sexta-feira, 19 de novembro de 2010

António Souto – Crónica (30)

Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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Um acto com muitas cenas
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Tudo se iniciou antes dele, muito antes dele. Tudo se prolongará para além dele, muito para além dele. Um cenário de crise anunciada. Uma crise real, um mau cenário.)
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Cena I
Dia 29 de Outubro, final de um Conselho de Estado e fim de sexta-feira (aziago, como muitas sextas). O presidente da República insiste que há muito sabia dos desatinos e dos sérios problemas que Portugal enfrentava e que não se coibiu de chamar a atenção para eles e etcetera e tal. Mas sempre com a discrição que o assunto exigia. Um presidente, portanto, discretíssimo. O Conselho de Estado, discretamente convocado, por sua discreta iniciativa, confirma que a situação é efectivamente crítica e que urge um entendimento.
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Cena II
Dia 30, sábado de temporal, dia seguinte e véspera do Dia Mundial da Poupança, sabemos que afinal há concertação, mas desconcertada, e que à poupança, a bem ou a mal, ninguém haverá de escapar, mesmo que não tenha mais para poupar do que as unhas, coisa nossa que sempre cresce.
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Cena III
Eduardo Catroga (protagonista da oposição) faz uma extensa e repetitiva declaração. Um delírio de protagonismo pessoal e institucional! O entendimento-acordo fora assinado. Às vinte e três horas e dezanove minutos! A precisão do tempo zelosamente captada. O rigor do espectáculo. Com o artifício das palavras.
«Vou guardar no meu álbum esta fotografia tirada pelo meu staff, para juntar aos milhares de negociações que levo nos meus 68 anos e mais de 45 anos de experiência profissional.»
«As condições minimalistas que eu tinha apresentado na terça aproximavam-se das que agora estão no acordo. Se as tivéssemos aceitado na terça, podíamos ter evitado ao país o espectáculo de quarta, o espectáculo de quinta, o espectáculo de sexta e o espectáculo que estamos a dar hoje aqui».
O espectáculo. O mau espectáculo a condizer com o mau cenário.
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Cena IV
Teixeira dos Santos (protagonista residente), em menos de um terço do tempo, justifica um entendimento que, pelos vistos, não é bem um entendimento. Porém, é tudo a sério, muito a sério. Como as palavras, o artifício também das palavras.
«Este é o orçamento mais importante dos últimos 25 anos.»
«O governo manifestou o seu sentido de responsabilidade e de coragem.»
«Com este entendimento o país vai ter o seu orçamento e evita-se assim uma crise.»
«Um orçamento que vai ter custos, um agravamento em mais de 500 milhões de euros que terá de ser agora compensado.»
«Um orçamento em que o PSD quis dourar a pílula.»
«Agora é preciso que o PSD apoie as medidas necessárias para que se assegure o cumprimento do défice de quatro vírgula seis.»
«Gostaria de ter podido tirar uma fotografia aqui com o senhor professor Eduardo Catroga a assinar o acordo, mas tal não foi possível, já que não houve vontade de conferência de imprensa conjunta.»
Só faltou mesmo a fotografia. E, pelos vistos, faltou igualmente o staff.
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(O cidadão-espectador resigna-se a assistir, com pouca ou nenhuma vontade já de aplaudir, com nenhumas forças para protestar.)
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Cena V
Dia dois de Novembro, um debate muito pouco debate, um debate muito retórico e muito pouco edificante, um debate de acusações que toda a gente já ouviu e leu. Um hemiciclo, afinal, muito redondo.
Questões de fundo, praticamente nada, apenas uma polifonia gasta, reincidente e aborrecida.
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(Mais do que isto, só a repetição incontinente dos comentadores que, em directo, têm o condão de amofinar os telespectadores com interpretações sobrepostas.)
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Cena VI
Meia dúzia de dias após, fim da acumulação das pensões e de salários na função pública.
«Pouco impacto na poupança, mas é uma questão de moralização.»
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(O cidadão percebe agora que são precisos muitos anos para concluir que é imoral aquilo que era já imoral!)
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Cena VII
A dívida pública dispara. Os juros também. Paira o espectro do FMI. Os mercados internacionais fingem ameaçar. Tudo soberano. Tudo enredo. Tudo fábula.
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Outras cenas
Os mercados internacionais indiciam tréguas. As sondagens baralham as intenções de voto. As oposições não são mais do que isso. Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Um orçamento mau e simultaneamente menos mau. Um acordo bom e simultaneamente menos bom e simultaneamente mau. Um encenador fora de cena. Actores definitivamente personagens num mau cenário e numa má peça. Um guião que já não serve.)
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Crónica de Novembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29.
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3 comentários:

Jaime disse...

Não há happy end possível. Mas a culpa não é só dos actores, é também de muitos espectadores.

Anónimo disse...

Meu bom amigo António Souto, seria muito bom que continuasses a actualizar estas páginas. Não nos ajudam só a passar o tempo auxiliam-nos a pensar. Um abraço,
Ermelinda Melo, Guimarães

a. souto disse...

1) "Jaime",estou inclinado a pensar o mesmo, mas também é verdade que não é apenas uma andorinha que faz a Primavera (nem esta deixa de haver por morrer aquela);
2) Ermelinda, esta crónica tem uma regularidade mensal, e aqui cabe apenas pela gentileza do meu amigo António Venda que graciosamente a acolhe no seu blogue. Mas obrigado pelas palavras de estímulo e amizade.