Livro: «Diário Remendado – 1971-1975», de Luiz Pacheco (Publicações Dom Quixote, 286 pp.)
Imaginação para quê?
O diário de Luiz Pacheco em Massamá, com alguns cortes. Quatro anos que ajudam a compreender boa parte da sua vida, e boa parte da sua obra. Ou como o escritor libertino que chegou a duvidar da sua própria imaginação, afinal, teve sempre por perto matéria capaz de acudir a alguma eventual deficiência.
É uma sensação estranha a que me provoca a leitura do «Diário Remendado» de Luiz Pacheco. O autor, nascido a sete de Maio de 1925, começa o diário com 46 anos e termina-o com 50. E conta a sua vida, toda a enxurrada de acontecimentos (e desacontecimentos) que a vão tornando digna de nota, nem que seja nos cadernos onde vai escrevendo na casa alugada de Massamá. Só que a imagem que eu tenho de Luiz Pacheco – a imagem, entenda-se, imagem de foto; as ventas, ou as fuças, como talvez ele escrevesse – é a dos últimos anos: Pacheco já velho, no lar, mas com a desenvoltura de sempre no palavreado. E o «Diário Remendado» conta a vida dele a caminho dos 50 anos. Por isso é estranha a sensação (ainda por cima com as seis fotos do velho Pacheco na contracapa), eu a ler o que vai acontecendo na vida e na cabeça do escritor libertino, na primeira metade da década de 1970, e ao mesmo tempo com a imagem de um Pacheco de há poucos anos bem presente na minha cabeça. Daí a estranheza, e os esforços sucessivos que tenho de fazer para acreditar no que conta o autor sobre os seus dias – e os seus pensamentos, os seus sonhos, tantas coisas suas – de Massamá. Uma ajuda, no entanto, chegou-me há uns dias: um exemplar dos «Exercícios de Estilo» de Pacheco, a terceira edição da Estampa, com um Pacheco aí de uns 50 anos – parece-me – na capa; talvez consiga ler de forma diferente o «Diário Remendado» numa outra ocasião. Se mesmo assim não conseguir, problema meu, dirá muita gente (já Pacheco dirá coisa pior, por certo); mas adiante…
Veja eu a imagem de um velho a viver os acontecimentos do diário, ou faça já alguns progressos a ver o Pacheco aí com uns 50 anos da referida edição dos «Exercícios…», espanto-me com a sua vida imaginosa, com as suas tropelias por vezes inimagináveis, e continuo a ler. Não consigo desistir, por mais que o diário se meta por caminhos que, o mais certo, tratando-se de outro autor, seria fazerem-me arranjar-lhe logo um merecido (?) descanso na estante. Leio então, e espanto-me, é de novo a estranheza, mas não com a falta de verosimilhança de ver o tal Pacheco velho a viver as tropelias do Pacheco mais novo. É outra estranheza, a das dúvidas colocadas, a certa altura, pelo escritor libertino em relação à sua imaginação. Ele interroga-se… «E aqui bate o ponto que esta manhã me ocorreu: terei eu imaginação?» Continua no parágrafo seguinte… «A verdade, é fácil reconhecê-lo, é que até agora fiz muito pouco uso da imaginação nos meus escritos.» Depois mete-se a dar exemplos, referindo partes de escritos seus como «O Teodolito» ou «O Caso das Criancinhas Desaparecidas». Mais adiante escreve… «(…) das duas uma: ou não tenho imaginação que preste ou não soube até agora e por escrito fazer uso dela» E segue… «E esta hipótese lisonjeira é que me tenta. Se eu não tivesse imaginação nenhuma, como explicar então os meus sonhos quase todas as noites e à dúzia por noite? Ainda esta noite [de 27 para 28 de Abril de 1973, portanto], sonho portentoso e longo, a costumada viagem de comboio (necessidade de evasão?), agora com o Américo Thomaz e uma rapariga não identificada, mas em que me pareceu reconhecer, predominante na mistura de sugestões, a Rapariga da Testa Alta, por causa de quem escrevi ontem ao Jorge Ramos, poeta-bancário de Mangualde, o Manias que gosta de oferecer as mulheres aos amigos, convidá-los a irem para a cama com elas (a mim, com a Rapariga da Testa Alta, queria-me pagar dormida num hotel de Lisboa).
Parecem dúvidas desnecessárias estas do Pacheco a caminho dos 50, ou do Pacheco de agora. Porque a verdade é que não as retirou da edição que foi feita do diário, como fez com outras partes. Será importante saber se Luiz Pacheco tem ou não imaginação? Se a tem agora ou se a tinha em 1973, ou nalguma outra altura da sua vida em que escreveu? A vida de Luiz Pacheco, que é muito do que está na sua obra (e este diário é um exemplo disso), essa sua vida não será já suficientemente imaginosa para que ele dispense a imaginação quando escreve a contar o que lhe vai acontecendo e o que ele próprio vai fazendo acontecer? Talvez não tenha mesmo sido presenteado com uma grande imaginação, mas se tivesse, e em abundância, será que isso não teria contribuído para que na escrita contasse outras coisas e não aquilo que a ele próprio dizia respeito? Talvez conhecêssemos hoje um outro Luiz Pacheco, ou nem sequer o conhecêssemos. Isso é que seria, obviamente, de lamentar.
Imaginação para quê?
O diário de Luiz Pacheco em Massamá, com alguns cortes. Quatro anos que ajudam a compreender boa parte da sua vida, e boa parte da sua obra. Ou como o escritor libertino que chegou a duvidar da sua própria imaginação, afinal, teve sempre por perto matéria capaz de acudir a alguma eventual deficiência.
É uma sensação estranha a que me provoca a leitura do «Diário Remendado» de Luiz Pacheco. O autor, nascido a sete de Maio de 1925, começa o diário com 46 anos e termina-o com 50. E conta a sua vida, toda a enxurrada de acontecimentos (e desacontecimentos) que a vão tornando digna de nota, nem que seja nos cadernos onde vai escrevendo na casa alugada de Massamá. Só que a imagem que eu tenho de Luiz Pacheco – a imagem, entenda-se, imagem de foto; as ventas, ou as fuças, como talvez ele escrevesse – é a dos últimos anos: Pacheco já velho, no lar, mas com a desenvoltura de sempre no palavreado. E o «Diário Remendado» conta a vida dele a caminho dos 50 anos. Por isso é estranha a sensação (ainda por cima com as seis fotos do velho Pacheco na contracapa), eu a ler o que vai acontecendo na vida e na cabeça do escritor libertino, na primeira metade da década de 1970, e ao mesmo tempo com a imagem de um Pacheco de há poucos anos bem presente na minha cabeça. Daí a estranheza, e os esforços sucessivos que tenho de fazer para acreditar no que conta o autor sobre os seus dias – e os seus pensamentos, os seus sonhos, tantas coisas suas – de Massamá. Uma ajuda, no entanto, chegou-me há uns dias: um exemplar dos «Exercícios de Estilo» de Pacheco, a terceira edição da Estampa, com um Pacheco aí de uns 50 anos – parece-me – na capa; talvez consiga ler de forma diferente o «Diário Remendado» numa outra ocasião. Se mesmo assim não conseguir, problema meu, dirá muita gente (já Pacheco dirá coisa pior, por certo); mas adiante…
Veja eu a imagem de um velho a viver os acontecimentos do diário, ou faça já alguns progressos a ver o Pacheco aí com uns 50 anos da referida edição dos «Exercícios…», espanto-me com a sua vida imaginosa, com as suas tropelias por vezes inimagináveis, e continuo a ler. Não consigo desistir, por mais que o diário se meta por caminhos que, o mais certo, tratando-se de outro autor, seria fazerem-me arranjar-lhe logo um merecido (?) descanso na estante. Leio então, e espanto-me, é de novo a estranheza, mas não com a falta de verosimilhança de ver o tal Pacheco velho a viver as tropelias do Pacheco mais novo. É outra estranheza, a das dúvidas colocadas, a certa altura, pelo escritor libertino em relação à sua imaginação. Ele interroga-se… «E aqui bate o ponto que esta manhã me ocorreu: terei eu imaginação?» Continua no parágrafo seguinte… «A verdade, é fácil reconhecê-lo, é que até agora fiz muito pouco uso da imaginação nos meus escritos.» Depois mete-se a dar exemplos, referindo partes de escritos seus como «O Teodolito» ou «O Caso das Criancinhas Desaparecidas». Mais adiante escreve… «(…) das duas uma: ou não tenho imaginação que preste ou não soube até agora e por escrito fazer uso dela» E segue… «E esta hipótese lisonjeira é que me tenta. Se eu não tivesse imaginação nenhuma, como explicar então os meus sonhos quase todas as noites e à dúzia por noite? Ainda esta noite [de 27 para 28 de Abril de 1973, portanto], sonho portentoso e longo, a costumada viagem de comboio (necessidade de evasão?), agora com o Américo Thomaz e uma rapariga não identificada, mas em que me pareceu reconhecer, predominante na mistura de sugestões, a Rapariga da Testa Alta, por causa de quem escrevi ontem ao Jorge Ramos, poeta-bancário de Mangualde, o Manias que gosta de oferecer as mulheres aos amigos, convidá-los a irem para a cama com elas (a mim, com a Rapariga da Testa Alta, queria-me pagar dormida num hotel de Lisboa).
Parecem dúvidas desnecessárias estas do Pacheco a caminho dos 50, ou do Pacheco de agora. Porque a verdade é que não as retirou da edição que foi feita do diário, como fez com outras partes. Será importante saber se Luiz Pacheco tem ou não imaginação? Se a tem agora ou se a tinha em 1973, ou nalguma outra altura da sua vida em que escreveu? A vida de Luiz Pacheco, que é muito do que está na sua obra (e este diário é um exemplo disso), essa sua vida não será já suficientemente imaginosa para que ele dispense a imaginação quando escreve a contar o que lhe vai acontecendo e o que ele próprio vai fazendo acontecer? Talvez não tenha mesmo sido presenteado com uma grande imaginação, mas se tivesse, e em abundância, será que isso não teria contribuído para que na escrita contasse outras coisas e não aquilo que a ele próprio dizia respeito? Talvez conhecêssemos hoje um outro Luiz Pacheco, ou nem sequer o conhecêssemos. Isso é que seria, obviamente, de lamentar.
1 comentário:
Acabo de envviar para o João pedro George, talvez o devolva ao Esplanar...
Abraço
CL
Enviar um comentário