Lembro-me perfeitamente do dia 25 de Abril de 1974, apesar de ter então apenas seis anos. Melhor, se alguém me aparecer com a velha pergunta de onde é que estava no 25 de Abril, não terei dificuldade em responder, ainda que nessa altura nem sequer andasse na escola. No dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira, fui para a casa da minha avó materna; fui logo de manhã. Das conversas que escutava à minha volta, ia percebendo que algo de estranho se passava, mas não entendia o que era. Para mim, todas as figuras que dominavam o país, fosse lá como fosse, pouco significavam. Uma vez, creio que um ano ou dois antes, tinha dado de caras com o presidente da República, Américo Tomás, depois de sair da missa; foi num domingo de manhã. O velhote ia a descer uma das ruas de Monchique, perante a multidão embasbacada e submissa, menos preocupada com ele do que com os guardas que não hesitavam em distribuir encontrões e o que mais fosse necessário. No meio de tanto burburinho, ainda me apertou a mão, enquanto dizia:
– Menino, menino.
Fiquei todo cheio de orgulho, e só daí a alguns anos é que percebi o quanto tal orgulho era ridículo. Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com o Mário Soares à frente de uma multidão ululante, com pessoas de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me medo, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos haviam desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho presidente-almirante, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Só mais tarde percebi que estava enganado, que o presidente do ditador Salazar não era tão bom como isso, assim como o Mário Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava adivinhar. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao domingo, pelo fim da manhã, em vilas do interior de Portugal.
O dia 25 de Abril de 1974, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, o substituto de Salazar, Marcello Caetano, ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos. Ou então já tinha perdido a esperança completamente; isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de Direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos deles ainda de uso corrente. A imagem com que fiquei de Caetano é a de um homem a preto e branco, como a maioria dos homens do regime só de homens daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia muito bem ser da televisão, igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que o velho Tomás me apertou a mão (Tomás, por vezes, até tinha a mania de andar com a farda branca da marinha, mas daquela vez estava de fato preto). Era a forma como todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons de cinzento. Creio mesmo que naquele mundo kafkiano a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até os que mais tarde regressaram vestidos de cores garridas.
Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei por quê nem como, se calhar porque não conseguia dar outro uso à faca, cortei-me no dedo polegar da mão esquerda. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo, com seis anos, deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, tal como os militares, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo que ia assegurar a transição para aquilo a que chamavam democracia. Para mim, com seis anos, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE, a polícia política do regime (com o sonso Caetano camuflada com o pomposo e enganador nome de Direcção-Geral de Segurança), alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que mesmo sendo os substitutos dos maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o locutor, o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.
– Menino, menino.
Fiquei todo cheio de orgulho, e só daí a alguns anos é que percebi o quanto tal orgulho era ridículo. Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com o Mário Soares à frente de uma multidão ululante, com pessoas de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me medo, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos haviam desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho presidente-almirante, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Só mais tarde percebi que estava enganado, que o presidente do ditador Salazar não era tão bom como isso, assim como o Mário Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava adivinhar. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao domingo, pelo fim da manhã, em vilas do interior de Portugal.
O dia 25 de Abril de 1974, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, o substituto de Salazar, Marcello Caetano, ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos. Ou então já tinha perdido a esperança completamente; isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de Direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos deles ainda de uso corrente. A imagem com que fiquei de Caetano é a de um homem a preto e branco, como a maioria dos homens do regime só de homens daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia muito bem ser da televisão, igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que o velho Tomás me apertou a mão (Tomás, por vezes, até tinha a mania de andar com a farda branca da marinha, mas daquela vez estava de fato preto). Era a forma como todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons de cinzento. Creio mesmo que naquele mundo kafkiano a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até os que mais tarde regressaram vestidos de cores garridas.
Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei por quê nem como, se calhar porque não conseguia dar outro uso à faca, cortei-me no dedo polegar da mão esquerda. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo, com seis anos, deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, tal como os militares, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo que ia assegurar a transição para aquilo a que chamavam democracia. Para mim, com seis anos, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE, a polícia política do regime (com o sonso Caetano camuflada com o pomposo e enganador nome de Direcção-Geral de Segurança), alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que mesmo sendo os substitutos dos maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o locutor, o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.
2 comentários:
Também fiquei com um dedo azul, quando a roda de um carrinho de rolamentos me passou por cima do polegar direito.
Ainda hoje estou para perceber como não parti o dedo.
Não era 25 de Abril.
Grande golpe, apenas com seis anos...
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