ser uma região de Espanha. O pequeno texto então, a itálico…
Eu andava para ir ao médico. Tinha-me aparecido uma borbulha que me parecia estranha e que nunca mais passava. Dias e dias e cada vez pior, até a formar um pequeno volume que me doía se fizesse pressão. A coisa preocupava-me. Tinha de ir mesmo ao médico, provavelmente a uma clínica a que por vezes recorria. Mas para algo assim eu não sabia a que especialidade ir. Então, talvez ir ao médico de família fosse o melhor… Mas isso devia demorar um ror de tempo, era o que eu pensava.
Um destes dias, a meio da tarde, uma tarde de calor, mesmo de muito calor, eu ia a conduzir pelas ruas de Montemor-o-Novo. E lembrei-me de ir ao centro de saúde, em tempos hospital, marcar uma consulta. A ver o que dava. Entrei e só vi dois funcionários, cada um no seu cubículo. Uma senhora e um rapaz. A senhora disse-me para falar com o rapaz. Eu disse que era para marcar uma consulta e acrescentei o nome do médico de família (que não conhecia, por ter recentemente transferido o processo de Lisboa).
O rapaz lá teclou umas coisas no computador e depois disse-me que era três euros e meio. Perguntei por quê, se estava apenas a marcar a consulta. E ele esclareceu-me que aquele era o dia em que o meu médico de família estava na urgência e que eu podia ser atendido (assim como poderia ser por outro médico se o dia fosse outro). Tinha consulta para a urgência.
Eu precisava de ir com o meu filho a Évora daí a duas horas. À pediatra (consulta privada, já se vê). O rapaz disse que dava tempo, e ainda me informou de que para consultas normais poderia fazer a marcação num sítio que ficava na outra ponta do centro de saúde. Depois mandou-me para a sala de espera.
Mesmo com o aviso do rapaz de que dava tempo, eu disse para comigo que se não fosse atendido na hora seguinte desistia, mesmo tendo pago os três euros e meio. Na sala de espera estava uma pessoa, que foi chamada quando eu ia a entrar. Levava uns papéis na mão, provavelmente para mostrar ao médico, pois saiu daí a uns cinco minutos. Fui chamado a seguir e conheci finalmente o meu médico de família. Disse-lhe ao que ia e ele não demorou muito a tranquilizar-me. Não era nada preocupante o que eu tinha; receitou-me um antibiótico e disse para tomar durante dez dias.
Eu não devia contar isto, porque se algum espertalhão armado em ministro da saúde sabe ainda manda encerrar o centro de saúde de Montemor-o-Novo e para a próxima tenho de ir a Évora, ou quem sabe a Badajoz.
Eu andava para ir ao médico. Tinha-me aparecido uma borbulha que me parecia estranha e que nunca mais passava. Dias e dias e cada vez pior, até a formar um pequeno volume que me doía se fizesse pressão. A coisa preocupava-me. Tinha de ir mesmo ao médico, provavelmente a uma clínica a que por vezes recorria. Mas para algo assim eu não sabia a que especialidade ir. Então, talvez ir ao médico de família fosse o melhor… Mas isso devia demorar um ror de tempo, era o que eu pensava.
Um destes dias, a meio da tarde, uma tarde de calor, mesmo de muito calor, eu ia a conduzir pelas ruas de Montemor-o-Novo. E lembrei-me de ir ao centro de saúde, em tempos hospital, marcar uma consulta. A ver o que dava. Entrei e só vi dois funcionários, cada um no seu cubículo. Uma senhora e um rapaz. A senhora disse-me para falar com o rapaz. Eu disse que era para marcar uma consulta e acrescentei o nome do médico de família (que não conhecia, por ter recentemente transferido o processo de Lisboa).
O rapaz lá teclou umas coisas no computador e depois disse-me que era três euros e meio. Perguntei por quê, se estava apenas a marcar a consulta. E ele esclareceu-me que aquele era o dia em que o meu médico de família estava na urgência e que eu podia ser atendido (assim como poderia ser por outro médico se o dia fosse outro). Tinha consulta para a urgência.
Eu precisava de ir com o meu filho a Évora daí a duas horas. À pediatra (consulta privada, já se vê). O rapaz disse que dava tempo, e ainda me informou de que para consultas normais poderia fazer a marcação num sítio que ficava na outra ponta do centro de saúde. Depois mandou-me para a sala de espera.
Mesmo com o aviso do rapaz de que dava tempo, eu disse para comigo que se não fosse atendido na hora seguinte desistia, mesmo tendo pago os três euros e meio. Na sala de espera estava uma pessoa, que foi chamada quando eu ia a entrar. Levava uns papéis na mão, provavelmente para mostrar ao médico, pois saiu daí a uns cinco minutos. Fui chamado a seguir e conheci finalmente o meu médico de família. Disse-lhe ao que ia e ele não demorou muito a tranquilizar-me. Não era nada preocupante o que eu tinha; receitou-me um antibiótico e disse para tomar durante dez dias.
Eu não devia contar isto, porque se algum espertalhão armado em ministro da saúde sabe ainda manda encerrar o centro de saúde de Montemor-o-Novo e para a próxima tenho de ir a Évora, ou quem sabe a Badajoz.
Textos sobre livros – 15
Livro: «A Família de Pascual Duarte», de Camilo José Cela (Círculo de Leitores, 179 pp.)
O primeiro livro do viajante incansável
As linhas que vêm a seguir a este parágrafo foram escritas já há uns anos. São de um texto que fiz para uma rubrica sobre livros que tive numa rádio – o autor do livro em causa é o escritor galego Camilo José Cela (1916 – 2002).
«A Família de Pascual Duarte», um romance que fez sair a literatura espanhola dos campos ermos em que se encontrava. É o primeiro livro do escritor espanhol Camilo José Cela, celebrado Prémio Nobel da Literatura em 1989. Em 1942, ano em que foi publicado pela primeira vez, constituiu uma autêntica revelação, pela audácia, pela originalidade do tema e pelo carácter bronco e desgarrado do clima humano que ressalta a cada página. Com este livro a literatura espanhola regressou ao mundo popular, o mundo campestre, povoado por seres absolutamente primários. Seres com instintos básicos e paixões selvagens que traduzem a barbárie ancestral de uma terra marcada pelo violência e pelo ódio. Em plena ressaca da Guerra Civil de Espanha, a um livro como este nada de bom se auguraria por terras de Espanha, onde um verme criminoso, baixote e barrigudo começava a deixar as suas marcas no papel de ditador. Assim, o livro teve a sua primeira edição na Argentina, o que não impediu um sucesso imediato. Haveria de tornar-se um dos mais lidos da língua castelhana.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, em 1916, na localidade de Iria Flávia, filho de pai espanhol e mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia, mas essencialmente acabaria por ser um escritor. Mais do que um romancista, um escritor, dono de um talento verbal difícil de igualar, com um estilo meticuloso, muito elaborado, misturando habilmente a rudeza e a ternura. A sua obra é multifacetada. Nela destacam-se os contos e, principalmente, os livros de viagens, como o célebre «Viaje a la Alcarria», incluído entre nós num volume das Edições Asa de título «Vagabundo ao Serviço de Espanha». Cela sempre foi um viajante incansável e provavelmente não há caminho em Espanha que não tenha calcorreado. Conheceu o êxito, mas também atraiu o ódio de muita gente, pela escrita, pelos temas que abordava, pelas opiniões que emitia. Tornou-se um dos mais traduzidos e estudados escritores espanhóis, mas também um dos mais polémicos. Nos últimos anos da sua vida, por exemplo, deram brado em Espanha as suas opiniões sobre a homossexualidade de Lorca.
O romance «A Família de Pascual Duarte» trata da história de um camponês dos arredores de Badajoz, filho de mãe espanhola e pai português (de seu nome Estêvão Duarte Diniz). A trama enquadra-se na perfeição no clima de ódio e vingança decorrente dos anos da guerra fratricida que envolveu o país vizinho. Camilo José Cela, curiosamente, dedica o livro aos seus inimigos, que – afirma – tanto o ajudaram na sua carreira. E autodenomina-se um «transcritor». É ele que acha o manuscrito de Pascual Duarte numa farmácia de Almendralejo, perto de Badajoz. É Almendralejo a terra de Pascual Duarte, uma terra que muitas décadas depois se tornaria bem conhecida com uma efémera subida do seu modesto clube, o Extremadura, à multimilionária primeira liga do futebol espanhol.
O «transcritor» acha que finalmente chegou a hora de publicar as folhas do manuscrito maldito (em 1942, três anos depois de o ter encontrado). «… só Deus sabe», diz ele, «que mãos desconhecidas ali as deixaram – fui-me entretendo de então para cá a traduzi-las, a ordená-las, uma vez que o manuscrito – em parte devido à má letra, em parte porque encontrei as folhas sem numeração e desordenadas – era pouco menos que ilegível.» Pascual Duarte, segundo Cela, «é um modelo de comportamento; não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer:/ – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia.» E depois acrescenta: «... talvez seja essa a única razão por que o trago à luz».
Pascual Duarte, tal como o «transcritor», dedica o seu manuscrito. Se Cela o faz a todos os seus inimigos, Pascual é mais modesto. Dedica-o assim: «À memória do insigne conterrâneo Dom Jesus Gonzáles de la Riva, conde de Torremejía, que no momento em que o autor desta narrativa o ia matar, lhe sorria e lhe chamava Pascualzinho.» Dom Jesus Gonzáles de la Riva era o amante da mãe de Pascual Duarte. Tanto ele como ela morreram às mãos do descontrolado Pascual. Pascual que no fim do relato conta a parte do assassinato da mãe. E depois acrescenta: «Larguei-a e saí a fugir. Choquei com a minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias.../ Podia respirar...»
Uma curiosidade final: já na década de 1990, bem depois de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, Camilo José Cela inscreveu-se num concurso literário. Fê-lo sob anonimato, como mandava o regulamento, e acabou por ganhar.
O primeiro livro do viajante incansável
As linhas que vêm a seguir a este parágrafo foram escritas já há uns anos. São de um texto que fiz para uma rubrica sobre livros que tive numa rádio – o autor do livro em causa é o escritor galego Camilo José Cela (1916 – 2002).
«A Família de Pascual Duarte», um romance que fez sair a literatura espanhola dos campos ermos em que se encontrava. É o primeiro livro do escritor espanhol Camilo José Cela, celebrado Prémio Nobel da Literatura em 1989. Em 1942, ano em que foi publicado pela primeira vez, constituiu uma autêntica revelação, pela audácia, pela originalidade do tema e pelo carácter bronco e desgarrado do clima humano que ressalta a cada página. Com este livro a literatura espanhola regressou ao mundo popular, o mundo campestre, povoado por seres absolutamente primários. Seres com instintos básicos e paixões selvagens que traduzem a barbárie ancestral de uma terra marcada pelo violência e pelo ódio. Em plena ressaca da Guerra Civil de Espanha, a um livro como este nada de bom se auguraria por terras de Espanha, onde um verme criminoso, baixote e barrigudo começava a deixar as suas marcas no papel de ditador. Assim, o livro teve a sua primeira edição na Argentina, o que não impediu um sucesso imediato. Haveria de tornar-se um dos mais lidos da língua castelhana.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, em 1916, na localidade de Iria Flávia, filho de pai espanhol e mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia, mas essencialmente acabaria por ser um escritor. Mais do que um romancista, um escritor, dono de um talento verbal difícil de igualar, com um estilo meticuloso, muito elaborado, misturando habilmente a rudeza e a ternura. A sua obra é multifacetada. Nela destacam-se os contos e, principalmente, os livros de viagens, como o célebre «Viaje a la Alcarria», incluído entre nós num volume das Edições Asa de título «Vagabundo ao Serviço de Espanha». Cela sempre foi um viajante incansável e provavelmente não há caminho em Espanha que não tenha calcorreado. Conheceu o êxito, mas também atraiu o ódio de muita gente, pela escrita, pelos temas que abordava, pelas opiniões que emitia. Tornou-se um dos mais traduzidos e estudados escritores espanhóis, mas também um dos mais polémicos. Nos últimos anos da sua vida, por exemplo, deram brado em Espanha as suas opiniões sobre a homossexualidade de Lorca.
O romance «A Família de Pascual Duarte» trata da história de um camponês dos arredores de Badajoz, filho de mãe espanhola e pai português (de seu nome Estêvão Duarte Diniz). A trama enquadra-se na perfeição no clima de ódio e vingança decorrente dos anos da guerra fratricida que envolveu o país vizinho. Camilo José Cela, curiosamente, dedica o livro aos seus inimigos, que – afirma – tanto o ajudaram na sua carreira. E autodenomina-se um «transcritor». É ele que acha o manuscrito de Pascual Duarte numa farmácia de Almendralejo, perto de Badajoz. É Almendralejo a terra de Pascual Duarte, uma terra que muitas décadas depois se tornaria bem conhecida com uma efémera subida do seu modesto clube, o Extremadura, à multimilionária primeira liga do futebol espanhol.
O «transcritor» acha que finalmente chegou a hora de publicar as folhas do manuscrito maldito (em 1942, três anos depois de o ter encontrado). «… só Deus sabe», diz ele, «que mãos desconhecidas ali as deixaram – fui-me entretendo de então para cá a traduzi-las, a ordená-las, uma vez que o manuscrito – em parte devido à má letra, em parte porque encontrei as folhas sem numeração e desordenadas – era pouco menos que ilegível.» Pascual Duarte, segundo Cela, «é um modelo de comportamento; não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer:/ – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia.» E depois acrescenta: «... talvez seja essa a única razão por que o trago à luz».
Pascual Duarte, tal como o «transcritor», dedica o seu manuscrito. Se Cela o faz a todos os seus inimigos, Pascual é mais modesto. Dedica-o assim: «À memória do insigne conterrâneo Dom Jesus Gonzáles de la Riva, conde de Torremejía, que no momento em que o autor desta narrativa o ia matar, lhe sorria e lhe chamava Pascualzinho.» Dom Jesus Gonzáles de la Riva era o amante da mãe de Pascual Duarte. Tanto ele como ela morreram às mãos do descontrolado Pascual. Pascual que no fim do relato conta a parte do assassinato da mãe. E depois acrescenta: «Larguei-a e saí a fugir. Choquei com a minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias.../ Podia respirar...»
Uma curiosidade final: já na década de 1990, bem depois de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, Camilo José Cela inscreveu-se num concurso literário. Fê-lo sob anonimato, como mandava o regulamento, e acabou por ganhar.
sexta-feira, 2 de março de 2007
Alface
«Deixem que esclareça um aspecto: dia em que o senhor Branco caísse na asneira de cogitar, de se debruçar sobre si próprio, meditando e especulando, empinando o juízo como se montasse um alazão a gasóleo, um dia assim era dia em que pessoa alguma conseguiria aguentar-se nas suas imediações. Nem mais perto.» Escrevia assim João Alfacinha da Silva (n. Montemor-o-Novo, 1949), que assinava os livros com o pseudónimo «Alface». Escrevia assim, e escrevia muito bem. É um bocadinho de um dos seus livros que fui roubar. Soube que morreu hoje. Uma notícia muito, muito triste.
Textos sobre livros – 14
Livro: «Diário Remendado – 1971-1975», de Luiz Pacheco (Publicações Dom Quixote, 286 pp.)
Imaginação para quê?
O diário de Luiz Pacheco em Massamá, com alguns cortes. Quatro anos que ajudam a compreender boa parte da sua vida, e boa parte da sua obra. Ou como o escritor libertino que chegou a duvidar da sua própria imaginação, afinal, teve sempre por perto matéria capaz de acudir a alguma eventual deficiência.
É uma sensação estranha a que me provoca a leitura do «Diário Remendado» de Luiz Pacheco. O autor, nascido a sete de Maio de 1925, começa o diário com 46 anos e termina-o com 50. E conta a sua vida, toda a enxurrada de acontecimentos (e desacontecimentos) que a vão tornando digna de nota, nem que seja nos cadernos onde vai escrevendo na casa alugada de Massamá. Só que a imagem que eu tenho de Luiz Pacheco – a imagem, entenda-se, imagem de foto; as ventas, ou as fuças, como talvez ele escrevesse – é a dos últimos anos: Pacheco já velho, no lar, mas com a desenvoltura de sempre no palavreado. E o «Diário Remendado» conta a vida dele a caminho dos 50 anos. Por isso é estranha a sensação (ainda por cima com as seis fotos do velho Pacheco na contracapa), eu a ler o que vai acontecendo na vida e na cabeça do escritor libertino, na primeira metade da década de 1970, e ao mesmo tempo com a imagem de um Pacheco de há poucos anos bem presente na minha cabeça. Daí a estranheza, e os esforços sucessivos que tenho de fazer para acreditar no que conta o autor sobre os seus dias – e os seus pensamentos, os seus sonhos, tantas coisas suas – de Massamá. Uma ajuda, no entanto, chegou-me há uns dias: um exemplar dos «Exercícios de Estilo» de Pacheco, a terceira edição da Estampa, com um Pacheco aí de uns 50 anos – parece-me – na capa; talvez consiga ler de forma diferente o «Diário Remendado» numa outra ocasião. Se mesmo assim não conseguir, problema meu, dirá muita gente (já Pacheco dirá coisa pior, por certo); mas adiante…
Veja eu a imagem de um velho a viver os acontecimentos do diário, ou faça já alguns progressos a ver o Pacheco aí com uns 50 anos da referida edição dos «Exercícios…», espanto-me com a sua vida imaginosa, com as suas tropelias por vezes inimagináveis, e continuo a ler. Não consigo desistir, por mais que o diário se meta por caminhos que, o mais certo, tratando-se de outro autor, seria fazerem-me arranjar-lhe logo um merecido (?) descanso na estante. Leio então, e espanto-me, é de novo a estranheza, mas não com a falta de verosimilhança de ver o tal Pacheco velho a viver as tropelias do Pacheco mais novo. É outra estranheza, a das dúvidas colocadas, a certa altura, pelo escritor libertino em relação à sua imaginação. Ele interroga-se… «E aqui bate o ponto que esta manhã me ocorreu: terei eu imaginação?» Continua no parágrafo seguinte… «A verdade, é fácil reconhecê-lo, é que até agora fiz muito pouco uso da imaginação nos meus escritos.» Depois mete-se a dar exemplos, referindo partes de escritos seus como «O Teodolito» ou «O Caso das Criancinhas Desaparecidas». Mais adiante escreve… «(…) das duas uma: ou não tenho imaginação que preste ou não soube até agora e por escrito fazer uso dela» E segue… «E esta hipótese lisonjeira é que me tenta. Se eu não tivesse imaginação nenhuma, como explicar então os meus sonhos quase todas as noites e à dúzia por noite? Ainda esta noite [de 27 para 28 de Abril de 1973, portanto], sonho portentoso e longo, a costumada viagem de comboio (necessidade de evasão?), agora com o Américo Thomaz e uma rapariga não identificada, mas em que me pareceu reconhecer, predominante na mistura de sugestões, a Rapariga da Testa Alta, por causa de quem escrevi ontem ao Jorge Ramos, poeta-bancário de Mangualde, o Manias que gosta de oferecer as mulheres aos amigos, convidá-los a irem para a cama com elas (a mim, com a Rapariga da Testa Alta, queria-me pagar dormida num hotel de Lisboa).
Parecem dúvidas desnecessárias estas do Pacheco a caminho dos 50, ou do Pacheco de agora. Porque a verdade é que não as retirou da edição que foi feita do diário, como fez com outras partes. Será importante saber se Luiz Pacheco tem ou não imaginação? Se a tem agora ou se a tinha em 1973, ou nalguma outra altura da sua vida em que escreveu? A vida de Luiz Pacheco, que é muito do que está na sua obra (e este diário é um exemplo disso), essa sua vida não será já suficientemente imaginosa para que ele dispense a imaginação quando escreve a contar o que lhe vai acontecendo e o que ele próprio vai fazendo acontecer? Talvez não tenha mesmo sido presenteado com uma grande imaginação, mas se tivesse, e em abundância, será que isso não teria contribuído para que na escrita contasse outras coisas e não aquilo que a ele próprio dizia respeito? Talvez conhecêssemos hoje um outro Luiz Pacheco, ou nem sequer o conhecêssemos. Isso é que seria, obviamente, de lamentar.
Imaginação para quê?
O diário de Luiz Pacheco em Massamá, com alguns cortes. Quatro anos que ajudam a compreender boa parte da sua vida, e boa parte da sua obra. Ou como o escritor libertino que chegou a duvidar da sua própria imaginação, afinal, teve sempre por perto matéria capaz de acudir a alguma eventual deficiência.
É uma sensação estranha a que me provoca a leitura do «Diário Remendado» de Luiz Pacheco. O autor, nascido a sete de Maio de 1925, começa o diário com 46 anos e termina-o com 50. E conta a sua vida, toda a enxurrada de acontecimentos (e desacontecimentos) que a vão tornando digna de nota, nem que seja nos cadernos onde vai escrevendo na casa alugada de Massamá. Só que a imagem que eu tenho de Luiz Pacheco – a imagem, entenda-se, imagem de foto; as ventas, ou as fuças, como talvez ele escrevesse – é a dos últimos anos: Pacheco já velho, no lar, mas com a desenvoltura de sempre no palavreado. E o «Diário Remendado» conta a vida dele a caminho dos 50 anos. Por isso é estranha a sensação (ainda por cima com as seis fotos do velho Pacheco na contracapa), eu a ler o que vai acontecendo na vida e na cabeça do escritor libertino, na primeira metade da década de 1970, e ao mesmo tempo com a imagem de um Pacheco de há poucos anos bem presente na minha cabeça. Daí a estranheza, e os esforços sucessivos que tenho de fazer para acreditar no que conta o autor sobre os seus dias – e os seus pensamentos, os seus sonhos, tantas coisas suas – de Massamá. Uma ajuda, no entanto, chegou-me há uns dias: um exemplar dos «Exercícios de Estilo» de Pacheco, a terceira edição da Estampa, com um Pacheco aí de uns 50 anos – parece-me – na capa; talvez consiga ler de forma diferente o «Diário Remendado» numa outra ocasião. Se mesmo assim não conseguir, problema meu, dirá muita gente (já Pacheco dirá coisa pior, por certo); mas adiante…
Veja eu a imagem de um velho a viver os acontecimentos do diário, ou faça já alguns progressos a ver o Pacheco aí com uns 50 anos da referida edição dos «Exercícios…», espanto-me com a sua vida imaginosa, com as suas tropelias por vezes inimagináveis, e continuo a ler. Não consigo desistir, por mais que o diário se meta por caminhos que, o mais certo, tratando-se de outro autor, seria fazerem-me arranjar-lhe logo um merecido (?) descanso na estante. Leio então, e espanto-me, é de novo a estranheza, mas não com a falta de verosimilhança de ver o tal Pacheco velho a viver as tropelias do Pacheco mais novo. É outra estranheza, a das dúvidas colocadas, a certa altura, pelo escritor libertino em relação à sua imaginação. Ele interroga-se… «E aqui bate o ponto que esta manhã me ocorreu: terei eu imaginação?» Continua no parágrafo seguinte… «A verdade, é fácil reconhecê-lo, é que até agora fiz muito pouco uso da imaginação nos meus escritos.» Depois mete-se a dar exemplos, referindo partes de escritos seus como «O Teodolito» ou «O Caso das Criancinhas Desaparecidas». Mais adiante escreve… «(…) das duas uma: ou não tenho imaginação que preste ou não soube até agora e por escrito fazer uso dela» E segue… «E esta hipótese lisonjeira é que me tenta. Se eu não tivesse imaginação nenhuma, como explicar então os meus sonhos quase todas as noites e à dúzia por noite? Ainda esta noite [de 27 para 28 de Abril de 1973, portanto], sonho portentoso e longo, a costumada viagem de comboio (necessidade de evasão?), agora com o Américo Thomaz e uma rapariga não identificada, mas em que me pareceu reconhecer, predominante na mistura de sugestões, a Rapariga da Testa Alta, por causa de quem escrevi ontem ao Jorge Ramos, poeta-bancário de Mangualde, o Manias que gosta de oferecer as mulheres aos amigos, convidá-los a irem para a cama com elas (a mim, com a Rapariga da Testa Alta, queria-me pagar dormida num hotel de Lisboa).
Parecem dúvidas desnecessárias estas do Pacheco a caminho dos 50, ou do Pacheco de agora. Porque a verdade é que não as retirou da edição que foi feita do diário, como fez com outras partes. Será importante saber se Luiz Pacheco tem ou não imaginação? Se a tem agora ou se a tinha em 1973, ou nalguma outra altura da sua vida em que escreveu? A vida de Luiz Pacheco, que é muito do que está na sua obra (e este diário é um exemplo disso), essa sua vida não será já suficientemente imaginosa para que ele dispense a imaginação quando escreve a contar o que lhe vai acontecendo e o que ele próprio vai fazendo acontecer? Talvez não tenha mesmo sido presenteado com uma grande imaginação, mas se tivesse, e em abundância, será que isso não teria contribuído para que na escrita contasse outras coisas e não aquilo que a ele próprio dizia respeito? Talvez conhecêssemos hoje um outro Luiz Pacheco, ou nem sequer o conhecêssemos. Isso é que seria, obviamente, de lamentar.
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