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segunda-feira, 13 de maio de 2013

António Souto – Crónica (58)


O escritor João Tordo, num encontro com jovens estudantes do secundário, discorreu um pouco sobre a génese dos seus romances e, a propósito, desvendou o modo como se inspirou para iniciar dois deles, e quando a plateia esperava por uma prelecção que pusesse a tónica numa divina fonte de inspiração ou num minucioso labor geométrico, ficou sabendo que muitas vezes tudo acontece por obra de um acaso, de um auspicioso abrir e fechar de olhos…

A deixa
Uma história pode começar como a gente a bem quiser contar. Isto sou eu a dizê-lo, bem entendido, que uma coisa é o mote e outra coisa é glosá-lo, dar-lhe as voltas necessárias e concertadas. O escritor João Tordo, há escassos dias, num encontro com jovens estudantes do secundário, discorreu um pouco sobre a génese dos seus romances e, a propósito, desvendou o modo como se inspirou para iniciar dois deles, e quando a plateia esperava por uma prelecção que pusesse a tónica numa divina fonte de inspiração ou num minucioso labor geométrico, ficou sabendo que muitas vezes tudo acontece por obra de um acaso, de um auspicioso abrir e fechar de olhos, como surgir diante do escritor uma criatura a correr, tal como veio ao mundo, por uma pista de aviões fora. Nem sempre é assim, como se sabe, mas que permite à criação levantar voo, lá isso permite, e a nós dá-nos agora jeito esta visão acidental.
Não tenho pretensões a ficcionista, mas o episódio do meu sapato que perdeu a sola poderia igualmente dar origem a uma narrativa interessante, isto por mãos hábeis, que eu para excursos longos não tenho jeito nenhum, cada um no seu ofício, variante nem sempre ajustada de cada um é para o que nasce. Passo a contar.
Um destes dias, vinha eu a pé com a cachopinha mais nova, que fora buscar à escola, e começo a notar qualquer coisa de esquisito num dos sapatos. Parei, olhei e descobri que a sola se começava a descolar de um dos lados. Nada de estranho, que isto é o que mais acontece ao comum dos mortais que não anda a mudar de sapatos como quem muda de camisa e nem sempre a examinar-lhes os contornos. O insólito da coisa foi eu ter dado mais dois ou três passos e, de súbito, soltar-se literalmente a dita. Nada a fazer. Ali mesmo ficou, a sola, entalada entre o passeio e a roda dianteira do primeiro carro estacionado. Entretanto, a estrada molhada, cheia de poças de água, a cachopa rindo e achando ter já assunto para contar aos colegas e à professora na manhã seguinte, e eu caminhando ao pé-coxinho, de mochila pendurada num dos ombros, mirando ao redor e discretamente assobiando para o lado.
É patente que não sou muito favorecido em altura, assim mais tipo Marques Mendes – embora, para que se perceba, não faça parte da memória colectiva nem nunca tenha tido direito a boneco no Contra Informação –, e tal como ele nunca tenha recorrido aos tacões altos, e por isso, com sola ou sem ela, o caminhar fez-se até casa sem grandes sobressaltos, embora com o calcante, que só levava sapato por cima, molhadinho até quase ao tornozelo.
Agora o divertido, e este é o ponto, foi ter-me vindo à fantasia a estampa de Sarkozy, em vésperas de eleições presidenciais, se um dos seus sapatos perdesse tacão e sola e o deixasse inesperadamente apeado num qualquer lugarejo do país profundo sem sapataria à mão, sem telemóvel e a léguas da viatura, e da humilhação do homem ao ver-se marchando, como se amputado de uma perna, amparado pelas risadas burlescas de Carla e Giulia.
Desventuradamente, não tenho mesmo nenhuma queda para protagonismos de largos enredos, quando muito para personagem secundária ou figurante. A deixa, contudo, aqui fica, para a eventualidade de algum escritor a querer apanhar, ou algum artista da sétima arte, como o Almodôvar. Afinal, uma história pode começar como a gente a bem quiser contar.

Crónica de António Souto para o blog «Floresta do Sul» (número 58); crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52; 53;54; 55; 56; 57.

terça-feira, 16 de abril de 2013

António Souto – Crónica (57)


Uma semana tomada pela entrevista e pela borrasca. Os níveis sempre a subir, sempre a subir, raio de entrevista, raio de quadra. Há quem fale em povoações inteiras isoladas e sem padeiro, senhor, e foi preciso uma santa semana de enxurradas para que nos déssemos conta da retração e da miséria humana a que estamos votados.

Entre a páscoa e a pascoela
Uma semana santa entrevistada, uma semana santa chuvinhada, uma semana santa dominada pela água e pela expectativa. Diluviou praticamente de domingo a domingo e de norte a sul. E a entrevista, senhor, a entrevista.
Fui para cima esquivando-me a aguaceiros inopinados, vim para baixo envolto em neblina e tempestade. À ida, zunia a entrevista, à vinda, ecoava a visita pascal. Uma semana à maneira, só por ser santa. À chegada lá acima já se via uns campos alagados, coisa normal e patética; à chegada cá abaixo, tudo inundado, campos e trilhos, um quadro mais sério extravasando margens. Ele foi a entrevista, ele é agora o águeda e o vouga, ele é o alviela e o tejo, ele é o guadiana, tudo submergido numa narrativa preocupante.
Uma semana tomada pela entrevista e pela borrasca. Os níveis sempre a subir, sempre a subir, raio de entrevista, raio de quadra. Há quem fale em povoações inteiras isoladas e sem padeiro, senhor, e foi preciso uma santa semana de enxurradas para que nos déssemos conta da retração e da miséria humana a que estamos votados.
Uma entrevista, a entrevista, um alarido dos demos, o ajuste, uma semana de delonga, a molhadela antecipada. Moção e constituição só depois do tríduo, pouco mais que morrinha, até lá as nuvens não darão placitude, cheias, sim, e rombos, leitos galgados, e rombos, ilhas de criaturas pacientes, conformadas, e rombos, e para trás a entrevista, senhor, a aclaração que tardava, a narrativa, e mais rombos.
E com a comoção a demissão, e a chuva persistindo e a procela. Já a semana santa dá lugar à pascoela. E a declaração, senhor, a falha anímica, e bolonha trazido à baila, e a impudência de um título, o vício de etiqueta, a dança demandada, e as águas mil e as mil patranhas de abril pelas sargetas, e com elas relatórios e constituições, e rombos e buracos, e o pobre do mexilhão, senhor, que culpa tem das maturidades, das imaturidades e dos dilúvios, sim, senhor, perguntaremos, que culpa tem ele que só anseia pela primavera e pela acalmia.
Ah, semana santa sacratíssima, que procrastinas o juízo e amofinas a ventura nossa e o nosso impulso de juventude insigne, consente-nos ao menos a misericórdia sobrante do in albis como a apetecida bonança após a tempestade, que sempre assim foi e sempre assim será.
Enquanto isto, e atingido desprevenidamente esta manhã por um pé-d’água quando me dirigia para o trabalho, apressei-me a comprar no destino, a um vendedor de circunstância, um guarda-chuva avaro e maneirinho que me resguardasse da intempérie. Quis o acaso que o não utilizasse, por involuntária renúncia celeste, e deste modo ficasse sem comprovar a proficiência dos três eurinhos desbaratados. Seja como for, que fique lavrado que não tenciono requerer a fiscalização preventiva, e se o dito se desengonçar na sua primeira função, do mal, o menos, exonero-o e recomeço a narrativa.

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

António Souto – Crónica (56)



… a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e a mudar-se. A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A ser errante.

Questão de azia
Há umas criaturas benquistas que, de há uns anos a esta parte, nos tentam mentalizar para o óbvio, que o tempo de um emprego para toda a vida é coisa do passado, que o trabalho hodierno, por força dos avanços científico-tecnológicos e da globalização, imprime uma dinâmica de deslocalização e de renovação, que a actualidade exige de nós uma disponibilidade total para a transumância, que o homem de hoje, qualificado e certificado, deve ser um ser aberto às novas e tentadoras ofertas, venham elas de onde vierem, do norte, do centro, do sul, do litoral à raia ou até mesmo a Marte. E a verdade é que há cada vez mais gente a mudar de lugar e a mudar-se. A sentir-se a mais onde está e a sentir-se a mais onde não está. A ser errante.
Contudo, de há uns anos a esta parte, há umas outras criaturas igualmente benquistas que nos tentam convencer de que viajamos demasiado, de que é preciso poupar nos rodopiares e de que é urgente sedentarizarmo-nos. O problema é que quando a gente se habitua à boa-vai-ela é uma carga de trabalhos, e daí verem-se as criaturas todas benquistas na obrigação salvífica de meter mãos à cabeça e, com a cabeça que têm, agir em conformidade, que é assim que se diz com determinação e propriedade, logo urdindo mondas e doutrinas, e, para nos refrear o ímpeto, metendo-nos por sobre as cabeças aturdidas mais uma dúzia e meia de pórticos de pagamento automático para nos delimitar a circulação.
E é assim que num caranguejar contínuo anda o país desatinado, tão como no tempo de Eça e de quantos se deixaram abater vencidos da vida.
«Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.»
«A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.»
«A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.»
A única diferença é que no país de hoje há ainda um terceiro tipo de criaturas benquistas que em deslavado ditério retórico nos questiona se aguentamos, e a gente, tão vencida como a outra, aguenta, aguenta e, para não responder à letra, espera pelas três ou pelas cinco da tarde e sai porta fora rumo à primeira pastelaria para, cortando a azia, comprar meia-dúzia de bolinhos em promoção a cinquenta cêntimos cada.
Apesar de tudo, ainda há males que vêm por bem!

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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

António Souto – Crónica (55)


… foram estas fortunas que marcaram o meu último mês do ano velho. Tudo o mais, insignificâncias.

Momentos singulares
Podia ter adiado o texto, como às vezes acontece, porque o tempo é pouco e o que deveria ser para hoje bem pode esperar pelo amanhã, e o amanhã pelo dia seguinte, e sem querer lá se vai uma semana inteira e o compromisso desacerta-se, mas não, desta vez a tardança foi mesmo intencional, um marcar passo na expectativa de que surgisse alguma coisa que desencadeasse a tessitura da crónica, qualquer coisa que não tivesse sido já escarrapachada diante dos olhos de toda a gente, qualquer coisa que cheirasse a novo, afinal o ano velho estava já a chegar ao fim e seria normal começar a pensar numa muda de roupa sem rasgões ou remendos. Qual quê, nada. Tudo bolo mastigado, ensalivado e embuchado, tudo matéria requentada.
E tanto protelei que me vi de repente galgado para outro ano e sem saber que narrar, que tudo quanto me vinha à memória, para além de privatizações e orçamentos de dúbio interesse, era presépios saqueados, ornamentações inexistentes ou miserandas, bolos-reis, filhós e rabanadas, e é claro que isto não tem a elevação que se espera para um escrevinhar disciplinado e de honroso lugar.
Vai daí, voltei-me para assunto caseiro e decidi-me por momentos singulares, instantes que passam despercebidos a qualquer mortal que nesta ocasião festiva anda pouco atento a episódios sublimes.
Foi o caso de ter ido passar uns dias da quadra natalícia à Barra (a escassos minutos de Aveiro), com ria de um lado e mar do outro, e desfrutar de um local de veraneio tranquilo, agora só de alguns, muito poucos, sem atropelos nem passeios atulhados de tralha chinesa à mistura com a tradicional bolacha americana.
Num dos dias, rente ao almoço, como em dança da chuva, um bando alargado de gaivotas bailava alegremente, do lado do mar, em volta do farol centenário, e o piar que soltava, em récita privada, escapava indiferente aos residentes recolhidos da brisa fria e das alturas. Fascínio apenas para quem se não cansa de namorar as asas.
Noutro dia, vi pela primeira vez uma arapuca. Como quase todos, desconhecia também o significante e o significado da palavra. Não sei por que razão oculta me pareceu nome de ave ou de fruto, mas nada disso, é designação de armadilha para bicharada de pequeno porte. Para melros, por exemplo. E como pelos jardins da vizinhança há vastíssimos finórios desta espécie, não foi difícil ceder à tentação da captura. Foi o meu irmão quem meteu mãos à obra em dia de Natal e, no dia seguinte, estava a estrutura armada – sim, que aquilo se constrói com pauzinhos ou com canas pequenas em forma piramidal. Há registo de que estes artefactos se destinam a apanhar animaizinhos vivos, e nem outra coisa nos passaria pela cabeça, que a finalidade era mostrar à criançada (para além da eficácia do objecto) um melro verdadeiro e ao vivo. E funcionou, funcionou às mil-maravilhas, apesar de mestria elementar, e em pouco tempo ali estavam dois, um casal, ao que julgámos, a avaliar pela plumagem e pelo bico, mas destas minudências não houve acordo, nem do modo como entraram ambos. Cumprido o propósito e feito o boneco, restituíram-se os gabirus à liberdade, e ainda os ouvimos, ao longe, entoar o Coro da Primavera de Zeca Afonso.
Noutro dia, ainda, e isto foi no dia do regresso, surgiu-nos num esgar um arco-íris. Era do lado da ria e competia de envergadura com todo o arco sobranceiro da ponte. É claro que em criança havia muitos arcos-íris na minha aldeia, sobretudo nos campos da minha aldeia, mas para as crianças de hoje que não têm aldeias, nem sabem o pasmo dos campos, ver um arco-íris desenhado no céu com a perfeição dos deuses é uma raridade. O fenómeno durou alguns minutos, o suficiente para depois se desfazer nos olhos e deixar a pequenada tão longe como os melros soltos e as gaivotas entretidas.
E pronto, foram estas fortunas que marcaram o meu último mês do ano velho. Tudo o mais, insignificâncias.

Crónica de Dezembro de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52; 53;54.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

António Souto – Crónica (54)



... teimosamente o natal é sempre quando é dezembro e a chuva e o frio nos lembram que a primavera ainda vem longe. Pior, o natal, como o inverno da nossa meninice, entra-nos já pelos poros adentro logo nos primeiros dias de novembro, sem pedir licença nem agasalho, acenando de costas voltadas às andorinhas que abalam. Tudo em minúscula, tudo minúsculo…

Um natal de cansaço
Começo a ficar cansado de ouvir e ver tanto natal quando chega a quadra natalícia, como se não houvesse mais nada para ver e ouvir. Se ao menos o natal pudesse ser realmente quando o homem quisesse, a gente inventava um quando nos apetecesse ou, então, o que era ainda mais fácil, a gente riscava-o quando chegassem os primeiros bolos-reis apócrifos e as iluminações de rua nos distraíssem da severidade da vida. Mas não, teimosamente o natal é sempre quando é dezembro e a chuva e o frio nos lembram que a primavera ainda vem longe. Pior, o natal, como o inverno da nossa meninice, entra-nos já pelos poros adentro logo nos primeiros dias de novembro, sem pedir licença nem agasalho, acenando de costas voltadas às andorinhas que abalam. Tudo em minúscula, tudo minúsculo…
É verdade que este ano parece haver menos natal, está tudo um bocadinho apagado, pelo menos aqui pelos meus lados, que não vejo luzes nas avenidas nem nas praças, nem ainda nas janelas, só um ou outro pai-natal, insignificante e esganado, numa ou noutra fachada dos prédios vizinhos, mas mesmo assim tenho a certeza de que, mais dia, menos dia, o natal chegará a valer, pela capital já cheira a ele, e, se não anda já à solta pelas artérias do burgo, andará por certo em reboliço pelos centros comerciais todos que existem num raio de vinte ou trinta quilómetros, e de sexta à noite a domingo à tarde, não haverá lugar nos estacionamentos nem nos elevadores nem nas escadas rolantes nem nos corredores labirínticos sobrepostos nem nas salas de cinema nem em certas lojas que vendem roupa a preço fingido de saldo ou bugigangas de iludir e de esvaziar a bolsa. E a ninguém causará perplexidade saber que há quem se atole em natal quando o tempo é de lusco-fusco e o desalento se entranha mais que o frio.
Por isso me cansa ouvir e ver tanto natal, e me cansa ainda mais quando chove em vésperas de nevar e as palavras se tornam insuficientes para tanto branco.
«Chove. É dia de Natal./ Lá para o Norte é melhor:/ Há a neve que faz mal,/ E o frio que ainda é pior.// E toda a gente é contente/ Porque é dia de o ficar./ Chove no Natal presente./ Antes isso que nevar.// Pois apesar de ser esse/ O Natal da convenção,/ Quando o corpo me arrefece/ Tenho frio e Natal não.// Deixo sentir a quem quadra/ E o Natal a quem o fez,/ Pois se escrevo ainda outra quadra/ Fico gelado dos pés.» (Fernando Pessoa)
Quando penso nisto, e muito embora não podendo a gente ter um natal à nossa medida, vergo-me e reconheço que, de facto, pouco mais há para ver e para ouvir do que o natal que nos vaticinaram, um mês inteiro só de natal, um dezembro de natal todo minúsculo e amassado em azedume, e dentro dele um brinde para nos decorar o presépio que deixaremos a um canto da sala, em abandono, por largos anos, até que se dissipe o sonho que tivemos, um dia, em crianças.
Cansaço apenas.

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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

António Souto – Crónica (53)


Refundam-se, portanto, todos os programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida.

No refundar está a virtude
Os portugueses têm experimentado, nos últimos meses, o pior de uma receita de austeridade, um tratamento que, a avaliar pelos resultados, tem piorado a doença e agravado o estado dos enfermos. Estamos doentes, estamos mal e tendemos a estiolar.
A solução está, por enquanto, em peregrinar. Da Praça de Espanha a Fátima, passando pela Assembleia da República, que é onde mora a nação inteira, marcha-se por causas, devoções e muita, muita fé. Protestos e luta com intervenção musical e, à mistura, o soar de vozes e motes de Abril.
De um enorme aumento de impostos, havido, passa-se para um aumento significativo de impostos a haver. Maturidade, seriedade e competência saem como arrotos da boca da governação. Culpa-se o estado social de viver acima das suas possibilidades, constata-se inauditamente que os impostos dos contribuintes estão abaixo do requerido, conclui-se por um ajustamento imprescindível dos pratos da balança.
Bem doutrinam entendidos de diferentes quadrantes para o perigo do desaire, bem apostolam os ex-presidentes da república que da resignação à indignação vai um curto passinho, ou que é chegada a hora de acabar com esta governança, ou que a democracia pode rebentar, que nada, nada mesmo parece demover a brigada de iluminados das suas convicções altruístas que a todo o custo teimam em levar à letra, de forma desirmanada, os versos de Camões – «Não tornes por detrás, pois é fraqueza/ Desistir-se da cousa começada». Só que a coisa começou torta, tem crescido retorcida e exibe-se derreada.
E assim, paulatinamente, regressamos da pior maneira às profundezas da nossa civilização, como ao inferno, que é onde ardem já os gregos, como em ruínas. E quando o impasse surge, nítido e incontestável, inventam-se eufemismos de rara espécie e clama-se por «uma espécie de refundação». Ah, malditas palavras, que tanto são uma coisa como são outra, que tanto são como não são… Se ao menos isto fosse uma espécie de magazine para desenfado, mas não, isto é demasiado sério para poder sequer ser entendido como rasgo de humor negro. E o presidente que é, ninguém o sabe, embora ande por aí, facebookando, deixando que outros se alvorocem e dêem sentido aos vazios.
«– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!/ Ó fraudulento gosto, que se atiça/ C'uma aura popular, que honra se chama!/ Que castigo tamanho e que justiça/ Fazes no peito vão que muito te ama!/ Que mortes, que perigos, que tormentas,/ Que crueldades neles experimentas!» Outra vez Camões, mas daquele que poucos lêem. Porque se todos o tivessem lido, e com ele aprendido os vícios acusados, não estaríamos no estorvo em que estamos e sem porto à vista. Mas não, para muitos, nem no tempo certo nem noutro qualquer se colheram ou colherão os ensinamentos fundadores do ser-se. Do ser cidadão. Para muitos, definitivamente, nem com programa de ajustamento em novas oportunidades.
Refundam-se, portanto, todos os programas que houver; refundam-se todos os mandantes; refundam-se todos os relvas; refundam-se todos os gostos fraudulentos; refundam-se todas as misérias e as esperanças todas, e também a constituição e a democracia e a vida. Refunde-se tudo, porque é na refundação que está doravante a virtude!

Crónica de Outubro de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 51; 52.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

António Souto – Crónica (52)

… a quinze, foi a festa de portas abertas na Gulbenkian com «Pedro e o Lobo», de Sergei Prokofiev, no Grande Auditório (do outro Pedro, uivado em coro às portas de Sete Rios, a festa foi desigual)


Ilusões de presente
Esperei Setembro e deixei-o escapar, tão depressa como se foi o Verão das férias, das manhãs preguiçadas e dos fins de tarde estendidos.
Por norma meio de ressaca e meio de recomeço, este mês foi, como na gíria futebolística, de desmotivação profissional, não que o plantel não estivesse solidário, o problema é que continuou faltando uma palavrinha de apoio de um mister ou de um special qualquer, e se o CR, que é quem é, se sente triste por tão pouco, que dizer de um vulgar pregador de sermões aos peixes quando o novo ano lectivo se anuncia quebrantado e muito pouco venturoso…
Parodiando Cesário, houve neste mês, porém, duas coisas simplesmente belas que atenuaram o advento do Outono e me distraíram do desarrimo. A primeira delas, a quinze, foi a festa de portas abertas na Gulbenkian com «Pedro e o Lobo», de Sergei Prokofiev, no Grande Auditório (do outro Pedro, uivado em coro às portas de Sete Rios, a festa foi desigual). A outra, a vinte e dois, foi a festa de Brasil e Portugal (ou de Portugal e Brasil) unidos no Terreiro do Paço: Zé Ricardo, Carminho, Zeca Baleiro, Boss AC, Paulo Gonzo e Martinho da Vila. Momentos únicos de distinção e gáudio a custo zero, suspensões da crise, ilusões de presente.
E mais não houve no mês que foi, senão acasos de anedotário que registei na nossa imprensa e reproduzo para remanso da austeridade.
1) Foi descoberta uma nova Gioconda, de rosto mais novo, mais liso, aparentemente pintada a par com a outra, a de rosto agora mais envelhecido. Mas o mais importante da revelação não foi a pintura, mas o facto relevante de este quadro ser da autoria mais que provável do amante de Leonardo Da Vinci. Isto, sim, é de ficar com duas monas!
2) Foi lançado mais um livro infantil, o que, convenhamos, não é grande novidade, novidade mesmo, e relevante, é ter sido escrito pela mão de Cinha Jardim, figura da nossa socialite e da nossa memória colectiva. Quer dizer, importante, mesmo importante, foi ela ter-se inspirado no neto e na cadela para a trama. A imprensa é mesmo tramada!
3) Foi apanhado em flagrante uma criatura de meia-idade algures numa rua dos Estados Unidos a fazer sexo com… um sofá! A polícia deteve-o por atentado ao pudor. E fez-se notícia.
4) Foi detido mais um norte-americano. Coisa rara. Este, também pouco mais velho que o anterior, por ter desatado ao tiros a um vizinho seu, acusando-o de lhe ter violado a mulher. Coisa rara. Raro, sobretudo, e grave, porque a violação terá sido por telepatia. Como o repórter estava lá, tomou notas e divulgou o caso. E não era para menos, que coisa tão estranha não ocorre por aí além.
5) Foi eleita «a cadela mais mimada do mundo». Dá pelo nome de Lola e dorme numa cama de seis mil euros. Saracoteando-se com uma modesta coleira de platina e diamantes no valor de 32 mil euros, não consta que esta milionária Yorshire Terrier seja ainda perseguida pelo fisco por manifestos sinais exteriores de riqueza, embora haja fortes suspeitas de que tenha contas abertas na Suazilândia, na Ilha Tristão da Cunha e nas Ilhas Palau.
6) Foi tornado público o último relatório do SIS. A matéria é séria e impõe cuidados redobrados. O nível de ameaça contra os ministros subiu para três, e para quem não lida de perto com estas informações, este nível intermédio, e a subir, é crítico e não deixa ninguém em paz, que um qualquer cidadão pode ser chamado um dia destes a estas altas funções e, se isto se mantém, ninguém quererá aceitar o cargo. Sim, que o seguro morreu de velho.
7) Foi finalmente publicitado o que muita gente pensava há muito e acreditava ser verdade, que em Marte já houve água. Crê-se que a água se terá evaporado, mas as fotos não mentem e a morfologia marciana comprova a circunstância. E como onde há água há vida, não espantará que os ET andem pelo meio de nós.
Serão acasos do anedotário, é certo, mas casos assim tão circunspectos e inquietantes como estes não se encontram todos os dias nem em todas as conjunturas, nem mesmo na actual, de hipocrisia e impudência.
E se, havendo mais vida para além da Terra, fôssemos todos para Marte?!

Crónica de Setembro de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28;

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

António Souto – Crónica (51)


… promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham» (Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]» (Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de Coventry).

À espera de Setembro
Está praticamente tudo fechado para férias neste lindo mês de Agosto. E bem podem fazer questão de nos tirar as férias e aquilo que as subsidia que elas são sagradas, e penando uns mais outros menos lá se vai cada um de nós desempeçando com os cêntimos sobrantes. Isto de fechado para férias é como quem diz, que há fechaduras que tão cedo não voltarão a rodar por serem as férias inevitavelmente estendidas, mas disto não discorreremos, que assaz se tem perorado, disto, dos incêndios e de outras acrimónias do Verão.
Por isso, poderíamos igualmente confessar que também nos continuamos mantendo em regime de ócio e, assim, arranjarmos desculpa decorosa para nos esquivarmos ao encargo da crónica mensal, mas ficaríamos por certo de mal com a nossa consciência. Não aprontaremos pretextos, portanto, mas a verdade é que os assuntos merecedores de atenção acabam por falhar e ficamos para aqui à deriva a ver se chegamos à costa, isto é, ao final da página, sem que o leitor dê pelo vazio da substância. É claro que há sempre forma de contornar as vagas.
Por exemplo, fazermos como fez Luiz Fagundes Duarte numa crónica recente, que à falta de matéria e ou de inspiração se decidiu por discorrer sobre as placas toponímicas «inauguratórias», sobre o pouco que dizem e, sobretudo, do muito que fica por dizer. Coloca-se uma primeira pedra num descampado ou inaugura-se uma qualquer obra, feita ou não, e lá fica uma lápide com o registo da Excelência que a descerrou (ou não, às vezes, que conhecemos pelo menos uma pedra com o nome de um «descerrante» que no acto se encontrava a léguas) e, quando calha, ainda de uns quantos insignes que assistiram protocolarmente ao evento, mas nunca se entalham os nomes daqueles que deram o corpo e o coiro ao manifesto. Foi por estas e por outras que Saramago, narrando-nos a edificação do Convento de Mafra, decidiu nomear vinte e três operários, de A a Z, edificando-os também, porque deles foi a maior parte da criação.
Ou, por exemplo, chamarmos à colação conteúdo mais contundente, como a efusiva sugestão do presidente do Comité Olímpico Português de, «sem conotações políticas», ser reactivada a Mocidade Portuguesa. Uma proposta virtuosa para pôr os atletas de alta competição na linha, que isto de ir uma vastíssima delegação para o estrangeiro malbaratar uma fortuna e, no regresso, trazer duas míseras medalhas não é exemplo para ninguém, muito menos para a Pátria, e é de nobres exemplos que a Pátria necessita, bem como de elevados encorajamentos como este, ou como aqueloutro que, coincidentemente, pretendia a suspensão da democracia por uns meses.
Ou, por exemplo, imergirmos até nos faltar o ar por insignificâncias que têm preocupado gente folgada a propósito do desaparecimento de documentos relativos aos famigerados contratos dos submarinos que tanto têm dado que falar por cá como por águas alemãs e que um ex-ministro da Defesa já esclareceu não saber de nada e muito menos os ditos terem vindo acidentalmente misturados com as 61.893 páginas que fotocopiou nos idos de 2007 e que um Expresso de Novembro desse ano muito bem elucidou.
Ou, por exemplo, e isto seria bem mais sério, sublinharmos o desafio reformador de o Ministério da Educação atingir a curto prazo uma oferta de 50% de cursos profissionais nas escolas portuguesas, o mesmo objectivo de há uns quatro ou cinco anos, promovendo uns quantos cursos inovadores assentes em cadeiras, e agora somos nós a alvitrar, que determinadas universidades dão por bem sucedidas, como «Zombies» (Universidade de Edimburgo); «David Beckham» (Universidade de Staffordshire); «Harry Potter» (Universidade de Durham); «Star Trek» (Universidade de Georgetown); «Símbolos fálicos» (Colégio Ocidental); «Xarope de Ácer» (Alfred University, Nova Iorque); «Renda [de bilros ou outra]» (Universidade de Glasgow); «Star Wars» (Queen's University Belfast); «Robin dos Bosques» (Universidade de Nottingham) ou «Caça-fantasmas» (Universidade de Coventry). Era só uma questão de alguns poucos ajustamentos e de alguma pouca imaginação.
Mas não, não nos apetece encher chouriços, empatar, para sermos mais elegantes, não vá o leitor enfadar-se, e com razão, de maneira que nos ficamos por aqui, sem cronicarmos nada, nadinha, esperando apenas por Setembro.

Crónica de Agosto de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

António Souto – Crónica (50)



As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.

Que importa que Portugal arda?
Portugal arde. Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos.
Era eu criança e já o país ardia, como sempre deve ter ardido, de norte a sul e do litoral ao interior, e ao calor do estio juntava-se a quentura abrasadora das chamas.
Lá em casa falava-se do mato dos pinhais ao abandono que não parava de crescer e que já ninguém queria cortar, estava tudo rico, e era por via disso que o meu avô ia todos os anos com trabalhadores a dias apanhar carros e carros dele, bem cedinho para evitar o sol que tornava o tojo mais duro e maior o esforço de o aparar, carros de vacas que o traziam, por haver um único tractor na aldeia e ficar caro o transporte, e logo que descarregado em casa ia uma parte para o caminho argiloso e rebaixado do pátio e a outra para os currais, para a cama do gado.
Naquelas ocasiões em que as labaredas se avultavam e intimidavam, o sino tocava a rebate, e antes mesmo da chegada dos voluntários organizados, a gente da aldeia acorria desorientada e, pelo monte acima, galgava a escuridão (porque de noite a urgência e o pânico eram mais inflamados) norteada pelo cheiro a eucalipto queimado e pelos lampejos no céu estrelado antes de encoberto pelo fumo. E chegados todos ao inferno, cada um a seu modo ajudava a vencer o fogo, com uma enxada ou um engaço, com uma forquilha ou uma engaceta, com ramos verdes esgaçados à sorte ou com berros e impropérios de encorajamento. No final, pela madrugada, os corpos soçobrados de suor e cinza, os olhos ardentes e a respiração abafada, o fascínio de um incêndio debelado. 
Lá em casa, naquelas ocasiões, o dia seguinte era um dia amargo e de poucas palavras. No ar, um bafo a desolação.
Hoje já ninguém apanha o mato por este já não ser de ninguém, e já não há quem toque os sinos a rebate nem quem saiba o que isso seja, que os tempos são outros. Mas há ainda chamas que continuam avançando, como antes avançavam, porque o chão tem que arder quando o vento sopra de feição. E há o eco sumido dos melros e das pegas pelos ramos altos dos pinheiros e o rosmaninho rasando as raízes. E há gestos que se repetem quando o castigo se acerca e o desespero alastra (temos de ser uns para os outros, solidários, como agora se apregoa). E há silêncios asfixiados tão como os de sempre quando as muitas lágrimas se esvaecem no rescaldo do flagelo.
Mas hoje o incêndio é só um incêndio, vistoso e desinteressante. Mais pinheiro menos pinheiro, mais eucalipto menos eucalipto, mais casa menos casa, mais vida menos vida. É verdade que a reportagem impressiona, o enquadramento é meticuloso, o plano de pormenor, mas o fogo tem menos magia, e na nossa casa, onde não lavrou, o dia seguinte é só mais um dia seguinte, o espectáculo dura o tempo costumado da notícia.
As chamas fazem parte da ficção, acendem-se e apagam-se quando se acende e apaga a televisão, não nos incomodam nem nos tiram o sono, não nos baldeiam pela escuridão como quando éramos crianças, a terra valia ouro e tínhamos o sonho com avô dentro.
Quanto ao mais, que importa que Portugal arda? Todos os verões arde. Uns anos mais, outros menos. E nós com ele, aclimatados.

Crónica de Julho de 2012 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49.