quinta-feira, 20 de maio de 2010

António Souto – Crónica (24)

Maio com páginas desirmanadas
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Anda-se pelo Parque Eduardo VII à vontade, os pavilhões estão libertos, para cima e para baixo quase ninguém, o negócio parece desmaiado. As barracas de comes e bebes vêem-se em toda a largueza por falta de freguesia. A gente tem tempo e vista para lhes ler os nomes: «Pipocas da Joaninha», «O Otário das farturas e dos churros»…
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Terça-feira, quatro de Maio, ida à Feira do Livro, pelas três da tarde. Bom tempo, nem muito calor nem muito frio, vento sossegado, tudo muito tranquilo a condizer com um dia normal de semana. Anda-se pelo Parque Eduardo VII à vontade, os pavilhões estão libertos, para cima e para baixo quase ninguém, o negócio parece desmaiado. As barracas de comes e bebes vêem-se em toda a largueza por falta de freguesia. A gente tem tempo e vista para lhes ler os nomes: «Pipocas da Joaninha», «O Otário das farturas e dos churros», «Farturas à Scalabitana», «O Pançudo das Bifanas», «Noites de Luar» (tipo Snack), «Roulotte da Manú» (sic). E quarteirão sim quarteirão não, barracas só para os cafés. O que a gente não viu foram as casinhas tipo-guaritas para as necessidades ou os prestáveis multibancos, como no ano passado ali havia à mão de semear. Mesmo assim, ainda se trouxeram uns livritos para casa, que a vontade de palavras continua sendo maior que quase todas as outras vontades.
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O Benfica ganhou a Liga, há quem diga que graças a Jesus (em vez de graças a Deus), e os Paços do Município abriram-se de par em par para acolher a vitória. As câmaras municipais gostam sempre que os seus clubes ganhem aos outros e gostam de lhes agradecer. No Norte como no Sul como no Centro. Os executivos são executivos e os presidentes sempre presidentes. Mais presidentes ainda quando têm vitórias para celebrar. O Porto também já fez a sua festa, alçando a Taça de Portugal. O Sporting, havendo justiça, há-de igualmente bendizer qualquer coisa um dia destes, que a trindade é una. Tudo uma questão de tempo.
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O Papa veio a Portugal. O Papa veio mesmo com cinza a pairar nos céus da Europa e do Vaticano. O Papa andou aqui no meio de nós, e por cima de nós, na capital da pátria, na capital de Nossa Senhora e na capital das Terras de Santa Maria. Esteve aqui como nunca antes estivera, na sua condição de Sua Santidade. Meio país parou e meio país invejou não ter parado. No grande dia de tolerância, os descrentes, menos crentes e comodistas ficaram em casa; dos demais, os que tinham GPS rumaram a Fátima, os que não tinham, desorientados, foram parar ao Algarve, onde o céu é mais azul e os milagres também acontecem. Tudo questão de fé.
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Sábado, 15 de Maio, segunda ronda pela Feira do Livro. Uma tarde agradável, pouco ventosa, ar soalheiro e um mar de gente. Animação a valer com o grupo musical Kumpania Algazarra, leites e cereais da Nestlé distribuídos a quem passa e se firma neles, bonés, blocos de apontamentos e canetas do Millenium para atrair crianças e seduzir progenitores, escreventes e ilustradores salpicados por todo o lado. O espaço Leya a abarrotar de leitores e de consumidores, reais e virtuais, e a dada altura, em duas pracinhas, um monte de escritores, para cima de uma dúzia, publicitando-se uns aos outros ou olhando-se de esguelha em jeito de deferência ou de dor de cotovelo. Mas festa é festa, e melhor se ao sabor das páginas. Páginas que, por dádiva do Benfica e do Papa, se vão continuar a voltar por mais uma semana, para gáudio dos mercadores…
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E enquanto dura a Feira, dura o vaticínio da crise.
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Pedro Passos Coelho, num golpe de destreza, conforta o Governo num reclamado sacrifício que o leva a pedir desculpa aos portugueses. Um gesto imprescindível de, como temperou, «não dar as mãos ao Governo, mas ao país» para evitar «situações mais graves». O homem da oposição tem requinte, só não se sabe a que portugueses pede ele desculpas e por que razão há-de pedir desculpas aos portugueses. Se ao menos pedisse desculpas a quem o elegeu… Mas ele lá sabe com que retórica se cose (ou coze).
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Já nós, que há uma temporada andamos desconsolados com estas mal-andanças, estamos em crer que o chefe do Governo se deve cuidar, que o culto da liderança (espécie de «personalização« num dizer mais bondoso de Paulo Pedroso) poucas ou nenhumas boas memórias nos traz. E a teimosia altaneira, com mais ou menos considerandos, acaba por se pagar a um preço quase sempre elevado. E o Partido Socialista, pelos seus princípios matriciais, não deveria merecer tal custo, por muito global que seja a crise e dure o vaticínio.
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Crónica de Maio de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23.
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Imagem: pormenor de foto publicada no «Blogtailors».
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2 comentários:

Luís Graça disse...

Bati todos os recordes negativos.
Quase não estive na Feira.
A militância também se perde. Começamos a esquecer-nos do que mais gostamos, quando as coisas começam a mudar demasiado.

António Souto disse...

Ó Luís, que desânimo vem a ser esse? E o que mudou assim tanto?
Um dia destes terás novidades nossas, e logo verás que pouco muda, afinal, quando falamos de palavras!
Grande abraço.