segunda-feira, 26 de abril de 2010

António Souto – Crónica (23)

Páscoa com mesa posta
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Pois bem, nesta escola ainda lá está, cravada na parede, uma laje marmórea que reza mais ou menos assim: «Esta escola foi inaugurada pelo Senhor Ministro da Educação, Professor Veiga Simão, em 26 de Março de 1974.» Curioso, um mês antes da revolução de Abril, quiçá um dos últimos estabelecimentos de ensino inaugurados em antigo regime. E ali permanecem intactas, escola e placa, alheias ao tempo, aos pinheiros que as aconchegam e à democracia.
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Para não querer parecer diferente, fui passar a Páscoa à terra. Ou melhor, fui passá-la às terras, que é uma das vantagens do matrimónio quando os consortes vêm de lugares distintos.
Ficou assente que o almoço e o jantar de sábado de Páscoa seria num sítio, e assente ficou que o almoço de domingo seria noutro. Isto é: para os remansos de Viseu, primeiro; depois, para as orlas de Aveiro.
A coisa começou por correr bem até ao fim da manhã de domingo, ocasião em que se empreende a viagem para o segundo destino, para outro repasto convivial, em família também. O carro, que até aí se portara bem, que é isso que se espera de qualquer um com motor e quatro rodas, começa a resfolegar e vá de imobilizar-se à saída da povoação, como a querer dizer que a festa se teria de prolongar neste poiso por mais um tempinho. E assim foi, com mudança de estratégia para remediar e suavizar o transtorno, que foi muito, tratando-se, como era o caso, não apenas de um domingo, dia de descanso, mas de um domingo de Páscoa, de cerimónias religiosas e de amesendamento privado, de ser também dia-véspera-de-segunda-feira-de-Páscoa, que o mesmo é dizer não serem estes dias de enfadar qualquer alma.
E porque foi assim, por ali ficámos, por Beijós (concelho do Carregal do Sal), hospedados em casa de uns amigos e celebrando à nossa maneira em casa de outros, que a solidariedade é coisa que não escasseia por aqueles povoados. E o «ficarmos», com gosto, diga-se para abono da verdade, permitiu-nos observar singularidades que as mais das vezes escapam a viandantes.
No lugar das Laceiras (algures entre Cabanas de Viriato e Canas de Senhorim) há um largo de romaria com uma igreja dedicada a Nossa Senhora dos Milagres, um largo que pelo menos numa semana de Verão se enche de gente da terra e de forasteiros para celebrar com procissão e farra a festa que tem o nome da Senhora.
Num terreno contíguo ao dito terreiro há uma casinha baixa que outrora fora escola e hoje serve de guarida a uma associação local. Segundo por ali se acusa, como esta há muitas outras escolinhas igualmente encerradas por estes povos em redor, que agora as crianças são todas orientadas para uma escola maior no Carregal. Pois bem, nesta escola ainda lá está, cravada na parede, uma laje marmórea que reza mais ou menos assim: «Esta escola foi inaugurada pelo Senhor Ministro da Educação, Professor Veiga Simão, em 26 de Março de 1974.» Curioso, um mês antes da revolução de Abril, quiçá um dos últimos estabelecimentos de ensino inaugurados em antigo regime. E ali permanecem intactas, escola e placa, alheias ao tempo, aos pinheiros que as aconchegam e à democracia.
Segunda-feira de Páscoa. Fui ao Penedo, pequeno e recatado sítio do concelho de Tondela. Havia ali uma festa grande com procissão e foguetes. Tudo em honra da Nossa Senhora das Preces, que apesar de ser grande a festa se acolhe numa minúscula capela recentemente restaurada, ainda com perfume a novo. Um pequeno coro acompanhou a eucaristia. Uma banda filarmónica (de Santar) acompanhou a procissão. O pároco, entidade atenta, lisonjeou tanto um como outra – afinal de contas, coro e banda repetentes nestes ofícios da terra – e não deixou de esclarecer não se ter dado conta de haver no cortejo duas Nossas Senhoras de Fátima, em dois andores ornamentados a preceito, e que no próximo ano só uma sairia à rua. Que ficasse claro. E terá ficado claro. No final, tudo convidado para o lanche previsto pelos mordomos (ou mordomas) e restante organização. Duas mesas fartas com comes e bebes, tudo à grande e com entrada livre. Uma honra concedida à comunidade e demais chegados, um fraterno gesto de gente anfitriã.
Na terça-feira, cada um à sua vida. Reparado o carro, e também para não querer parecer diferente, rumei a sul (com um pulinho à Veneza do litoral) e entrei de caras na capital e na rotina. Ainda em Abril, com águas mil.
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Crónica de Abril de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22.
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2 comentários:

beijokense disse...

Aprecio que tenha gostado de Beijós e arredores.

Essa "de haver no cortejo duas Nossas Senhoras de Fátima" já me deixou bem disposto para o resto do dia :)

António Souto disse...

Caro/cara "beijokense", ainda bem que lhe despertei a boa disposição, e creia que nestas observações não há maledicência, mas um modo afectuoso de traduzir locais e pessoas agradáveis que vou, por motivos familiares e de amizade, descobrindo! Abraço