terça-feira, 6 de março de 2007

Textos sobre livros – 16


Livro: «Parque Gorki», de Martin Cruz Smith (Edições ASA, 456 pp.)

Num mundo desaparecido

Um dos mais notáveis romances sobre um mundo desaparecido, o da Guerra-fria, escrito poucos anos antes da queda do Muro de Berlim e da derrocado da União Soviética. «Parque Gorki» é o primeiro título de uma trilogia do escritor norte-americano Martin Cruz Smith.
Uma noite escura. Um Inverno ameno. Os faróis ofuscantes da carrinha de uma brigada de homicídios. Estamos em Moscovo, no célebre Parque Gorki. Da neve que cobre o parque surgem três cadáveres. Talvez «um trio embriagado de vodka que morrera alegremente de frio». Seria um trabalho comum para a brigada de homicídios. Mas não, os três cadáveres têm também por perto, e com um estranho interesse, gente do KGB. Não são bêbados mortos de frio, são três desconhecidos, com os rostos e os dedos mutilados; quem lhes levou a vida parece ter querido esconder as suas identidades para sempre, esconder tantas coisas.
É a partir deste episódio que começa uma investigação do polícia criado por Martin Cruz Smith, representado no grande ecrã – no caso de «Parque Gorki» – por William Hurt (o romance, escrito no início da década de 1980 foi rapidamente adaptado ao cinema por Michael Apted, tendo Hurt a seu lado nomes como Lee Marvin, Joana Pacula ou Brian DeNehy). Chama-se Arkadi Renko esse polícia e é filho de um herói soviético da segunda guerra mundial, a quem parece ter desiludido. «A estas horas podias ser general. O filho do Govorov comanda a região militar de Moscovo inteira. Com o meu nome ainda podias ter subido mais alto. Bem, eu sabia que não tinhas tomates para comandar a unidade de blindados mas, pelo menos, podias ter-te tornado um desses imbecis da secreta.» Isto diz o general ao filho, já «comido de cancro, bichoso», comido também pelas recordações, devorado por elas, sem um mínimo de piedade.
Mas Arkadi Renko não é bem o que diz o velho general. O pacato polícia, que tem por missão investigar os crimes banais de uma cidade que a ditadura comunista transformou num lugar onde nada acontece, vai viver a aventura da sua vida, estranhamente uma aventura que não parece representar nada de novo para ele. A procura da verdade vai levá-lo para bem longe do seu mundo limitado, e ele mantém-se imperturbável, seja com a vida pessoal completamente de pantanas, seja às voltas com o KGB, seja bem longe, no coração da própria América.
Esta primeira aventura de Renko (a ASA prevê publicar proximamente as outras duas, «Havana Bay» e «Red Star») acaba por constituir um retrato por vezes minucioso de uma União Soviética em decadência, devassada pelos espartilhos do regime de Moscovo, pela corrupção das elites e por uma miséria que parece endémica. É sem dúvida uma viagem apaixonante a um mundo desaparecido, o da Guerra-Fria, um mundo de cuja implosão ficaram muitos estilhaços. Recomenda-se cuidado nos pormenores, pois a história que Martin Cruz Smith conta tem por vezes aspectos à primeira vista um pouco confusos.

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