Livro: «A Família de Pascual Duarte», de Camilo José Cela (Círculo de Leitores, 179 pp.)
O primeiro livro do viajante incansável
As linhas que vêm a seguir a este parágrafo foram escritas já há uns anos. São de um texto que fiz para uma rubrica sobre livros que tive numa rádio – o autor do livro em causa é o escritor galego Camilo José Cela (1916 – 2002).
«A Família de Pascual Duarte», um romance que fez sair a literatura espanhola dos campos ermos em que se encontrava. É o primeiro livro do escritor espanhol Camilo José Cela, celebrado Prémio Nobel da Literatura em 1989. Em 1942, ano em que foi publicado pela primeira vez, constituiu uma autêntica revelação, pela audácia, pela originalidade do tema e pelo carácter bronco e desgarrado do clima humano que ressalta a cada página. Com este livro a literatura espanhola regressou ao mundo popular, o mundo campestre, povoado por seres absolutamente primários. Seres com instintos básicos e paixões selvagens que traduzem a barbárie ancestral de uma terra marcada pelo violência e pelo ódio. Em plena ressaca da Guerra Civil de Espanha, a um livro como este nada de bom se auguraria por terras de Espanha, onde um verme criminoso, baixote e barrigudo começava a deixar as suas marcas no papel de ditador. Assim, o livro teve a sua primeira edição na Argentina, o que não impediu um sucesso imediato. Haveria de tornar-se um dos mais lidos da língua castelhana.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, em 1916, na localidade de Iria Flávia, filho de pai espanhol e mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia, mas essencialmente acabaria por ser um escritor. Mais do que um romancista, um escritor, dono de um talento verbal difícil de igualar, com um estilo meticuloso, muito elaborado, misturando habilmente a rudeza e a ternura. A sua obra é multifacetada. Nela destacam-se os contos e, principalmente, os livros de viagens, como o célebre «Viaje a la Alcarria», incluído entre nós num volume das Edições Asa de título «Vagabundo ao Serviço de Espanha». Cela sempre foi um viajante incansável e provavelmente não há caminho em Espanha que não tenha calcorreado. Conheceu o êxito, mas também atraiu o ódio de muita gente, pela escrita, pelos temas que abordava, pelas opiniões que emitia. Tornou-se um dos mais traduzidos e estudados escritores espanhóis, mas também um dos mais polémicos. Nos últimos anos da sua vida, por exemplo, deram brado em Espanha as suas opiniões sobre a homossexualidade de Lorca.
O romance «A Família de Pascual Duarte» trata da história de um camponês dos arredores de Badajoz, filho de mãe espanhola e pai português (de seu nome Estêvão Duarte Diniz). A trama enquadra-se na perfeição no clima de ódio e vingança decorrente dos anos da guerra fratricida que envolveu o país vizinho. Camilo José Cela, curiosamente, dedica o livro aos seus inimigos, que – afirma – tanto o ajudaram na sua carreira. E autodenomina-se um «transcritor». É ele que acha o manuscrito de Pascual Duarte numa farmácia de Almendralejo, perto de Badajoz. É Almendralejo a terra de Pascual Duarte, uma terra que muitas décadas depois se tornaria bem conhecida com uma efémera subida do seu modesto clube, o Extremadura, à multimilionária primeira liga do futebol espanhol.
O «transcritor» acha que finalmente chegou a hora de publicar as folhas do manuscrito maldito (em 1942, três anos depois de o ter encontrado). «… só Deus sabe», diz ele, «que mãos desconhecidas ali as deixaram – fui-me entretendo de então para cá a traduzi-las, a ordená-las, uma vez que o manuscrito – em parte devido à má letra, em parte porque encontrei as folhas sem numeração e desordenadas – era pouco menos que ilegível.» Pascual Duarte, segundo Cela, «é um modelo de comportamento; não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer:/ – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia.» E depois acrescenta: «... talvez seja essa a única razão por que o trago à luz».
Pascual Duarte, tal como o «transcritor», dedica o seu manuscrito. Se Cela o faz a todos os seus inimigos, Pascual é mais modesto. Dedica-o assim: «À memória do insigne conterrâneo Dom Jesus Gonzáles de la Riva, conde de Torremejía, que no momento em que o autor desta narrativa o ia matar, lhe sorria e lhe chamava Pascualzinho.» Dom Jesus Gonzáles de la Riva era o amante da mãe de Pascual Duarte. Tanto ele como ela morreram às mãos do descontrolado Pascual. Pascual que no fim do relato conta a parte do assassinato da mãe. E depois acrescenta: «Larguei-a e saí a fugir. Choquei com a minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias.../ Podia respirar...»
Uma curiosidade final: já na década de 1990, bem depois de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, Camilo José Cela inscreveu-se num concurso literário. Fê-lo sob anonimato, como mandava o regulamento, e acabou por ganhar.
O primeiro livro do viajante incansável
As linhas que vêm a seguir a este parágrafo foram escritas já há uns anos. São de um texto que fiz para uma rubrica sobre livros que tive numa rádio – o autor do livro em causa é o escritor galego Camilo José Cela (1916 – 2002).
«A Família de Pascual Duarte», um romance que fez sair a literatura espanhola dos campos ermos em que se encontrava. É o primeiro livro do escritor espanhol Camilo José Cela, celebrado Prémio Nobel da Literatura em 1989. Em 1942, ano em que foi publicado pela primeira vez, constituiu uma autêntica revelação, pela audácia, pela originalidade do tema e pelo carácter bronco e desgarrado do clima humano que ressalta a cada página. Com este livro a literatura espanhola regressou ao mundo popular, o mundo campestre, povoado por seres absolutamente primários. Seres com instintos básicos e paixões selvagens que traduzem a barbárie ancestral de uma terra marcada pelo violência e pelo ódio. Em plena ressaca da Guerra Civil de Espanha, a um livro como este nada de bom se auguraria por terras de Espanha, onde um verme criminoso, baixote e barrigudo começava a deixar as suas marcas no papel de ditador. Assim, o livro teve a sua primeira edição na Argentina, o que não impediu um sucesso imediato. Haveria de tornar-se um dos mais lidos da língua castelhana.
Camilo José Cela nasceu na Galiza, em 1916, na localidade de Iria Flávia, filho de pai espanhol e mãe inglesa. Estudou Direito, Medicina e Filosofia, mas essencialmente acabaria por ser um escritor. Mais do que um romancista, um escritor, dono de um talento verbal difícil de igualar, com um estilo meticuloso, muito elaborado, misturando habilmente a rudeza e a ternura. A sua obra é multifacetada. Nela destacam-se os contos e, principalmente, os livros de viagens, como o célebre «Viaje a la Alcarria», incluído entre nós num volume das Edições Asa de título «Vagabundo ao Serviço de Espanha». Cela sempre foi um viajante incansável e provavelmente não há caminho em Espanha que não tenha calcorreado. Conheceu o êxito, mas também atraiu o ódio de muita gente, pela escrita, pelos temas que abordava, pelas opiniões que emitia. Tornou-se um dos mais traduzidos e estudados escritores espanhóis, mas também um dos mais polémicos. Nos últimos anos da sua vida, por exemplo, deram brado em Espanha as suas opiniões sobre a homossexualidade de Lorca.
O romance «A Família de Pascual Duarte» trata da história de um camponês dos arredores de Badajoz, filho de mãe espanhola e pai português (de seu nome Estêvão Duarte Diniz). A trama enquadra-se na perfeição no clima de ódio e vingança decorrente dos anos da guerra fratricida que envolveu o país vizinho. Camilo José Cela, curiosamente, dedica o livro aos seus inimigos, que – afirma – tanto o ajudaram na sua carreira. E autodenomina-se um «transcritor». É ele que acha o manuscrito de Pascual Duarte numa farmácia de Almendralejo, perto de Badajoz. É Almendralejo a terra de Pascual Duarte, uma terra que muitas décadas depois se tornaria bem conhecida com uma efémera subida do seu modesto clube, o Extremadura, à multimilionária primeira liga do futebol espanhol.
O «transcritor» acha que finalmente chegou a hora de publicar as folhas do manuscrito maldito (em 1942, três anos depois de o ter encontrado). «… só Deus sabe», diz ele, «que mãos desconhecidas ali as deixaram – fui-me entretendo de então para cá a traduzi-las, a ordená-las, uma vez que o manuscrito – em parte devido à má letra, em parte porque encontrei as folhas sem numeração e desordenadas – era pouco menos que ilegível.» Pascual Duarte, segundo Cela, «é um modelo de comportamento; não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer:/ – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia.» E depois acrescenta: «... talvez seja essa a única razão por que o trago à luz».
Pascual Duarte, tal como o «transcritor», dedica o seu manuscrito. Se Cela o faz a todos os seus inimigos, Pascual é mais modesto. Dedica-o assim: «À memória do insigne conterrâneo Dom Jesus Gonzáles de la Riva, conde de Torremejía, que no momento em que o autor desta narrativa o ia matar, lhe sorria e lhe chamava Pascualzinho.» Dom Jesus Gonzáles de la Riva era o amante da mãe de Pascual Duarte. Tanto ele como ela morreram às mãos do descontrolado Pascual. Pascual que no fim do relato conta a parte do assassinato da mãe. E depois acrescenta: «Larguei-a e saí a fugir. Choquei com a minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias.../ Podia respirar...»
Uma curiosidade final: já na década de 1990, bem depois de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, Camilo José Cela inscreveu-se num concurso literário. Fê-lo sob anonimato, como mandava o regulamento, e acabou por ganhar.
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