Décima primeira crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Esta é a da edição de Abril de 2009.
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Estados de alma
Sábado. Véspera de domingo de Páscoa. Fiquei de me encontrar com um amigo, ex-colega de faculdade, professor na Universidade de Évora e escritor. Foi precisamente para me oferecer um livro seu de poesia, recém-lançado, que nos achámos em Lisboa, a meio da tarde, ali no Largo da Graça, com a memória de Natália Correia ao lado e o castelo à vista.
Sentámo-nos na esplanada, apesar da brisa fria, para um café e uma troca de coscuvilhices nossas. As minhas filhas (que a família foi inteira), para entreter, pediram um pastel de nata e umas batatas fritas. Sobre a mesa, a dada altura, chávenas vazias, uma garrafa de água, quatro livros de dádiva e um prato com migalhas. E nós à roda dela, da mesa, discorrendo.
Inesperadamente, e em voo picado, um pardalito atrevido (espécie de pardal-ladrão) amesou, patas na borda do prato, e vá de debicar as sobras, todo ele vagar, como se estivesse entre os seus, regalando-se. A um movimento nosso abriu asas e afastou-se com ar de quem regressa pronto. E retornou, com o mesmo à-vontade de antes, estava já o telemóvel armado para a foto. E mais uns pedacinhos agridoces, com avidez. Disparei. Assustou-se o matreiro e, num ápice, avesso a retratos, desapareceu por entre a folhagem das árvores que nos sombreavam, sem agradecer o festim.
Tenho para mim que ainda por lá anda, feito amigo, comungando das iguarias e dos trinados alheios, como num campo farto de mantimento. A cidade tem destas coisas!
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Estados de alma
Sábado. Véspera de domingo de Páscoa. Fiquei de me encontrar com um amigo, ex-colega de faculdade, professor na Universidade de Évora e escritor. Foi precisamente para me oferecer um livro seu de poesia, recém-lançado, que nos achámos em Lisboa, a meio da tarde, ali no Largo da Graça, com a memória de Natália Correia ao lado e o castelo à vista.
Sentámo-nos na esplanada, apesar da brisa fria, para um café e uma troca de coscuvilhices nossas. As minhas filhas (que a família foi inteira), para entreter, pediram um pastel de nata e umas batatas fritas. Sobre a mesa, a dada altura, chávenas vazias, uma garrafa de água, quatro livros de dádiva e um prato com migalhas. E nós à roda dela, da mesa, discorrendo.
Inesperadamente, e em voo picado, um pardalito atrevido (espécie de pardal-ladrão) amesou, patas na borda do prato, e vá de debicar as sobras, todo ele vagar, como se estivesse entre os seus, regalando-se. A um movimento nosso abriu asas e afastou-se com ar de quem regressa pronto. E retornou, com o mesmo à-vontade de antes, estava já o telemóvel armado para a foto. E mais uns pedacinhos agridoces, com avidez. Disparei. Assustou-se o matreiro e, num ápice, avesso a retratos, desapareceu por entre a folhagem das árvores que nos sombreavam, sem agradecer o festim.
Tenho para mim que ainda por lá anda, feito amigo, comungando das iguarias e dos trinados alheios, como num campo farto de mantimento. A cidade tem destas coisas!
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Surpresa! Em tempo de crise ainda há boas e reconfortantes surpresas. Clarifiquemos. Depois de mais de dois meses de ausência forçada, por razões de doença, regressei às aulas. Ouvi rumores de que os alunos, no geral (e ao contrário do que deles quase sempre cremos), perguntavam pela minha saúde, me desejavam as melhoras e me aguardavam com impaciência. É verdade que uns quantos, em jeito de delegação, me chegaram a visitar no hospital, mas daí a não estarem desejosos de umas férias prolongadas…Pois bem, regressado, foi de facto o reencontro caloroso e afável. Uma turma tomou mesmo a iniciativa de, a meio de uma aula, me oferecer um ramo de lírios (tão bonitos como o próprio gesto). Uma aluna fez questão de justificar esta simbólica opção – segundo ela, estas flores têm a particularidade de florescer uma segunda vez. E quem sou eu para duvidar de uma metáfora?! Agradeci, sensibilizado, e tornei-me no momento um professor menos descrente…
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Sábado. Vinte e cinco de Abril. Assisti em casa às celebrações oficiais, sobretudo às que encheram a sala e as galerias do hemiciclo em S. Bento salpicadas de vermelho. Ouvi os discursos, uns mais ressequidos do que outros, uns mais inflamados do que outros, uns mais ajaezados do que outros, uns mais do que os outros, e em todos me pareceu ecoar um antanho quadro realista queirosiano. Não saí hoje à Avenida da Liberdade, mas estive lá, em liberdade, com a turba. Escolhi desoprimir-me na poesia, embebendo-me em versos como em cravos. Festejei à minha maneira.Joaquim Pessoa acompanhou-me, em hinos de amor, de «Amor Combate» – «(…) Deixa-me soltar estas palavras amarradas/ para escrever com sangue o nome que inventei./ Romper. Ganhar a voz duma assentada./ Dizer de ti as coisas que eu não sei./ Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada./ Amor-verdade. Amor-cidade./ Amor-combate. Amor-abril./ Este amor de liberdade.»
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